Brasil: As motivações do golpe e o recrudescimento autoritário
O processo iniciado em 2016 aprofunda seu caráter de quebra institucional, configurando em definitivo um formato de golpe de Estado. Convém agora fazer um primeiro balanço do significado do golpe e como a conjuntura irá se processar potencialmente a partir da consolidação do atual quadro
“Só nos resta uma saída: uma crescente mobilização dos que repudiam a ‘política por outros meios’, como ardil dos que mandam e podem! Com os objetivos correlatos de sempre – remover a autocracia e desencadear a revolução democrática.” (Florestan Fernandes, 1988).
Com a votação da última quarta-feira (04/04/18) no STF (Supremo Tribunal Federal) e com a eminente prisão de Lula, o processo iniciado em 2016 aprofunda seu caráter de quebra institucional, configurando em definitivo um formato de golpe de Estado com nítido envolvimento de grande parte do judiciário e da mídia nacional. Estes pontos parecem ser consensuais em grande parte das análises independentes e democráticas.
Convém agora fazer um primeiro balanço do significado do golpe e como a conjuntura irá se processar potencialmente a partir da consolidação do atual quadro. Assim este texto busca imputar quatro sentidos estruturantes a ruptura institucional: i) o golpe foi contra o trabalho: no sentido distributivo e no sentido organizativo; ii) o golpe foi contra a soberania nacional, no sentido de fortalecimento da hegemonia estadunidense e no sentido de recrudescimento das condições de dependência nacional; iii) o golpe foi contra os movimentos organizados, no sentido de uma agenda de negativação dos movimentos sociais (casos do MST e MTST) e de desorganização da esquerda brasileira e; iv) o golpe foi pela retomada do crescimento das taxas de lucro dos capitais, no quadro de manutenção do padrão financeirizado da economia.
Primeiramente o golpe foi contra o trabalho, seja no sentido distributivo da renda, seja no sentido organizativo dos movimentos sociais e de trabalhadores, o que implica que o centro da lógica conservadora e autoritária estabelecida tem como objetivo recolocar as condições históricas de superexploração do trabalho, negando e destruindo o aparato de regulação das relações de trabalho, do contrato social estabelecido nas últimas décadas e desmobilizar as organizações de trabalhadores (Sindicatos e movimentos independentes).
Vale denotar que os avanços, mesmo que limitados dos governos petistas, foram resultados de longo acúmulo de forças em torno dos movimentos de resistência popular, sendo que a capacidade acumulada na luta contra a ditadura estabeleceu um patamar superior de regramento social, inclusive levando a concessões importantes por parte das classes dominantes, especialmente nos aspectos de direitos trabalhistas e da seguridade social.
O salário real médio cresceu no período de 2003 a 2014 a uma taxa bem superior as três décadas anteriores, especialmente se descolando da década de 90, marcadamente de perdas para os diversos segmentos de trabalhadores (formais e informais). Essa alteração real dos ganhos médios podem ser vistas comparando-se os valores do salário mínimo em dólares: em 2000, um salário mínimo comprava, aproximadamente, oitenta dólares; em 2014 comprava, aproximadamente, trezentos e vinte dólares.
Ainda quanto ao aspecto distributivo convém observar os impactos positivos sobre o perfil das taxas de pobreza e de inclusão de uma parcela importante da população brasileira no limite do acesso a bens de consumo de massa. Assim, a recomposição do salário mínimo segundo a regra aprovada em 2004 (correção monetária adicionada ao crescimento médio do PIB dos últimos dois anos), acrescida às políticas compensatórias em larga escala do programa bolsa família e das políticas de seguridade social universais (previdência rural e outros benefícios de prestação continuada) produziram um recuo significativo da pobreza e da desigualdade social, assim a proporção de pobres cai a menos da metade no período de 2003 a 2011, passando de 22,6% para 10,1% da população nacional 1 e a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini cai pela primeira vez na história brasileira abaixo de 0,53 em 2011.
Assim, uma das primeiras medidas do governo golpista foi destruir a regulação trabalhista e que busca também desmobilizar e desorganizar os sindicatos. Entre os pontos mais marcantes da alteração na legislação do trabalho estão: a) a flexibilização da relação empregado e patrão, onde as tomadas de decisão em acordos coletivos supera as disposições definidas na constituição no que diz respeito a tempo de férias (dividida em três vezes) e de descanso durante a jornada de trabalho (de duas horas, passa a ser no mínimo 30 minutos); b) a extensão da jornada de trabalho de 8h para 12h semanais; c) a aprovação do trabalho intermitente, onde o trabalhador recebe pela jornada ou diária de trabalho; d) agora a rescisão dos contratos de trabalho podem ser feitas sem a homologação sindical; e) o imposto sindical deixa de ser obrigatório; f) fim da obrigatoriedade pela responsabilização das empresas com o pagamento de transporte do trabalhador; g) os benefícios como auxílios, prêmios e abonos deixam de ser incorporados à remuneração, portanto não incluídos nos encargos trabalhistas; além de outras tantas alterações.
