Brasil: Contragolpes, para resistir e avançar
O elevado número de pessoas que tomaram as ruas de muitas capitais brasileiras, no último de 4 de setembro, em manifestações contra o novo “governo”, é uma prova de que o movimento de mobilização social no Brasil não foi sufocado, fazendo com que o projeto de retração democrática não tenha nenhuma chance de vingar
O que não foi
O primeiro aspecto a ser ressaltado é que só a Janaína acha que a Presidenta Dilma caiu por causa de pedaladas fiscais, que as razões de sua peça jurídica, ditadas por Deus, foram as motivações dos votos dos congressistas e que a partir da condenação de uma pessoa, a quem nunca se acusou de ter praticado qualquer ato de enriquecimento ilícito, se terá livrado o Brasil da corrupção e da imoralidade. Aliás, bem ao contrário, a punição de uma pessoa sem acusação de desvio moral, realizada por tantas outras às quais não faltam tais acusações, acaba sendo um elogio à imoralidade.
E só algumas pessoas tendenciosas e outras desinformadas, pensando a realidade total apenas a partir de seus interesses particulares imediatos, consideram que o “impeachment” se deu por razões econômicas, mais propriamente por conta de uma “crise”. Neste aspecto econômico, ademais, sobressai a contradição de utilizar o “impeachment” como forma de recuperar a economia, pois, como gostam de falar os economistas, os investidores confiam em ambientes onde há segurança jurídica, e como se pode fazer propaganda neste sentido sobre um lugar em que se promoveu uma quebra institucional motivada por interesses obscuros? Além disso, muito mais grave para a economia nacional é a postura de sonegação de impostos assumida como prática por tantas empresas que “patrocinaram” o “impeachment”, sendo bem interessante verificar como os “erros” dessas empresas são tão facilmente perdoados pelo senso comum construído midiaticamente...
Há, por certo, aqueles que pensam que a Presidenta caiu porque era “dura demais” ou porque o Eduardo Cunha, todo poderoso, quis; ou, ainda, porque a classe média brasileira não queria mais ver pobres em aeroportos, sendo que, por isso, o “impeachment” teria sido uma reação aos avanços sociais protagonizados pelos governos petistas.
O que pode ter sido: a efervescência social
Poder ser que o impeachment, como em tantas outras ocasiões na história recente do Brasil, iniciado para simplesmente tentar desestabilizar o governo e desse modo favorecer a obtenção de vantagens políticas e a satisfação de interesses particulares, tenha fugido do controle, como se deu, aliás, com a própria Lava Jato, e aí a “brincadeira” acabou indo longe demais, entrando em um caminho sem volta, o que seria demonstrado, inclusive, pelo fatiamento realizado ao final da votação do impeachment no Senado.
Talvez tenha sido o efeito da somatória de tudo isso, além de outros aspectos menos difundidos.
Mas a situação, posta em perspectiva histórica, nos conduz a outra hipótese, bem mais plausível.
De fato, o “impeachment”, construído como elemento de pressão, acabou crescendo diante do aumento da fragilidade do governo, o que se intensificou de 2013 em diante.
Concretamente, uma mobilização social progrediu sensivelmente no Brasil nos últimos anos, podendo-se lembrar, dentre inúmeros eventos, as greves estudantis de 2011 na Universidade de São Paulo e a ocupação do Pinheirinho em 2012. Essa tensão, provocada, sobretudo, pela ausência de ressonância nas vias democráticas institucionalizadas, vai explodir em 2013, principalmente por conta da percepção das violências que se vinham cometendo nas periferias das cidades, com as remoções, para a execução das obras de preparação para a Copa, evento que incomodava, igualmente, a classe média por causa das notícias dos favorecimentos desmedidos do setor público a segmentos empresariais específicos e da difusão do “jogo sujo” das tratativas político-partidárias para manter o projeto de poder.
O fato é que em junho de 2013 uma gama enorme de insatisfações vai parar nas ruas e quando, novamente, tenta se impor o Estado Policial ao Estado Social e à democracia, a mobilização cresce exponencialmente, atingindo os mais variados setores da sociedade. Esse, ademais, é um aspecto que não pode ser esquecido nas análises, sobretudo por quem se coloca na questão do impeachment em defesa da democracia: o que impulsionou as mobilizações de junho de 2013 foi, precisamente, a falência democrática e a persistência de entulhos autoritários e ditatoriais nas instituições brasileiras.
