Quem tem medo do referendo na Catalunha?

Luís Fazenda - 21 Set 2017

Ouve-se com frequência que a Catalunha não tem direito à autodeterminação. Alguns ridiculamente até invocam que essa nacionalidade não figura na lista dos territórios ocupados da ONU. Convém não regatear que o direito à autodeterminação é um direito geral e irrestrito que cumpre a cada povo, expressando o seu sentido maioritário

1 - O forte impulso pela República Catalã surge como reação à anulação do Estatuto da Catalunha pelo Tribunal Constitucional espanhol em 2010. Relembre-se que um estatuto que aprofundava a autonomia da Comunidade e reconhecia a Catalunha como Nação foi aprovado no Parlamento regional, piorado mas aprovado nas Cortes em Madrid e posteriormente votado em referendo, na Catalunha, com uma larga maioria a favor.

 Embora o sentido fosse federalizante, a Esquerda Republicana Catalã (ERC) apelou ao Não, devido à descaraterização sofrida no texto emanado de Barcelona. Posteriormente, os deputados e deputadas do PP de Mariano Rajoy, então na oposição, bem como algumas comunidades de Castela, interpuseram queixa para o Tribunal Constitucional com o desfecho conhecido de anulação objetiva da lei-carta da Catalunha.

 Aqueles que reprovam a via da Independência em nome de um hipotético federalismo espanhol, com ou sem monarquia, não querem ter em conta que o gradualismo morreu às mãos de Rajoy e do nacionalismo radical espanhol. Que querem dizer aos catalães, que esperem outros quarenta anos para alterar a Constituição de 1978? A atual repressão de Rajoy sobre o exercício de um referendo legitima e reforça ainda mais a via independentista. Depois de 1 de outubro a revolta catalã vai acentuar-se.

2 - Ouve-se com frequência que a Catalunha não tem direito à autodeterminação. Alguns ridiculamente até invocam que essa nacionalidade não figura na lista dos territórios ocupados da ONU. Convém não regatear que o direito à autodeterminação é um direito geral e irrestrito que cumpre a cada povo, expressando o seu sentido maioritário, muitas vezes ao longo de conflitos de descolonização. Isso é algo que resulta do direito internacional que se convencionou no século XX, fruto da descolonização de vastas áreas do planeta que estavam sob dominação de impérios caducos.

 A autodeterminação pode conduzir à independência ou a outras formas de relacionamento internacional. Não há autodeterminações artificiais, elas não existem sem um forte sentimento de comunidade própria e uma relação de dominação estranha a essa comunidade. Não consta que o Québec ou a Escócia, que realizaram nos últimos anos referendos sem êxito pela Independência, sancionados pelos governos do Canadá e Grã-Bretanha, respetivamente, constassem da lista dos territórios ocupados.

3 - Acusa-se o nacionalismo catalão de ser uma criação da burguesia com a qual se tenta alienar os trabalhadores. A reivindicação nacional tem muitos séculos e é natural que setores da burguesia e partidos de direita acolham e promovam a bandeira da República Catalã. Veja-se que a Catalunha foi várias vezes tratada brutalmente por Castela, a última das quais no franquismo, atingindo identidades e interesses da elite barcelonesa. Porém, o povo tem tido a sua expressão nacionalista veiculada por idioma próprio ao longo de todo o processo histórico.

 Contudo, e isso é que importa para avaliar politicamente o referendo de 1 de outubro, a confederação de empresários da Catalunha está contra o referendo e queixa-se da hostilização das autoridades da Generalitat (governo autonómico catalão). A grande burguesia da Catalunha está com Rajoy e com o Rei. Neste momento, e depois de longas hesitações e ambiguidades do Catalunya en Comú, partido de Ada Colau, apoiado pelo Podemos espanhol, toda a esquerda luta pela realização do referendo proibido, refletindo a simpatia de grande massa de trabalhadores e da pequena-burguesia. Infelizmente, não vemos a solidariedade necessária da classe trabalhadora espanhola, embora as sondagens mostrem uma abertura crescente da juventude espanhola ao reconhecimento da plurinacionalidade ibérica. Aqui não se enterra apenas a Constituição de 1978, também o legado da guerra civil e da pátria espanhola imposta a galegos, bascos e catalães.

