Vamos continuar a pagar a crise da zona euro?
Nos últimos 40 anos, quase 400 mil milhões de euros dos países mais fortes foram redistribuídos pela UE para estruturar as economias dos países mais atrasados. O quenão se contabiliza é a concentração de lucros nos principais países por via dessa conquista de mercados e da ruína da agricultura e da pecuária, das pescas e das indústrias transformadoras dos países que ficaram de portas abertas
1. A Cimeira Europeia de 28 e 29 do mês passado, praticamente esgotou na importante questão das migrações as atenções mediáticas. Mas quanto às «tensas» negociações sobre estas, o que é que as resoluções do Conselho relativas à imigração revelam dia após dia, depois de 28 e 29 de Junho? Revelam que a extrema-direita ganhou, em termos formais, em todos os tabuleiros. E que as «conclusões» da cimeira, tendo uma orientação e uma ideologia definidas, ainda não viram a sua concretização. Mas também revelam o plano de cedências à extrema-direita que já tinha sido definido no encontro Macron-Merkel em Meseberg.
2. O que está a ser decidido no plano da União Bancária, e não só, vai ter impacto muito negativo não só em Portugal mas também nos outros países que mais têm sofrido com o euro. Talvez por isso o esmagamento mediático deste Conselho Europeu com a questão das migrações tenha remetido para uma penumbra, pouco apelativa ao debate e escrutínio público, dessas outras questões.
A intenção evidente das medidas tomadas ou a tomar no Conselho de Dezembro deste ano parece seguir a palavra de ordem «Daqui ninguém sai!». Essa dificuldade de decidir sobre a manutenção ou não na zona euro passará a ser acrescida com o aumento dos custos de uma reestruturação da dívida pública soberana, e da saída do euro por parte de um ou mais países-membros. Com o resultado evidente de dificultar ainda mais a saída de países da zona euro.
Como muitos economistas têm salientado, o debate político está reduzido a relatórios de avaliação e controlos de gestão. Um destes economistas, o francês Jacques Rigaudiat1, diz que tudo isto se passa a partir do conceito da dívida depois do Tratado de Maastricht, de 1993, que transformou em código disciplinar a nova relação de forças resultante da mundialização. O golpe consistiu, segundo ele, em identificar a «dívida pública» com o que chama de «dívida maastrichtiana». Esquecendo-se dos activos do Estado ou do serviço público, provocam rapidamente a explosão da dívida. Não têm, de seguida, nenhum problema em demonstrar que os povos «vivem acima dos seus rendimentos» e instar os governos a fazer as reformas «que se impõem». Citando Étienne de La Boétie, autor do Discurso da servidão voluntária (1571): «Logo que o sistema esteja a funcionar, um discurso culpabilizante invocando o bom senso burguês (“não se vive acima dos seus meios”) faz o resto…»
Os Estados e, por conseguinte, os povos, não são apenas apontados a dedo pela sua dispendiosa irresponsabilidade. Perdem também a sua autonomia. O Tratado de Maastricht submeteu-os directamente ao diktat dos mercados. O seu artigo 104º, que o Tratado de Lisboa confirmou em 2007, proíbe à banca central europeia «conceder a descoberto». Os credores agora são privados. Para lutar contra o endividamento, o Estado deixa de ter credores institucionais. São os mercados que passam a ser os únicos credores. Rigaudiat tem uma fórmula cuja justeza nos arrepia: «o Estado tornou-se privado». A corporate governance2 substitui a política. Assim se compreende como, em tal ambiente, podem surgir personagens como Macron, que se quer tornar o homem para a situação. Entre o Estado e os mercados, diz-nos o autor, «fica o vazio». E a vertigem apoderou-se das democracias. O autor estende a sua demonstração depois às administrações. As páginas consagradas ao déficite da Segurança Social são particularmente edificantes. Vê-se que este déficite, em parte artificial, serve, em última análise para… financiar as empresas. A dívida acaba por se tornar numa «arma de dissuasão massiva» para o modelo social. Rigaudiat não esconde a questão política, a necessidade de pôr em causa tratados.
3. O primeiro-ministro, António Costa, valorizando muito o papel de Mário Centeno na preparação destas decisões, e das que se seguirão em Dezembro, considerou que a «cimeira do euro» representou «um grande passo em frente», desvalorizando o facto de não ter havido mais avanços a nível de um orçamento para a zona euro.