O governo petista possuía unicamente um projeto de poder e naquele instante realizar a Copa e, posteriormente, as Olimpíadas, era uma questão de honra. Por isso, virou as costas, de forma muito explícita, aos movimentos sociais, à juventude e à classe trabalhadora, patrocinando, inclusive, a aprovação da lei do terrorismo para conter as mobilizações contra os eventos. Além disso, fez-se de surdo às reivindicações que vinham das mobilizações por direitos sociais, chantageando as forças de esquerda para que se retirassem das ruas.
Do ponto de vista trabalhista, incentivou a terceirização e estabeleceu uma política de favorecimento das empreiteiras, sem conseguir, no entanto, alianças nos setores dominantes da sociedade.
Ao contrário do pretendido, o governo se fragilizou e essa fragilidade aumentou quando, para tentar ganhar as eleições de 2014, buscou uma aproximação com a classe trabalhadora e os movimentos sociais dizendo que não mexeria em direitos trabalhistas, mas logo no primeiro ato, após eleito, fez exatamente o contrário por meio de duas Medidas Provisórias: MPs 664 e 665.
A consciência e as mobilizações sociais, até por conta dessa traição explícita, caracterizada também pela utilização dos aparelhos repressivos do Estado, continuaram crescendo, atingindo de forma mais intensa as periferias das principais cidades do país e também a diversas categorias de trabalhadores, que se manifestavam por meio de um número cada vez maior de greves, muitas delas deflagradas por fora das estruturas sindicais, onde, também, a falência democrática, em muitas entidades, ainda subsiste.
Como ato de coragem e até de audácia as pessoas permaneceram expressando os seus “desejos reprimidos”. Impulsionada pela percepção de que seria possível, por meio da luta social, satisfazer essa insatisfação historicamente reprimida, uma onda quase revolucionária percorreu o país buscando a efetividade de direitos sociais e uma maior democratização das instituições.
Neste aspecto é importante destacar que a progressividade se verificava – e ainda se faz presente, de forma cada vez mais intensa –, igualmente, na linha da tolerância, do acolhimento das diversidades, do desenvolvimento da solidariedade e da busca da igualdade, que são sentimentos essenciais para a evolução da condição humana. Por isso, na perspectiva reacionária a quebra institucional se faz necessária para conter os movimentos que buscam a efetiva superação da discriminação nas questões de gênero, raça, etnia e orientação sexual. No imaginário da reação conservadora haveria de se fazer algo para conter o avanço do “comunismo” no país e o aprofundamento da lógica do Estado de exceção poderia ser bastante útil para essa atuação repressiva.
A reação da classe dominante
Fato é que setores dominantes se sentiram efetivamente ameaçados pela dinâmica social e diante da constatação da fragilidade do governo perceberam que este não seria capaz de conter as mobilizações.
A fragilização do governo, portanto, foi a oportunidade, determinada pela necessidade, para o conservadorismo atuar por meio do aprofundamento dos mecanismos do Estado de exceção para conter o avanço das mobilizações sociais, que, em certa medida, já influenciavam muitas instituições, como o próprio Poder Judiciário, onde decisões “progressistas” se intensificavam. É por isso, aliás, que a reação conservadora tem como um dos pontos principais a reforma do Judiciário, com instauração da “disciplina judiciária”, vinculando as decisões dos juízes ao direcionamento dado pelas cortes “superiores”; e é por isso também que se tenta fazer do Supremo Tribunal Federal um elemento proeminente dessa reação.
O que se busca, então, por meio da quebra institucional, é colocar no poder um governo que não possua compromissos eleitorais e que assuma, sem qualquer lastro em um debate publicamente estabelecido, a postura de reprimir, com toda força policial e policialesca que tiver à disposição, os movimentos sociais, trabalhistas e da juventude, e ainda desenvolver uma política direcionada explicitamente a favorecer ainda mais aos interesses dos setores econômicos dominantes. A composição e as manifestações do novo governo não deixam margem à dúvida quanto aos seus objetivos.
