Europa: Vem aí a bazuca

António Avelãs Nunes - 10 Nov 2021

Na Europa, hoje como há 80 anos, a defesa da democracia exige o controlo público da banca, dos seguros e das indústrias estratégicas, e exige o reforço do estado social (sistema público de educação gratuita e de qualidade; sistema público de saúde universal e gratuito; sistema público de segurança social). E exige um combate sem tréguas ao desemprego e ao trabalho sem direitos

1 – Perante a crise pandémica, ouvimos os ‘responsáveis’ dizer que era preciso não repetir os erros cometidos no combate à crise de 2008 e que a ‘Europa’ precisava de se unir para enfrentar a pandemia e para, depois, recuperar a economia. Daqui saiu o famigerado Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), a bazuca de que tanto fala António Costa.

A pandemia anda a fazer estragos há cerca de um ano e meio, mas a bazuca ainda não deu ‘tiro’ nenhum e muito menos são conhecidos com clareza os condicionalismos que acompanharão o acesso às verbas do PRR. As prioridades são as definidas por Bruxelas (que podem não ser as nossas). O ministro Santos Silva falou da necessidade de «uma agenda de reformas ambiciosa»… Virão aí mais reformas estruturais?

 Sabe-se que as transferências a fundo perdido não passam da antecipação de transferências por conta de orçamentos futuros: a ‘pipa de massa’ que tanto anima os que estão sempre à espera de um bom negócio é dinheiro que o nosso país deixará de receber em anos futuros, por conta dos fundos comunitários.

 E sabe-se também que os países beneficiários dos programas da UE vão ficar sujeitos a um regime de «vigilância reforçada»: têm de fornecer à Comissão Europeia as mesmas informações que os países sujeitos a processo de infracção por défice excessivo; ficam sujeitos a missões de revisão regular por parte da Comissão, do BCE e, quando apropriado, pelo FMI (a troika está de volta); se algo não correr bem, o Conselho da UE pode recomendar ao estado-membro em causa «medidas correctivas» ou um «projecto de programa de reajustamento macroeconómico». Só um cego não vê: os países mais débeis da UE mandam cada vez menos em sua casa…

 A Comissão vai lembrando que as regras alemãs não foram revogadas, estão apenas suspensas. As troikas não morreram. Estão apenas a descansar, para regressarem em força quando chegar a altura do ajuste de contas. Passada a onda, é sério o perigo do regresso em força das políticas de austeridade, com o respeito pelas regras estúpidas e medievais sobre o défice e a dívida e a redução das despesas públicas para pagar os encargos da dívida, sacrificando o investimento público em geral, os investimentos no futuro (educação, saúde, segurança social, habitação) e o estado social.

 Portugal é, dos países da UE, o que menos tem ‘investido’ no apoio às famílias e às empresas para compensar as perdas resultantes da pandemia. E, em 2020, Portugal foi o país da eurozona com mais baixo nível de investimento público. O Governo parece não querer ‘gastar muito’ (é a austeridade cor de rosa…), porque adivinha o que a ‘Europa’ vai fazer depois da tempestade.  Tal como em 2008, Bruxelas manda gastar, mas depois apresenta a conta e obriga-nos a pagar com juros os ‘excessos’ do desvario despesista, resultado do feio ‘pecado’ de querermos viver acima das nossas posses... 

 Seja como for, vamos pagar caro esta ‘poupança’. No imediato, ela está a traduzir-se em mais falências, mais desemprego, maior desigualdade, menor qualidade de vida. A médio prazo, ela trará consigo maiores dificuldades quando se tratar da recuperação da actividade económica, porque, como é óbvio, os países que agora mais apoiarem as suas economias partirão em vantagem. A pandemia está, pois, a agravar as enormes desigualdades já existentes entre entre os países da ‘Europa’. 

2 – A pandemia pôs a nu algumas das disfunções globais resultantes das políticas neoliberais. Alguns começaram mesmo a falar da necessidade de temperar o radicalismo do comércio livre imposto ao mundo através da OMC. Na Europa, descobriu-se a necessidade de salvaguardar a soberania farmacêutica e sanitária. Falou-se mesmo da necessidade de garantir a soberania económica e industrial da UE no que se refere às indústrias estratégicas, para evitar que elas caiam nas mãos de investidores não europeus (sobretudo os ‘inimigos’), para que possam ser atendidas as prioridades da UE.