Entretanto está em discussão a proposta da Comissão Europeia de Quadro Financeiro para o período 2021-2027. Portugal e outros países que careciam de mais recursos para investir no crescimento, vêem nele esses recursos reduzidos, enquanto aumentam os recursos para as áreas da defesa e da indústria militar, e em políticas securitárias. E o governo já aprovou o Programa de Estabilidade que apresentou à Comissão e onde as prioridades continuam a ser a dívida e o défice. Em vez de nele se mobilizarem todos os recursos disponíveis para o aumento do investimento público e para um maior e mais substancial crescimento económico, para a melhoria dos serviços públicos, para a defesa da produção nacional, da agricultura familiar e do interior, para a elevação da protecção social, para a melhoria dos salários, reformas e pensões, para o apoio à cultura, à ciência e à investigação. Neste programa do governo estão inscritos cerca de 35 mil milhões de euros para pagamento de juros da dívida nos próximos quatro anos!
4. No último Conselho Europeu, sem impacto público, e sem que o governo sentisse necessidade de sobre isso fazer uma simples conferência de imprensa, foram objecto de deliberação questões tão importantes como as relativas a mudanças que têm a ver com a União Bancária e o futuro Orçamento Europeu.
Outra questão é a de como os fundos de garantia dos depósitos bancários sairão, em duas fases, do nível nacional para passarem ao nível europeu, devendo de seguida os ministros das Finanças negociar qual a forma de funcionamento do sistema, quanto cada membro terá de pagar, e também que salvaguardas existirão para que o sistema europeu não beneficie os «infractores».
A questão da transformação do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) é outra decisão grave. O MEE, que fora criado para tornar permanente o fundo de resgate do euro para responder à crise das dívidas soberanas, depois do primeiro resgate da Grécia, terá de servir em primeiro lugar de financiador do Mecanismo Único de Resolução (MUR). O MUR, financiado com as contribuições dos fundos de resolução nacionais, tem como missão financiar as resoluções de bancos, mas a sua capacidade financeira está limitada a cerca de 60 mil milhões de euros, quando for concluído.
O MEE irá ter a capacidade legal de ajudar a financiar resoluções e crises no sistema bancário com um montante de igual valor, recorrendo a empréstimos no mercado, como tem vindo a fazer para os resgates aos países do euro.
O Eurogrupo vai preparar os termos de referência do mecanismo de apoio comum e aprovará uma ficha descritiva para o desenvolvimento futuro do MEE, até Dezembro deste ano.
O MEE reforçará o seu papel no apoio financeiro aos países que pedirem ajuda, no seu controlo e monitorização, com a criação de regras muito semelhantes às do Fundo Monetário Internacional. Mas também acompanhará os orçamentos dos países-membros, procederá à análise da sustentabilidade das dívidas públicas soberanas e vai supervisionar a sua reestruturação, «facilitando» o diálogo entre governos soberanos e investidores (credores) privados.
Ou seja, o MEE ganhará poderes e assume funções de outras instituições europeias, como a Comissão Europeia e o BCE. E, mais preocupante ainda, retirará mais poderes aos governos e parlamentos nacionais.
A questão da harmonização da lei de insolvências, proposta no âmbito da União dos Mercados de Capitais, irá impedir os países membros de promoverem reestruturações de dívida privada e/ou pública através de alterações às leis de insolvência, ainda hoje essencialmente nacionais.
Outra questão objecto de deliberação foi a mudança nos requisitos de capital dos bancos. Para o economista Ricardo Cabral3, «sobre a União Bancária pretende-se aparentemente eliminar o instrumento de recapitalização directa de bancos, actualmente constante da directiva europeia sobre recuperação e resolução bancária. Se assim for, passariam a existir, na prática, somente dois instrumentos de política económica para responder a crises de confiança e solvabilidade em bancos de média ou grande dimensão: resolução ou liquidação».
O mesmo economista rematava «O valor económico dos temas abordados na referida carta do presidente do Eurogrupo que, refira-se, é quase um copy-paste da declaração de Merkel-Macron em Meseberg 4 é muito significativo. As medidas propostas que beneficiam de maior consenso têm efeitos redistributivos profundos a médio e longo prazo. Nomeadamente, afectam negativamente o nível e qualidade de vida de milhões de pessoas ao longo de décadas”.
Os restantes temas que Mário Centeno, na qualidade de presidente do Eurogrupo, endereçara ao presidente do Conselho do Eurogrupo para ratificação, foram remetidos para decisão posterior. Donald Tusk remeteu-as para continuação de debate no próprio Eurogrupo, para serem objecto de deliberação no Conselho Europeu de Dezembro. António Costa lamentou que a questão do Orçamento não tivesse sido aprovada neste Conselho mas considerou estar aberto o caminho para isso.