Dividindo e fragilizando a classe trabalhadora e os movimentos sociais
Há de se perceber, ademais, qual é a estratégia utilizada, que visa a inverter o direcionamento dos fatos: impor retrocessos para colocar os movimentos sociais na defensiva, tomando como certo que a ação defensiva constitui, em si, um obstáculo para a ação reivindicatória, progressiva e até, de certo modo, revolucionária, que se vinha verificando.
Do ponto de vista restrito dos trabalhadores, a estratégia de impor retrocessos tem também o “benefício” de dividir a classe trabalhadora e isso repercute em dois aspectos altamente relevantes da consciência de classe: dificultar a ação coletiva e, como consequência, estimular a ação individua, egoísta; e introduzir na visão de mundo dos trabalhadores o sentimento básico da lógica econômica, que é a concorrência.
Mesmo já dividida em categorias, agindo setorialmente, a classe trabalhadora ainda assim se mobiliza coletivamente, em uma única direção, da melhoria das condições sociais, o que contribui para a consciência de classe e a formação política.
Com a divisão indiscriminada e convencida das inexorabilidades determinadas pela crise econômica, o que se produz são buscas individuais pela sobrevivência, vendo-se no outro trabalhador um concorrente a ser vencido.
O papel da grande mídia
No sentido de se colocarem os trabalhadores uns contra os outros, sobretudo os que não têm emprego contra os que estão empregados, a grande mídia possui posição de relevo, atuando como porta-voz da classe econômica dominante, sendo que também fala por si, na qualidade de entidade empregadora, deixando completamente de lado, por isso, alguma qualquer funcionalidade de veículo de informação que pudesse ter.
O papel assumido pela grande mídia é o de convencer os trabalhadores de que a legislação trabalhista é velha, que ela é culpada pelo desemprego e que a única forma de resolver o problema do desemprego é realizar uma reforma trabalhista que retire direitos. Assim os trabalhadores não são apenas colocados uns contra os outros como são também colocados contra os seus próprios direitos, que passam a ser vistos como privilégios.
Insistir na pauta de reduzir direitos como forma de resolver problemas econômicos é uma estratégia de divisão da classe trabalhadora também no aspecto de que alguns trabalhadores – ou entidades representativas de trabalhadores – se convencem disso e outros não, instaurando-se uma disputa muitas vezes fratricida.
E tudo isso a partir do argumento da existência de uma crise econômica, que não precisa ser explicada ou comprovada. Faz-se parecer que o capitalismo é um modelo de sociedade perfeito, no qual tudo funciona em uma harmonia glorificada, e que se apresenta problemas ou é por erros dos governantes ou dos próprios trabalhadores, que, afinal, querem melhorar de vida por meio de direitos. A economia se desajusta e as vítimas imediatas são os trabalhadores. No entanto, os trabalhadores são apontados como os culpados da situação.
O sistema confessa que não há espaço para uma efetiva melhora da classe trabalhadora no plano trabalhista, pois não consegue sequer garantir a efetividade de direitos sem que a economia entre em crise, mas isso não se consegue perceber porque a crise, de forma tautológica, se explica pelos direitos que não consegue cumprir; e os trabalhadores são colocados para correr atrás do próprio “rabo”, já que não vislumbram como de fato se organizam e se processam as mágicas do capital.
É importante perceber que só a difusão midiática da necessidade emergencial dessas reformas profundas para “salvar a economia” e “gerar empregos” já é por si eficiente para produzir esses efeitos todos, aos quais, inclusive, deve-se acrescentar a postura de desrespeito aos direitos que muitos empregadores passam a adotar de forma mais assumida e despudorada, com reflexos, igualmente, nos próprios trabalhadores que não possuem força individual para exigir o cumprimento de seus direitos ou que até mesmo passam a considerar que tais direitos são impróprios.
Desde que a quebra institucional se consolidou não há um só dia em que notícias de reformas trabalhistas não invadam a grande mídia por meio de “especialistas”, editoriais e, sobretudo, como repercussão de falas de membros do novo “governo”, tendo estado presente inclusive na primeira manifestação oficial do novo chefe do Executivo.
A classe trabalhadora é submetida a um processo incessante de ameaças, para lhe impor medo e destruir a sua consciência. Expressam o mais nítido ódio de classe e o fazem como se estivessem protegendo os “tadinhos” dos trabalhadores que foram enganados pelos oportunistas e populistas que lhes deram a esperança de que poderiam ter direitos.