 A verdade, porém, é que as preocupações com a ‘soberania’, dizem respeito apenas à soberania europeia. É mau que a EDP seja controlada por capitais chineses (e, para Portugal, isso é mau, a meu ver), mas já seria óptimo se fossem empresas alemãs ou francesas as donas da EDP, como acontece com a PT, adquirida pela francesa Altice (que está a ‘secar’ o sector de investigação e de inovação que a PT construiu enquanto empresa pública). Não será conveniente que capitais chineses controlem uma pequena parcela do sector financeiro que opera em Portugal, mas é óptimo que os bancos ‘portugueses’ (salvo a CGD, que continua a ser uma empresa pública) sejam controlados por bancos espanhóis. Pela mesma razão, é óptimo que os aeroportos de Portugal e as duas pontes sobre o Tejo em Lisboa sejam geridos por multinacionais francesas.

Tudo claro: não se trata de garantir o controlo dessas indústrias e dessas empresas e estruturas estratégicas pelos povos dos estados-membros da UE, mas apenas de garantir o seu controlo pelo grande capital alemão e francês. A isto chamam os europeístas a soberania económica europeia. Salva-se a ‘soberania europeia’ à custa da soberania portuguesa. E dos restantes estados-membros.

3 – Daqui passou-se à necessidade de re-industrialização da Europa, para que ela não se veja de novo «na contingência de precisar de ventiladores e ir rogá-los aos países asiáticos.» E logo o governo veio anunciar que esta re-industrialização, juntamente com o PRR, «abre oportunidades imensas à economia portuguesa».

 Fica uma primeira dúvida: será que a bazuca tem potencial de fogo suficiente para conseguir que a ‘Europa’ (Portugal incluído) saia do período de crescimento anémico em que vem vivendo desde a chegada do euro? Os 750 mil milhões previstos seriam suficientes para financiar os investimentos exigidos pela transição ambiental da Europa, estimados entre 300 e 400 mil milhões de euros; mas talvez sejam muito pouco quando confrontados com os dois milhões de milhões de euros que o Parlamento Europeu considerou necessários para relançar a ‘Europa’.

 Diz o governo que a tarefa de re-industrializar a Europa vai obrigar a «uma resposta europeia», com «políticas industriais europeias que valorizem mais a produção na Europa de bens que são essenciais.» Como quem faz um pedido aos ‘deuses’, sabendo muito bem que estes não o vão atender, o ministro Santos Silva vai dizendo que a re-industrialização «tem de ser inclusiva e envolver aquela que é a grande riqueza económica da Europa que são as PME»: a soberania económica europeia – diz o ministro – não pode significar a utilização da política de concorrência europeia para beneficiar os campeões da Europa, as grandes empresas europeias, contra os interesses das PME e a utilização da política comercial europeia para «favorecer algumas grandes economias e penalizar outras».

 Ora a história das políticas europeias mostra que elas foram concebidas para favorecer os campeões da Europa, algumas grandes empresas, as grandes empresas europeias, e que têm sido rigorosamente executadas para conseguir este resultado.

A Política Agrícola Comum sempre visou favorecer os grandes países em desfavor dos pequenos, e, em todos os países, os grandes produtores e as grandes empresas capitalistas, à custa da agricultura familiar, dos pequenos e médios produtores agrícolas. A política de concorrência tem estado ao serviço da onda de concentrações registada no sector financeiro e nos sectores industriais e de serviços mais relevantes, actuando, notoriamente, como uma política de concentração, ao serviço das grandes empresas monopolistas dos ‘países dominantes’ no seio da UE. A política das ajudas do estado tem sido um instrumento indirecto de ‘privatização’ das empresas públicas, que a Comissão Europeia utiliza quase discricionariamente para impedir os estados nacionais proprietários de empresas públicas relevantes de ajudar e capitalizar adequadamente estas empresas, de modo a que elas não se comportem como qualquer empresa capitalista que busca apenas o lucro, antes actuem ao serviço do desenvolvimento dos povos. E a política comercial, comandada pela Alemanha, tem alimentado os superavits da balança comercial da Alemanha à custa dos défices dos demais países da ‘Europa’. A política monetária e as regras do euro alemão  têm favorecido sobretudo a Alemanha, ‘colonizando’ os países mais débeis, verdadeiramente ‘privatizados’ pela perda da soberania monetária e cambial e pela aplicação do dogma da independência dos bancos centrais (que coloca os estados nacionais em situação idêntica à de qualquer empresa ou qualquer família: quando precisa de dinheiro para financiar despesas públicas que executam políticas públicas têm de recorrer aos ‘mercados’, isto é, ao grande capital financeiro, acolitado pelas agências de rating, privadas e americanas). Hoje ninguém de boa fé contesta que até as políticas de austeridade foram impostas para defender os interesses dos grandes bancos franceses e alemães.