Isso inclui questões como o orçamento para a zona euro, apresentado como pretendendo a estabilização para os países que sejam afectados por recessões graves, mas que na prática significa retirar aos governos europeus o principal instrumento de governação soberana.
Outra ainda foi a questão da introdução de uma nova cláusula europeia (cláusula de acção colectiva) em todos os contratos de dívida pública dos países-membros que altera a de 2012, o que poderá ilegalizar e sujeitar a litigância em tribunais europeus as reestruturações de dívida pública soberana realizadas recorrendo a alterações à lei nacional, sem o consentimento de uma maioria dos credores.
Ainda outra questão será o diferenciar o risco da dívida pública dos países membros, que conduziria ao aumento das taxas de juro da dívida pública e privada dos países devedores e a uma redução das taxas de juro da dívida pública e privada dos países credores, com o consequente afundamento das economias dos primeiros.
Estamos, certamente, confrontados com alterações às leis europeias, posteriormente transcritas para leis nacionais, com vista a restringirem as opções de política económica dos países devedores.
5. Não por acaso foi dado à luz por estes dias um «calhamaço» digital de cerca de 800 páginas, da autoria de académicos europeus sobre estas matérias, num projecto Jean Monnet, The future of Europe: the reform of the eurozone and the deepening of political union (O futuro da Europa: a reforma da zona euro e o aprofundamento da união política). O coordenador Fausto Quadros, professor jubilado da FDL, federalista convicto, na introdução do dito calhamaço defende a existência de um ministro das Finanças e da Economia da zona euro, a transformação do MME num verdadeiro Fundo Monetário Europeu e a existência de um orçamento autónomo para a zona euro, sustentando ainda que se devia ir mais longe, nomeadamente promovendo a harmonização fiscal, a criação de um salário mínimo comum aos países do euro e o reforço dos poderes do Banco Central Europeu, transformando-o num banco realmente federal. Nem mais! E assim se criam os Estados Unidos da Europa…
6. Quando da criação da União Europeia, tudo eram perspectivas promissoras avançadas pelo seu núcleo central o qual, porém, o que verdadeiramente queria era conquistar os mercados dos novos aderentes que ia angariando. Na publicidade enganosa de então, para a maioria dos países-membros a UE deveria ser uma união de partilha chamada a retirar dinheiro de países economicamente fortes e distribuí-lo pelos mais fracos.
Nos últimos 40 anos, quase 400 mil milhões de euros dos países mais fortes foram redistribuídos pela UE para estruturar as economias dos países mais atrasados, como o nosso. Mas o que, em geral, não se contabiliza é a concentração de lucros nos principais países por via dessa conquista de mercados e da ruína da agricultura e da pecuária, das pescas e das indústrias transformadoras dos países que ficaram de portas abertas em nome da sacrossanta concorrência. É certo que os principais contribuintes foram a Alemanha com 33,4%, a França com 16,7%, a Grã-Bretanha com 13,8% e a Holanda com 10,4% e os principais beneficiários foram a Grécia (24,4%), a Espanha (23,9%), a Polónia (15,5%) e Portugal (12,7%). Mas alguns destes contribuíram para os maiores com muito mais e isso não está contabilizado.
Trinta anos de «redistribuição» não melhoraram, porém, a capacidade económica dos países beneficiários. Pelo contrário, eles continuaram a endividar-se ainda mais do que os países «doadores» (Grécia, 150%; Itália, 130%; a maioria dos outros estados com mais de 100% do PIB).
Importa, num parêntese, dizer que a dívida cresce não só cá como em todo o mundo, e que o seu peso está estimado em mais 200 mil biliões de dólares, representando mais de 386% do desempenho económico mundial. O que acaba por excluir a maneira tradicional de reduzir a dívida economizando dinheiro. Mesmo os principais países do mundo, como os Estados Unidos, a China e o Japão, estão tão endividados que iriam falir, se fossem empresas privadas.
A dívida foi atenuada porque os bancos centrais dominantes continuaram a «imprimir» sempre mais dinheiro sem valor (por não corresponder a acréscimos de riqueza produzida) e a distribui-lo sob a forma de crédito (na verdade, dívidas). E o endividamento continua pela expansão da oferta monetária que equivale à desvalorização das moedas, isto é, o dinheiro perde todo o seu valor, mas, por meio de uma propaganda engenhosa, continuamos a manter a confiança no dinheiro, enquanto os «investidores» bilionários, há muito tempo, converteram o seu dinheiro em todos os tipos de bens que existem por esse mundo fora.