Assim, independente de alterações legislativas, a reforma trabalhista (rectius, retirada de direitos) já está em curso e, de fato, não se trata de algo novo na história do Brasil, representando, apenas, o aprofundamento do que há muito já se vinha realizando nessa área da relação capital-trabalho em nossa realidade.
Aliás, é interessante perceber que essa campanha incansável, desesperada mesmo, da grande mídia sobre o assunto é demonstração mais que suficiente de que a própria classe dominante já se deu conta de que a ilegitimidade do novo “governo", expressa também na sua total ausência de base política e de apoio popular, não lhe permitirá realizar as tais reformas trabalhistas pretendidas a não ser que o faça muito rapidamente, enquanto a força repressiva e o medo surtirem efeito e enquanto também problemas maiores do novo “governo” não venham à tona, cabendo lembrar, a propósito, as três baixas ministeriais havidas e as revelações da Lava Jato que não param de surgir.
O empecilho da Constituição
Mas é claro que a oportunidade dada pela quebra institucional não será perdida e se tentará, enfim, consagrar o sonho dourado de parte da classe dominante empresarial que é acabar com os direitos trabalhistas trazidos na Constituição de 1988, pois, afinal, as normas constitucionais, em situações concretas, podem ser invocadas para impedir retrocessos sociais.
Lembre-se que a Constituição e as normas internacionais de Direitos Humanos, atraídas pela Constituição para o ordenamento jurídico nacional, consagram o princípio da melhoria progressiva da condição social dos trabalhadores, trazendo consigo, obviamente, a cláusula do não retrocesso. Assim, a mera estratégia da imposição de retrocessos é uma afronta à Constituição, daí porque a mudança constitucional tem-se apresentado, desde 1989, como uma pauta reacionária.
O que muita gente não percebe é que se for possível alterar a Constituição para um aspecto específico – ou simplesmente se deixar de aplicarem alguns de seus dispositivos – estará aberta a porta para que todas as garantias nela existentes sejam afastadas, favorecendo o advento de um regime ditatorial.
A defesa de reforma trabalhista precarizante como estratégia
Vale perceber que as reformas que se defendem insistentemente inserem-se na mesma estratégia da divisão e fragilização da classe trabalhadora. A reforma trabalhista quando pauta a terceirização não está buscando maior eficiência produtiva ou redução de custos, está, isto sim, estimulando a divisão da classe trabalhadora, pois com a possibilidade de intermediação sem limites permite que em um mesmo local de trabalho se tenha vários trabalhadores de categorias distintas atuando para empregadores diferentes, os quais, no fundo, nem são representantes do capital, mas meros intermediários.
Assim, nem os trabalhadores se identificam uns com outros, diante da dificuldade de socialização pelo trabalho, vez que também podem ser transferidos para outro tomador de serviços caso comecem a “criar vínculos”, e também porque, não raro, estão concorrendo entre si pela possibilidade de uma efetivação no tomador de serviço, quanto eventual conflito que se estabeleça no local não se dá entre o trabalho e o capital e sim entre o trabalho e um intermediário do capital, às vezes tão descapitalizado quanto o próprio trabalhador. Dessa forma, o trabalhador terceirizado, porque se insere em uma relação intermediada, é jurídica, social e politicamente fragilizado e ainda possui uma dificuldade intransponível de extrair, pela força negocial, um maior ganho de seu formal empregador.
E, acoplado à terceirização, a reforma traz a proposição do “negociado sobre o legislado”, dentro da mesma lógica de divisão. Ora, quando se diz que os trabalhadores, coletivamente organizados, podem renunciar a direitos que foram historicamente conquistados e consagrados em leis, o que se está estabelecendo é que a fragilidade que os trabalhadores individualmente considerados sentem diante do poder do capital não se altera quando se organizam coletivamente. Nesse sentido, há um desestímulo à atuação coletiva, até porque pouco resultado positivo projeta.