4 – As grandes opções do PRR são a transição digital e a transição ambiental. Tudo bem. Mas eu receio que a Europa digital possa trazer com ela ‘receitas’ para generalizar o trabalho no âmbito de plataformas digitais, o teletrabalho, o trabalho temporário, o trabalho precário e várias outras formas de mobilidade dos trabalhadores (de uma actividade para outra, de um local para outro), tudo atalhos perigosos para impor regras de despedimento que acompanhem estas ‘modernices’. E receio que consigo a centralização de sectores estratégicos e prestadores de serviços públicos (a informática, a energia, a aviação, os transportes e telecomunicações) nas grandes empresas privadas monopolistas sediadas nos ‘países dominantes’.

 Quanto à transição ambiental, não a consigo levar a sério enquanto vir o nosso Alentejo ‘colonizado’ por empresas (muitas delas propriedade de estrangeiros) que espalham a monocultura do olival intensivo (envenenando os terrenos com adubos e pesticidas químicos) e a produção de frutos exóticos destinados à exportação (a chamada agricultura de sobremesa, muito exigente em água e muito dependente das conjunturas e da exploração de mão-de-obra escrava), que gastam a pouca água que temos,  desviando-a da produção de alimentos, ao mesmo tempo que aumenta a nossa dependência de alimentos importados.

 Vai-se avançando no domínio das energias alternativas porque o negócio é muito rentável (e sem riscos) para os grandes parceiros privados das parcerias público-privadas. Mas por essa Europa fora continuam a circular milhões de camiões transportando produtos que poderiam muito bem ser transportados por via marítima ou por caminho de ferro (a verdade é que a ‘Europa’ não tem nenhum plano ferroviário à escala europeia). Quando ouço os ‘responsáveis’ falar, ‘ecologicamente’, da Europa verde lembro-me sempre da sabedoria do lendário defensor da Amazónia, o brasileiro Chico Mendes: «ambientalismo sem luta de classes é jardinagem».

5 – Por força das crises cíclicas e das pandemias cíclicas que vêm afectando o capitalismo, a ameaça de uma grave crise social à escala mundial é uma ameaça séria. Por isso alguns tentam ressuscitar o deus keynesiano (a que atribuem o ‘milagre’ de, em outro tempo, ter salvo o capitalismo de uma morte que parecia certa).

 Em Novembro de 2020, a Economista-Chefe do FMI defendeu publicamente o regresso a Keynes, alegando que a política monetária já esgotou as suas capacidades para resolver os problemas pendentes:   numa situação de excesso de liquidez, oferecer dinheiro fácil e abundante aos ‘empreendedores’ não é suficiente para que eles invistam; nenhum capitalista investe quando há tanta capacidade produtiva por utilizar, quando as incertezas abundam e quando não há expectativa de lucros. É necessário recorrer à política financeira para combater o défice da procura global: os estados devem apoiar as empresas viáveis que careçam de recursos financeiros, devem efectuar transferências de rendimentos para as famílias, para estimular o consumo privado, e devem levar a cabo amplos programas de investimento público em áreas estratégicas (infraestruturas, saúde, ambiente, economia digital), que estimulem o investimento privado, criem emprego, distribuam rendimento e promovam o futuro crescimento da economia.

Até os eurocratas de Bruxelas ‘descobriram’ a lição do velho Keynes, admitindo os efeitos benéficos (mesmo em termos de défice e de dívida pública) do aumento (multiplicado) do rendimento gerado pelas despesas públicas, sobretudo se estas forem despesas de investimento[1].

 O problema é que as políticas keynesianas pressupõem a existência de um estado nacional soberano. Ora a UE está longe de ser um estado federal (não tem estruturas nem competências que lhe permitam levar a cabo as políticas keynesianas) e os estados nacionais não dispõem dos instrumentos necessários (da soberania indispensável) para as levar a bom termo.

 Os estados nacionais perderam todos os atributos da soberania monetária (emissão de moeda, controlo dos movimentos de capitais, das taxas de juro, das taxas de câmbio e dos níveis de inflação) e o BCE só se ocupa da estabilidade da moeda, não podendo assumir qualquer compromisso com a prossecução de outros objectivos das políticas públicas (combate ao desemprego, crescimento económico, redistribuição do rendimento, equilíbrios regionais, sustentabilidade). Desde a famosa declaração de Mario Draghi (Agosto/2012) anunciando que faria tudo o que fosse necessário para salvar o euro, e, mais intensamente a partir de 2015, o BCE tem distribuído dinheiro a rodos pela banca privada, permitindo que o euro continue a respirar, mas sem conseguir quaisquer resultados no terreno da economia. Todos concordam que não vale a pena insistir nesta política.