4 - Há quem queira impedir a autodeterminação da Catalunha invocando o "separatismo múltiplo" e "o fim do Reino". Lá vem a caixa de Pandora de que se se permitir referendo catalão, lá virá o referendo basco e depois o referendo galego. E assim, de referendo em referendo, termina a Espanha e deixa a monarquia que supostamente representa a unidade de Espanha na beira do abismo. Este é também o pensamento dominante das autoridades em Lisboa.

 A política externa portuguesa tem estreitado relações com a monarquia espanhola, e acha o mesmo sobre o "separatismo múltiplo" que a monarquia corrupta dos Bourbon. Acham até que se assim se marca o pragmatismo, valor sem valor mas muito em uso. Cabia-nos considerar que o nosso relacionamento ibérico deve pautar-se pela não ingerência mútua, mas também pela adesão aos princípios da Carta das Nações Unidas no que discorre sobre os legítimos direitos de afirmação nacional.

5 - O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) oferece nestes tempos a imagem do contorcionismo mais degradante. Ao mesmo tempo que lamenta que a Constituição espanhola não reflita a plurinacionalidade em "autonomias reforçadas", pactua com Rajoy a repressão do referendo. Mais uma vez a posição chauvinista da unidade de Espanha se sobrepôs a uma posição democrática e constituinte da oposição anti-PP.

O facto de Rajoy ter posto Pedro Sánchez no bolso na questão que mais polariza a política espanhola, é não só o desmentido de que Sánchez queira mesmo mudar a Constituição, senão ter-se-ia oposto à repressão como a confissão de que não tem parceiro que que obtenha o limiar de votos necessários nas Cortes para alterar a lei fundamental. Mau indício para as veleidades de coligação PSOE e Unidos Podemos, a proposta de Pablo Iglésias do Podemos.

 Rajoy vai assim limpando o cenário do seu poder.

6 - A polémica da aplicação do artigo 155º da Constituição ganhou nova qualidade. O artigo 155º é o que permite que o governo central intervenha nos governos autonómicos para repor a legalidade. A aplicação desse artigo obriga a uma votação no Senado espanhol o que até agora não aconteceu.

 No meio desta farsa política quer-se fazer crer que não há uma intervenção formal contra as autoridades da Catalunha mas na prática é o que está acontecer. O envolvimento do Ministério Público para ameaçar de delito penal centenas de autarcas, deputados, membros da Generalitat, a perseguição da Guarda Civil a tipografias e impressos de campanha ou boletins de voto, ou a caça às urnas de voto complementam a decisão inédita de Madrid chamar a si a gestão orçamental para garantir que não se gasta um cêntimo com o referendo. Funcionários públicos são ameaçados de despedimento e ação penal se auxiliarem o referendo. Os debates públicos foram proibidos bem como os comícios que se têm feito ilegalmente. Neste ambiente, a anedota vem dos apoiantes do Não no referendo que se queixam que não conseguem debater...

7 - O referendo não reconhecido, mais ou menos periclitante na sua realização, depois de Espanha ter rejeitado durante sete anos um referendo legal e acordado, não será ainda a antecâmara de mais uma República na Europa, mas vai provocar a primeira grande fratura no Reino vizinho desde a transição da ditadura. A mobilização vai ecoar na Moncloa. A retaliação de Rajoy, querendo decapitar as lideranças catalãs, é um prenúncio do que aí vem. A solidariedade que se antecipa, sem dúvida, é a maior Embaixada da Catalunha.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Esquerda, do 18 de setembro de 2018]