A implementação de reformas prejudiciais à classe trabalhadora pela via da negociação coletiva – valendo lembrar que negociar para mais nunca foi proibido e se insere na lógica própria do Direito do Trabalho – remove do capital qualquer peso pela retirada de direitos, vez que se transfere para os próprios trabalhadores, coletivamente organizados essa responsabilidade, sendo certo que em um ambiente no qual os trabalhadores já foram fragilizados pela terceirização e pelo massacre midiático em torno da existência de uma crise econômica provocada pelo custo do trabalho, fica praticamente impossível estabelecer qualquer tipo de resistência e isso provoca nova divisão entre os trabalhadores e o sindicato (e sua direção).
Neste contexto não perder direitos ou perder poucos aparece como uma grande vitória. Esse processo, de todo modo, é desagregador da classe, provocando mais e mais conflitos internos, enquanto o capital – sobretudo o capital estrangeiro – assiste a tudo de camarote, tendo como único cuidado o de evitar uma intervenção do Judiciário trabalhista em defesa dos trabalhadores, vindo daí os ataques recorrentes à Justiça do Trabalho e as tentativas, inclusive, de influenciar a atuação do STF no sentido de uma autêntica intervenção autoritária, para garantia da “segurança dos negócios”, em matéria trabalhista.
A coisa é tão maldosamente articulada que já sabendo que nenhuma dessas reformas tem de fato algum peso para a melhoria da economia, muitos economistas de plantão tratam logo de difundir a ideia de que mesmo com todas as reformas a economia não vai melhorar de uma hora para outra, prevendo-se alguma melhora, pequena, para daqui a quatro/cinco anos... Ou seja, o capitalismo brasileiro teria, por assim dizer, uma insígnia à lá 007: uma licença para matar!
Resistir e avançar
Surge a necessidade de avaliar se essa estratégia terá alguma chance concreta de se efetivar. Mas, se já é bastante difícil ler o passado recente e quase impossível falar do presente, imagine, então, projetar o futuro, até porque os elementos são muito complexos e se interligam historicamente.
De todo modo, uma boa pista se tem: é que se há uma impossibilidade de prever o futuro, parece certo dizer que as estratégias imaginadas pela classe dominante empresarial também não têm a garantia de que produzirão os efeitos almejados, pois o pêndulo da história está sempre em movimento.
Falando em termos jurídicos, as tentativas de impor retrocessos e sofrimentos à classe trabalhadora terão enormes dificuldades para se efetivarem. Ora, se já não se conseguiu realizar essa obra na década de 90, quando o Direito do Trabalho estava em baixa e a Justiça do Trabalho estava à beira do caos, muito mais difícil – e, por que não dizer, impossível mesmo – fazê-lo agora, quando o Direito do Trabalho se tornou o ramo mais proeminente do Direito, com multiplicação dos profissionais habilitados e competentes para atuarem na área, sendo a maior parte deles voltada ao compromisso, explicitamente firmado, de fazer valer o preceito constitucional, inscrito no caput do artigo 7º, inciso I, que estabelece a obrigatoriedade da melhoria da condição social dos trabalhadores. Além disso, é cada vez maior a parcela da sociedade que não pretende ceder aos anseios de um capitalismo depredatório.
Os mecanismos jurídicos de resistência e mesmo de imposição de prevalência dos valores humanos e sociais sobre os do capital irresponsável são inúmeros e, de fato, enquanto não se assumirem a relevância e a essencialidade dos direitos humanos e sociais, não haverá segurança jurídica para os transgressores dos direitos constitucionais.
A introdução no Direito do Trabalho de elementos jurídicos que buscam privilegiar interesses obscuros, mascarados de bem comum, para dividir, fragilizar e, finalmente, destruir a classe trabalhadora, é uma tarefa irrealizável ou que ao menos tende a não encontrar vida fácil no âmbito da prática trabalhista.
Do ponto de vista do próprio sistema econômico, ademais, a destruição da classe trabalhadora é uma ação autofágica, afinal, o capital só se reproduz pela exploração do trabalho e no sentido conceitual o trabalho é o capital vivo. Para haver capitalismo, portanto, é essencial que exista uma classe trabalhadora e que esta, politicamente considerada, não esteja completamente descontente com o modelo de sociedade que lhe é imposto.
Nesse sentido, a precarização generalizada da classe trabalhadora pode favorecer por certo aos interesses imediatos de alguns setores econômicos mais diretamente, mas tende a provocar, na mesma proporção, um descontentamento geral dos trabalhadores, além de poder prejudicar, inclusive, outros segmentos econômicos.