 Creio, por outro lado, que a ‘medicina’ keynesiana será hoje menos eficaz do que no período que se seguiu à 2.ª Guerra Mundial. Nos seus tempos áureos, as políticas keynesianas foram aplicadas em economias de base nacional, assentes num forte sector empresarial do Estado (incluindo a propriedade e a gestão de grande parte da banca e dos seguros), na planificação pública da economia, num sistema fiscal relativamente progressivo, numa aposta séria no estado social (sindicatos fortes, sistemas públicos de educação, de saúde e de segurança social, nomeadamente). Nada disto existe hoje.

 Acresce que o regresso a Keynes exige que se mandem para o caixote do lixo (onde as foram buscar) as regras de ouro do equilíbrio orçamental, das finanças sãs e outras regras deste tipo, que integram o arsenal das regras alemãs que governam a Europa do euro; exige que se cortem os freios decorrentes das leis de defesa da concorrência e do regime das ajudas do estado, dogmas intocáveis do culto europeísta; exige que se encerre a ‘indústria’ produtora de produtos financeiros derivados (as famosas armas de destruição maciça); exige que se promova o que Keynes chamou eutanásia do rentista, que se combata a especulação e se encerrem de vez os paraísos fiscais.

 Exige que se leve a sério o aviso dele próprio sobre os perigos resultantes do predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo; exige que se acabe com a liberdade absoluta de circulação de capitais à escala mundial, com o dogma da independência dos bancos centrais e o princípio da banca universal; exige que os estados possam dispor da soberania monetária plena (nomeadamente um banco central que possa financiar directamente as políticas públicas, através da emissão de moeda); exige medidas que combatam a sério a fraude e a evasão fiscal, medidas que tributem as grandes fortunas, os rendimentos do capital e as transacções financeiras e que aliviem a pesada carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, medidas que se traduzam em transferências significativas do estado para as famílias mais pobres (prestações sociais); exige que os descontos patronais para Segurança Social dependam do volume de negócios ou dos lucros globais das empresas e não do número de trabalhadores[2].

 Ora estes pressupostos para o ‘êxito’ das políticas keynesianas desapareceram, por obra das políticas neoliberais levadas a cabo, com fervor religioso, por conservadores e socialistas. Sem recuperar tudo o que o neoliberalismo matou, o regresso a Keynes não passa, a meu ver, de uma ilusão, que rapidamente conduzirá a um beco sem saída.

6 – Num ensaio (de 1943!) em que estudou os aspectos políticos do pleno emprego, tornando claras as razões que levam o grande capital a opor-se às políticas activas de pleno emprego, Michael Kalecki defende que «a ignorância [ou o ‘esquecimento’] obstinada é normalmente uma manifestação de motivos políticos subjacentes». Este diagnóstico com quase oitenta anos continua perfeitamente válido: os políticos que seguem, religiosamente, os dogmas da ‘igreja de Bruxelas’ sabem muito bem o que fazem, cumprindo o seu programa político, cuja execução tem arrastado consigo, como efeito colateral, a emergência dos movimentos fascistas.

 Na Europa, hoje como há 80 anos, a defesa da democracia exige o controlo público da banca, dos seguros e das indústrias estratégicas, e exige o reforço do estado social (sistema público de educação gratuita e de qualidade; sistema público de saúde universal e gratuito; sistema público de segurança social). E exige um combate sem tréguas ao desemprego e ao trabalho sem direitos. A conclusão de Kalecki mantém-se actual: «A luta das forças progressistas a favor do pleno emprego é ao mesmo tempo um modo de prevenir o regresso do fascismo».

 O bom senso aconselha a não esquecer a História e a fazer tudo para que ela não se repita. Só assim se pode evitar a ascensão do populismo (o populismo de fora com o fascismo escondido) e salvar a democracia. Mas a ‘Europa’ continua fiel ao catecismo neoliberal, prosseguindo nas políticas que, em vez de combaterem o desemprego e promoverem o pleno emprego, geram desemprego, precariedade, baixos salários, pobreza.

 Em 2010 (Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza) a ‘Europa’ tinha cerca de 85 milhões de pobres (dos quais 19 milhões eram crianças). A recente Cimeira Social do Porto (7-8 de Maio/2021) deixou claro que há na ‘Europa’ 95 milhões de pessoas em risco de pobreza e de exclusão (das quais 18 milhões são crianças).

