Uma jangada de pedra na transição energética

Vera Ferreira - 25 Abr 2022

O acesso à energia elétrica, garantindo a qualidade, segurança e universalidade do abastecimento, deve constituir um direito. A Península Ibérica deveria aproveitar esta janela de oportunidade para recuperar a sua soberania energética, tomando as rédeas da transição (atualmente liderada pelas empresas de combustíveis fósseis “enverdecidas”)

 Na reunião do Conselho Europeu de 25 de março, os Governos de Portugal e Espanha sondaram os restantes Estados-membros da União Europeia (UE) em relação à possibilidade de implementar medidas extraordinárias e temporárias para reduzir o preço da eletricidade (vigorariam até ao final do ano), recorrendo ao controlo de preços, designadamente do gás natural. A Península Ibérica foi reconhecida como uma “ilha energética” – pela escassez de interligações ao restante território da UE –, o que se traduziria num regime de exceção, cujos contornos definitivos, porém, ainda não são totalmente conhecidos. Sabemos, contudo, que a aprovação e, consequentemente, a concretização das propostas luso-espanholas está dependente de Bruxelas, o que confirma e acentua, uma vez mais, a dependência e subalternidade desta periferia energética.

 A 31 de março, o jornal Público avançava: “Portugal e Espanha entregaram em Bruxelas proposta para baixar preço da eletricidade”. Sugiro uma reformulação deste título, a bem do rigor: “Periferia energética pede autorização a países do Norte da Europa para controlar setor estratégico”. A mesma notícia esclarece que essa proposta visa “evitar o «efeito de contágio» da escalada de preços do gás [natural] ao mercado elétrico”. Uma das soluções passaria por fixar um teto máximo para o gás natural, implementando um mecanismo de ajustamento para compensar as centrais de ciclo combinado a gás natural, bem como as centrais a carvão e as cogerações.

 Já esta segunda-feira, o jornal El País, que teve acesso aos documentos remetidos à Comissão Europeia pelo Governo espanhol (e que serão discutidos em Bruxelas a 27 de abril), refere que as negociações acerca da “denominada «exceção ibérica»” estão a “endurecer”. O El País noticia, ainda, que a proposta luso-espanhola para reduzir o preço da eletricidade implicaria uma limitação da exportação de energia para França, assim como a criação de um sistema duplo de preços, diferenciando a eletricidade consumida na Península Ibérica e a que é exportada para o mercado comunitário, através dos Pirenéus. 

 Como seria de prever, a Comissão Europeia – ou seja, a Alemanha e os países nórdicos – “temem” a abertura de um precedente que comprometa a unidade do mercado interno da energia. As elétricas temem pelos seus lucros e continuam o seu lobby em Bruxelas. O Governo espanhol, por seu turno, alega que dificilmente esta “ilha energética” causaria uma distorção significativa no mercado. Ora, uma das distorções evidentes a que assistimos neste momento, e que até foi assinalada por António Costa no rescaldo do Conselho Europeu de 25 de março, é que apesar da diminuição dos custos de produção devido à crescente incorporação de renováveis no mix energético ibérico, o preço da eletricidade continua a ser condicionado pelas flutuações de preço do gás natural.

 No entanto, mais do que a arquitetura disfuncional do Mercado Ibérico de Eletricidade, o que está em causa é a própria liberalização de um setor onde a construção de mercados não funciona. O acesso à energia elétrica, garantindo a qualidade, segurança e universalidade do abastecimento, deve constituir um direito. Tal como demonstram os índices alarmantes de pobreza energética em Portugal, as promessas de um mercado de eletricidade liberalizado, em que os consumidores poderiam escolher o comercializador de energia que lhes oferecesse um preço mais vantajoso, foram goradas, como não podia deixar de ser. A retórica de mercado serve para ocultar o poder das grandes empresas.

 A Península Ibérica, qual jangada de pedra, deveria aproveitar esta janela de oportunidade para recuperar a sua soberania energética, tomando as rédeas da transição (atualmente liderada pelas empresas de combustíveis fósseis “enverdecidas”). Isto só se faz com controlo, ou seja, propriedade pública.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Ladrões de Bicicletas, do 22 de abril de 2022