Aliás, a forma agressiva como se tem avançado sobre os interesses da classe trabalhadora já é por si suficiente para que se consiga perceber o funcionamento do sistema, permitindo que se ponha em questão a utilidade mesma do uso da inteligência para ficar tentando salvar um modelo de sociedade cujos maiores beneficiados, que são a minoria da população, não se contentam em ser “VIPS”. Querem mais: querem fazer sofrer aqueles cujo trabalho lhes proporciona a riqueza e com isso acabam projetando a destruição de toda a sociedade.
Assim, apresenta-se a contradição entre perceber a perversidade de um sistema que preconiza a derrocada de direitos trabalhistas e sair em defesa desse sistema por meio da resistência a essa mesma derrocada. Concretamente, a busca da melhoria da condição social dos trabalhadores por meio do direito serve à preservação do modelo de sociedade capitalista e esse modelo é essencialmente perverso e injusto, conforme vêm declarando expressamente os seus mais diretos representantes.
O problema é que o que esses capitalistas irresponsáveis apenas querem é colocar dinheiro no bolso para comprar carro blindado, morar em condomínios com segurança 24 horas e só saírem às ruas em passeio no exterior. Se o efeito da satisfação do seu interesse é o aumento da miséria, da violência urbana, inclusive doméstica, instaurando-se um clima de barbárie, pouco lhes importa.
Então, mesmo percebendo a contradição, é preciso emprestar nossa inteligência para servir à lutar pela melhoria das condições sociais da classe trabalhadora, sem deixar de consignar o registro de que essas melhorias jamais serão nunca suficientes para se atingir um patamar de efetiva justiça social, sendo que a prova concreta disso é o retrocesso que a classe dominante tenta lhe impor sempre que os direitos sociais e trabalhistas avançam um pouco.
Fato é que o efeito da generalização da precarização, que se projeta para a ampliação dos proveitos do capital, pode significar uma reação unificada a partir de uma percepção comum, reconstituindo-se, para fora das amarras jurídicas, o sentido da classe trabalhadora e aí as lutas não se farão mais para melhorar o salário desta ou daquela categoria, podendo-se, pois, projetar o advento de greves gerais para ampliar a participação integral da classe trabalhadora na produção da riqueza nacional.
Se as meras propostas recorrentes de reformas trabalhistas que almejam o aprofundamento das formas perversas de exploração do trabalho já provocam um grande mal à classe trabalhadora, essas mesmas falas, uma vez percebidas em suas violências e no seu caráter ideológico, constituem elemento suficiente para uma unificação da classe trabalhadora e mesmo para a produção de um novo ciclo de reais avanços sociais.
Aliás, em termos reais se está muito mais próximo desses avanços do que dos retrocessos, pois como as reformas trabalhistas, se implementadas, não trarão, como se sabe, qualquer melhoria na economia e, pior, acabarão favorecendo a acumulação do capital nas mãos de poucas empresas que promovem uma recorrente evasão de divisas, o efeito da sua implementação tende a promover uma insatisfação também generalizada, que pode ser “capitalizada” em proveito da coletividade, para uma ação ordenada por melhorias sociais, mas que também pode resultar em uma situação de violências gratuitas, da qual todos são vítimas.
A porta aberta para o futuro
A situação imediata será muito dura para a classe trabalhadora, por certo, mas não é desesperadora. Não se está “no fim da história” e muito menos o momento dialeticamente considerado é aquele que se imaginou atingir quando se projetou a quebra institucional para conter as reivindicações sociais.
Contrariamente ao que se imaginou, superado o aprisionamento no qual o argumento do mal menor mantinha a classe trabalhadora, vez que impedia mobilizações populares à esquerda para não “desestabilizar” o governo e não “fazer o jogo da direita”, eliminada a cegueira do “fla-flu” partidário (PTxPSDB - ambos derrotados), abriu-se a porta para que o caminho, iniciado em 2013, da reivindicação da aplicação concreta dos direitos sociais, constitucionalmente consagrados, fosse retomado ainda com mais força, já que se percebeu, também, os equívocos de uma postura de conciliação cujo resultado é sempre o de perdas para a classe trabalhadora.