 Perante esta realidade, a Cimeira ‘revolucionária’ prometeu (só prometeu…) que, até 2030, irá tirar da situação de pobreza 15 milhões de pessoas (das quais 5 milhões de crianças). Ainda continuarão na pobreza 80 milhões de europeus (13 milhões de crianças).

 Neste tempo que tanto se vem falando do regresso a Keynes, poderia pensar-se que os dirigentes europeus anunciassem a viragem do neoliberalismo para políticas promotoras do pleno emprego. Mas não. A Cimeira só prometeu arranjar trabalho para 78% dos trabalhadores europeus (12% continuarão no desemprego, para não esvaziar o exército industrial de reserva).

E isto mesmo não passará de promessas. Este keynesianismo oportunista não passa de vira-casaquismo filho do medo. Estes keynesianos de aviário não estão dispostos a seguir os caminhos apontados pelo seu pretenso inspirador. Fizeram um ‘número’ semelhante na sequência da crise aberta em 2008 (que teve a sua origem nas práticas criminosas do sector financeiro – até o FBI as classificou deste modo). Mas, na realidade, nada se fez, em todo o mundo capitalista, para regular e pôr nos carris o sector financeiro.

 A Europa do euro não se reforma e não creio que seja reformável. Logo que passe esta epidemia viral, outra epidemia se anuncia:   as regras do euro vão regressar ao trabalho, como vêm avisando os comissários de Bruxelas, obrigando a cortar nas despesas sociais para evitar o défice das contas públicas e para ‘libertar’ o dinheiro necessário para pagar os encargos da dívida.

 Há o risco de cairmos numa espécie de keynesianismo militarizado, porque as despesas com armamento têm crescido aceleradamente desde o fim da Guerra Fria, ao contrário do que seria de esperar. Afinal, parece que a economia armamentista não decorria das necessidades de defesa perante o perigo do expansionismo soviético, mas, ontem como hoje, dos interesses associados ao que Eisenhower chamou complexo militar-industrial.

 Em entrevista ao Público (8/Março/2020), António Costa, talvez num momento de pouca concentração, deixou cair esta sentença: «Tenho dificuldade em ser optimista sobre a Europa». Pensando bem no assunto, eu acompanho-o.

 Concluo: na Europa de hoje, a luta pela defesa e pelo reforço do estado social é um dos pontos fulcrais da luta pela democracia.

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[1] Acontece que, em países como Portugal, este efeito multiplicador da despesa pública pode sofrer algumas ‘fugas’, entre as quais pesam as ‘fugas’ de dinheiro para os alçapões da corrupção. Portugal é considerado pelas autoridades da UE um dos países mais corruptos da UE, que não executa muitas das recomendações para combater a corrupção e não cumpre a própria legislação em vigor.

 Há estudos que apontam para 18 mil milhões de euros o valor que Portugal perde, todos os anos, em resultado da corrupção. É muito dinheiro envolvido neste ‘negócio’! Mais dinheiro do que o da tal bazuca… Numa entrevista à Antena1 (7/Julho/2021) o Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), a propósito da proposta da ASJP de criminalização da sonegação de rendimentos ilícitos recebidos por titulares de cargos políticos e de certos cargos públicos no exercício das suas funções, declarou que as propostas apresentadas pelo PS e pelo PSD no Parlamento continuam a impedir qualquer política séria e eficaz de combate à corrupção. Não há dúvida: as bruxas existem, mesmo que nós não acreditemos nelas…

 É notório, creio eu, que gente ligada a estes partidos controla, em regime de ‘monopólio’, o chorudo ‘negócio’ da corrupção. Como são eles que fazem as leis, é claro que estas leis são feitas para proteger o ‘negócio’ (os negociantes) e o monopólio (porque neste negócio não são convenientes as sagradas leis da concorrência, mães de todas as virtudes democráticas…). Assim vai o mundo… talvez um dia aconteça a estes partidos o que, aqui há uns anos, aconteceu na Itália aos ‘partidos do sistema’: morreram, minados pela podridão.

[2] Creio que é com este sentido que, já em 1993, o alemão Ralf Dahrendorf (um filósofo liberal, não um perigoso revolucionário) lembrava o exemplo de um sindicato japonês que «resolveu recrutar robôs como seus associados e cobrar-lhes quotas muito elevadas». O caminho é esse. Mas quem deve fazer esses descontos para segurança social não são os ‘robôs’, são as empresas que os têm ao seu serviço.

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[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 8 de novembro de 2021]