O facto de os devedores europeus, como a Grécia, a Itália, a França, a Espanha ou Portugal, terem podido endividar-se desta forma, deve-se à moeda comum representada pelo euro e aos fundos de resgate europeu, que começaram por ser o retomar das responsabilidades, para depois o ser das dívidas – um monstro europeu de dívidas de 700 mil milhões de euros… Todos os acordos europeus excluem a mutualização das dívidas e responsabilidades, devendo os institutos financeiros e os países encarregar-se das suas próprias dívidas. Os políticos europeus têm violado assim não só os acordos europeus, como também os seus direitos de soberania nacional, levando a Europa, cada vez mais, a uma união de finanças e endividamentos.
«Em última análise, esta união fiscal, de endividamento e responsabilidade só serve para perpetuar o jogo diabólico da manipulação bancária com créditos malparados, produtos financeiros inquinados, moedas sem valor e dívidas crescentes dos estados-membros. Os principais actores desta falsificação financeira e monetária são os banqueiros do Goldman Sachs, nos Estados Unidos, e do BCE, de Draghi»5.
7. Alguns economistas retomaram a já antiga abordagem ética que teria que ser chamada à mesa das considerações. É o caso do suíço Peter Ulrich, que num trabalho de 20166 sublinhava que a ética empresarial integrativa incluía três tarefas básicas:
- a crítica da razão económica «pura» e do seu exagero normativo no economicismo (pensamento compulsório e crença cega no mercado global);
- o esclarecimento dos aspectos éticos de uma economia orientada para a vida (significado e legitimidade da «criação de valor» económico);
- a determinação dos «lugares» da moral da actividade económica numa sociedade bem ordenada de cidadãos livres (ética económica, ética da ordem, ética nos negócios).
Para o autor, a livre circulação de capitais não está de acordo com a dignidade humana. Não é aceitável que certos «mercados» determinem quem é eleito num determinado país. A livre circulação de capitais e o valor para os accionistas são ataques à dignidade humana, à liberdade, ao Estado de direito e à democracia. Se o mercado de acções pode decidir, numa fração de segundo, o destino do fluxo de vários milhares de milhões, para quem e em que país essa verba transita, se o dinheiro domina assim o mundo, isso é o fim do respeito pela dignidade humana, o fim da liberdade, do Estado de direito e da democracia.
Há cinco anos, os gregos foram forçados a submeter-se, embora o seu voto tenha sido no sentido contrário. Hoje, os «mercados» exigem a mesma coisa da Itália, em conjunto com a UE. Há cinco anos, os actores políticos dos «mercados» agiram sob o disfarce de políticos da UE e do euro. A deliberação dos homens do euro, que vergou a democracia grega há cinco anos, ainda é hoje um documento de vergonha.
O euro é o inimigo da liberdade, do Estado de direito e da democracia. Os mercados ameaçam a soberania. Uma montagem como a UEM (União Económica e Monetária) viola essa soberania. O objetivo dos «mercados» e dos seus actores políticos é eliminar a soberania dos cidadãos e enfraquecer o estado-nação.
Mas, para além desta abordagem ética, há que constatar que, neste ano de 2018, não só as promessas iniciais da UE se esboroaram, como a mesma apenas sobrevive de mentiras, com perspectivas de novos sofrimentos no horizonte para alguns países europeus, se este caminho desastroso não for travado.
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Notas
1.La Dette, arme de dissuasion sociale massive, Jacques Rigaudiat, Éditions du Croquant, 220 p., Voulaines-sur-Seine, 2018.
2. Pode definir-se corporate governance como o sistema de regras e condutas relativo ao exercício da direção e controlo das empresas, que exprime a relação de uma empresa com os seus acionistas e de uma forma mais alargada a relação que a empresa mantem com os seus stakeholders (parceiros).
3. in Público, 2 de Julho de 2018.
4. Vale a pena, para o confirmar, fazer a comparação das decisões e propostas aqui referidas por exemplo com o relato do encontro Merkl-Macron feito por Maria João Guimarães no Público de 20 de Junho passado.
5. Ulrich, Peter. Integrative Wirtschaftsethik: Grundlagen einer lebensdienlichen Ökonomie, Haupt Verlag, Berna, 2016.
6. Ulrich, Peter. Zivilisierte Marktwirtschaft. Eine wirtschaftsethische Orientierung, edição aumentada e revista, Haupt Verlag, Berna, 2010. Edição original em Auflage, Berna, 2008.
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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 10 de xullo de 2018]