Se muitos não quiseram ir às ruas contra o impeachment, porque não pretendiam se aliar a uma suposta defesa do petismo ou para não serem tomados por “petralhas”, como eram chamados todos que se punham contra o impeachment, agora esse obstáculo não mais se coloca.
O elevado número de pessoas que tomaram as ruas de muitas capitais brasileiras, no último de 04 de setembro, sobretudo, em São Paulo, em manifestações contra o novo “governo”, é uma prova de que o movimento de mobilização social no Brasil não foi sufocado, fazendo com que o projeto de retração democrática não tenha nenhuma chance de vingar.
A resistência às derrocadas de direitos trabalhistas (e previdenciários), a denúncia da ilegitimidade do atual governo e a militância para alcançar avanços sociais concretos nada têm a ver com a defesa do governo Dilma ou do PT. Possui, ademais, uma função desmobilizadora a tentativa da grande mídia de nominar os atos anti-Temer como atos a favor de Dilma, ainda que a própria ex-Presidenta, em seu discurso final (apresentado com atraso melancólico de 03 anos), tenha dito que a sua oposição ao novo governo não se faria para uma redenção de natureza pessoal.
Aliás, uma grande contribuição que o petismo podia dar à renovação da esquerda no Brasil é não querer tirar proveito político partidário dos atos de resistência e muito menos utilizá-los como forma de ressaltar os méritos de seus governos, buscando, inclusive, difundir o saudosismo de um passado que não existiu.
Do ponto de vista estritamente jurídico, parece-me uma grande ilusão considerar que um retrocesso que pode gerar enorme sofrimento a milhões de pessoas venha se consolidar sem maiores resistências, mesmo que acompanhado de brutal, ilegal e absurda força repressora, até porque a humanidade está condenada a evoluir e no aspecto da consagração de Direitos Humanos e Sociais há muito se está trilhando um caminho sem volta.
Assim, sempre se terão os fundamentos extraídos do conjunto de regras e princípios (legais, constitucionais e supraconstitucionais) para implementar uma eficaz resistência à derrocada de direitos, e não faltarão profissionais habilitados e comprometidos para a realização dessa tarefa.
A propósito, no contexto em que as coisas se colocam de forma mais clara, a tendência é que a atuação jurisdicional e a mobilização dos trabalhadores não se limitem a coibir as perdas, até porque bem se tem bem o conhecimento das tantas derrotas já experimentadas nos últimos anos com a lei de recuperação judicial, o aumento da terceirização (sobretudo no setor público, com destaque para a ADIn 1923, que possibilitou a terceirização da própria administração pública nas áreas da saúde, desporto, lazer, ciência e tecnologia) e a preservação do permissivo da dispensa arbitrária.
Até como forma de verificar a seriedade e o real comprometimento da mobilização contra as propostas precarizantes do atual governo, porque ferem preceitos jurídicos trabalhistas, impõe-se que o movimento de resistência se direcione também para: superar a Súmula 331 do TST, eliminando a terceirização nas relações de trabalho, sobretudo no setor público; coibir a dispensa contra a dispensa arbitrária, tanto coletiva quanto individual, nos termos do art. 7º, I, da CF, e Convenção 158 da OIT; não aplicar a lei de recuperação judicial para dívidas trabalhistas de empregados que tenham sido dispensados da empresa; conferir igualdade de direitos entre as empregadas domésticas e os demais empregados; não homologar acordos que representem renúncias a direitos; aplicar a responsabilidade objetiva do empregador nos acidentes do trabalho; coibir toda forma de discriminação e todo tipo de revista no ambiente de trabalho; obstar as políticas de gestão degradantes da condição humana dos trabalhadores; punir aquele que explora trabalhadores em condições análogas à de escravo; punir o empregador contumaz no desrespeito aos direitos trabalhistas; declarar a inconstitucionalidade do banco de horas e das horas extras ordinariamente prestadas etc., vez que, igualmente, agridem a Constituição Federal, as leis do trabalho e os princípios jurídicos trabalhistas.
Quando se fala em resistência ao golpe, entendende-se este como uma forma de eliminar direitos trabalhistas (e previdenciários), é essencial que se adote a postura acima referida, afinal em se tratando de direitos da classe trabalhadora os golpes vêm se renovando há mais de 50 anos.
[Artigo tirado do sitio web ‘Agência Carta Maior’, do 6 de setembro de 2016]