O golpe foi contra a soberania nacional, no sentido de fortalecimento da hegemonia estadunidense e de recrudescimento das condições de dependência nacional. Neste caso, a interação do golpe se dá no contexto de reorganização do capitalismo internacional. A emergência do capitalismo do oeste asiático levou a um reposicionamento da hegemonia estadunidense, exigindo uma reocupação de espaços periféricos estratégicos, entre eles o principal é o Brasil.
Como consequência observa-se três movimentos: i) a tônica de reprimarização da economia se torna discurso de Estado, assimilando o padrão primário-exportador como modelo de desenvolvimento de longo prazo; ii) os segmentos industriais autônomos ou mediamente desenvolvidos tecnologicamente são vendidos ou reprocessados segundo a lógica do capital norte-americano, a exemplo da incorporação da Embraer pela Boeing; iii) se desmonta a estrutura de produção petrolífera de base nacional, desfazendo a complementaridade industrial da Petrobrás, a fim de privatizá-la e transferir para capitais exógeno o controle tecnológico da prospecção em águas profundas, ao mesmo tempo que se desfaz de forma predatória dos campos petrolíferos do Pré-sal.
A pretensa ilogicidade dos movimentos acima delineados somente se explica pela completa subordinação ao circuito internacional do capital e estabelecimento de uma nova fase na dinâmica econômica brasileira de retorno a uma condição de semi-periferia minero-agrário-exportadora. O golpe, portanto, se estabelece como parte de uma ordem imperialista que busca recompor o poder econômico e territorial hegemônico dos EUA.
O golpe foi contra os movimentos organizados, no sentido de uma agenda de negativação dos movimentos sociais (caso do MST e MTST) e de fragilização da esquerda brasileira. Estas duas frentes de ataque são condicionantes políticos que se expressam muito rapidamente no desfazimento da tessitura institucional e rápido estabelecimento de frentes autoritárias.
As ações de ocupação militar no Rio de Janeiro, assassinato de Marielle Franco e prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, são elementos desta dinâmica. Outros já tinham sido previamente ensaiados, as ações seletivas da Lava-jato, a externalização para as Universidades dos procedimentos criminalizadores aprendidos na República de Curitiba, que levou ao suicídio criminoso do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier, são a ponta do iceberg que tem na possível criminalização dos principais movimentos independentes brasileiros, no campo o MST e na cidade o MTST, seus objetivos liminares.
Vale observar que o que temos é uma guerra de posição de longo prazo, sendo que até aqui o movimento golpista foi mais capaz que a resistência democrática e popular em se impor, o que não está dado que nos próximos movimentos de forças a resistência social possa se impor.
Por fim, o golpe foi pela retomada do crescimento das taxas de lucro dos capitais e de manutenção do padrão financeirizado da economia. Dados recentemente divulgados mostram porém um quadro bastante contraditório, o IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), think tank de análise industrial, mostra que a “recuperação segue, porém em marcha mais lenta do que o desejado”, sendo que na “série com ajuste sazonal, o resultado de 0,2% frente a janeiro é baixo inclusive para o atual padrão de recuperação”. O referido estudo mostra 2 que não se tem setor que se salve do baixo crescimento, por mais que o discurso seja tonificador, entretanto as consequências econômicas do golpe parece que ainda não se fizeram sentir.
Ponto a ser analisado é que modelos centrados em padrão financeirizado de economia são de baixa intensidade de crescimento, como mostram os dados internacionais ou mesmo o período dos governos de Fernando Henrique Cardoso, por mais que não se descarte um crescimento alavancado por um novo ciclo de expansão internacional, mas ainda não posto no horizonte conjuntural.
O quadro geral colocado nos leva a uma conjuntura de ainda manutenção da fragilidade da esquerda, dentro de um ciclo de grande instabilidade social e econômica, sendo que nos resta fortalecer a resistência democrática e popular a fim de garantir a realização das eleições e forçar uma nova rodada anti-neoliberal, sendo que o peso das manifestações de ruas, do fortalecimento das organizações populares e a crescente militância nas redes virtuais sociais serão vitais para reverter os retrocessos sociais. O centro da intervenção terá que combinar aspectos mais organizacionais de fortalecimento das organizações partidárias de esquerda e dos movimentos tradicionais de organização dos trabalhadores (Sindicatos e Organizações Populares e Estudantis), buscando definir uma pauta conjunta de enfrentamento ao autoritarismo e ao Estado de exceção, ao mesmo que se estabelecem bandeiras culturais e ideológicas de intervenção social capaz de atrair a juventude, ao lado do fortalecimento das Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo.
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1 Conferir Sônia Rocha. Pobreza no Brasil: A Evolução de Longo Prazo (1970-2011). Disponível em: http://files.dohms.com.br/idpsite/arquivos/material-de-apoio/texto-04--prof.-marcelo-proni--pobreza-no-brasil-a-evoluc%C3%A3o-de-longo-prazo.pdf; último acesso: 07/04/2018. Sônia Rocha mostra que o declínio da pobreza foi estruturalmente acentuado no período em questão, sendo que a melhora nos indicadores de desigualdade foram sensíveis comparado com às décadas anteriores.
2 Conferir em http://www.iedi.org.br/artigos/top/analise/analise_iedi_20180403_industria.html.
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[Artigo tirado do sitio web brasileiro Agência Carta Maior, do 8 de abril de 2018]