Uma atmosfera belicista

Gilberto Lopes - 01 Abr 2024

Nenhum analista sério, nem político nem militar, confirma a ideia de que a Rússia, uma vez terminada a guerra na Ucrânia, avançará sobre seus vizinhos europeus. Estaríamos falando de uma guerra contra a OTAN, de um conflito nuclear. Isso não faz sentido

 Eram três e meia da manhã quando foi acordado por um telefonema do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, anunciando a invasão de seu país. Ao ouvir sua voz sombria, o presidente do Conselho Europeu (o órgão que reúne os chefes de Estado e de governo dos 27 Estados-membros), o belga Charles Michel, percebeu que a ordem internacional que emergiu da Segunda Guerra Mundial tinha mudado para sempre.

 Charles Michel, um conservador que chefiou um governo de coalizão em seu país entre 2014 e 2019, antes de assumir a presidência do Conselho Europeu, conta a história num artigo publicado em 19 de março no jornal espanhol El País. Em sua visão de mundo, diante das novas ameaças que a Europa enfrenta, “é necessário reforçar nossa capacidade de defender o mundo democrático, tanto para a Ucrânia como para a Europa”.

 Atualmente, na Europa, esta defesa é entendida quase exclusivamente como um desafio militar. Charles Michel resume a questão com um velho clichê: “Se queremos a paz, temos que nos preparar para a guerra”. São frases poderosas, que têm como um de seus principais efeitos eximir-nos de pensar. De que guerra fala Charles Michel? Da OTAN contra a Rússia?

 Charles Michel repete afirmações que ouvimos frequentemente hoje em dia: “A Rússia não vai parar na Ucrânia, tal como não se deteve na Crimeia há dez anos”. “A Rússia é uma grave ameaça militar para nosso continente europeu e para a segurança mundial”. “Prossegue com suas táticas de desestabilização em todo o mundo, na Moldávia, na Geórgia, no Cáucaso meridional, nos Balcãs Ocidentais e até no continente africano”.

 Nenhum analista sério, nem político nem militar, confirma a ideia de que a Rússia, uma vez terminada a guerra na Ucrânia, avançará sobre seus vizinhos europeus. Estaríamos falando de uma guerra contra a OTAN, de um conflito nuclear. Isso não faz sentido, e é precisamente a natureza nuclear de tal guerra que torna a frase de Charles Michel sem sentido. A menos que estejamos todos preparados para a tragédia que isso significaria. Mas Charles Michel não tem dúvidas: “Enfrentamos a maior ameaça à nossa segurança desde a Segunda Guerra Mundial”, assegura.

Outras visões de mundo

 David Miliband, ex-secretário de Estado para relações exteriores do Reino Unido (2007-2010), publicou há um ano um artigo intitulado “O mundo para além da Ucrânia” (“The World Beyond Ukraine”, Foreign Affairs, abril de 2023). Nele afirma que a invasão da Ucrânia produziu uma notável unidade de ação entre as democracias liberais do mundo. Mas, acrescentou, esta unidade do Ocidente não foi respaldada pelo resto do mundo.

 Dois terços da população mundial, disse David Miliband, vivem em países que são oficialmente neutros, ou apoiam a Rússia neste conflito, incluindo democracias notáveis como Brasil, Índia, Indonésia ou África do Sul. Ademais, esta distância entre o Ocidente e o resto do mundo, “é o resultado de uma profunda frustração – raiva, de fato – com a forma como o Ocidente conduz a globalização desde o fim da Guerra Fria”.

 O presidente russo, Vladimir Putin, disse algo semelhante. É uma das razões que explica sua decisão de irromper no cenário internacional de tal forma, a qual levou Charles Michel a dizer que a ordem internacional, herdada da Segunda Guerra Mundial, tinha “mudado para sempre”.

 O certo é que uma guerra com a OTAN é considerada pouco provável por analistas diversos. Mas, claro, dada a natureza da guerra na Ucrânia, isso não pode ser descartado, incluindo a possibilidade de que seja desencadeada por um erro de cálculo ou mesmo por acidente.

 Em 24 de março, por exemplo, a Polônia afirmou que um míssil russo disparado contra uma base ucraniana perto da fronteira polonesa tinha sobrevoado seu espaço aéreo por cerca de 40 segundos. Exigiu explicações do governo russo, que decidiu não as fornecer, pois a Polônia não apresentou qualquer prova do que afirmava.

 Dois dias antes, um ex-oficial norte-americano, Stanislav Krapivnik, disse ao portal russo RT que o governo polonês estava preparando sua população para a guerra com a Rússia. Ele lembrou das afirmações do chefe do Estado-Maior polonês, general Wieslaw Kukula, segundo as quais a Rússia estaria “se preparando para um conflito com a OTAN” na próxima década. Para Krapivnik, isso faz parte da preparação psicológica da população para a guerra.

 Também não exclui que a Polônia possa desencadear um ataque preventivo contra a Rússia, com o apoio de países como a República Checa, ou os países bálticos, o que provocaria um conflito inevitável com a OTAN. Em todo o caso, um estudo realizado para a Rand Co. por Samuel Charap e Miranda Priebe, publicado em janeiro do ano passado sob o título “Avoid a long war”, conclui que é mais importante para os Estados Unidos evitar tanto uma guerra OTAN-Rússia como uma guerra de longa duração entre a Rússia e a Ucrânia.

Todos sentem-se ameaçados

 Uma visão alarmista comum prevalece entre vários políticos europeus. Joschka Fischer, ex-ministro das relações exteriores alemão e líder dos Verdes, insistiu que “não se trata apenas da liberdade da Ucrânia. Trata-se de todo o continente europeu”. “A Rússia quer apagar seu vizinho do mapa”, diz ele.

 Como imaginar uma guerra da Rússia para conquistar o continente europeu? Joschka Fischer sente-se ameaçado. Charles Michel também. Não foi a Rússia que se aproximou das fronteiras da OTAN. Foram as fronteiras da OTAN que se aproximaram da Rússia durante 40 anos. Mas essa é uma reflexão que não está no raciocínio destes políticos europeus.

 Como afirma o ministro das relações exteriores sueco (último país a incorporar-se à OTAN), Tobias Billstrom, “armar a Ucrânia é uma forma de enfrentar os apetites de Moscou”. Parece-me que Moscou poderia pensar que se trata de uma forma de alimentar os apetites da OTAN contra eles.

 Para o ministro sueco, em todo o caso, o problema não é seu país, nem a OTAN, mas sim o comportamento irresponsável e imprudente da Rússia, que procura reconstruir seu antigo império no Báltico. Não lhes ocorre pensar que a Rússia também se sente ameaçada e que, antes de invadir a Ucrânia, alertou muitas vezes para o risco que representava o avanço sistemático da OTAN em direção às suas fronteiras?

Um assomo de sensatez

 O tom belicista ocupa cada vez mais o debate. A cúpula da União Europeia de 22 de março foi “precedida de uma atmosfera belicista como há muitos anos não se via em Bruxelas”, afirmaram os correspondentes do El País. A UE apelou à sociedade civil para se preparar para “todos os perigos”. Charles Michel apelou à Europa para passar “a um regime de economia de guerra”. Na Alemanha, uma ministra sugeriu a introdução nas escolas de aulas de preparação para conflitos.

 Está criando-se uma atmosfera de histeria belicista que acabou assustando alguns dos próprios líderes europeus. “Não me sinto reconhecido quando se fala em transformar a Europa numa economia de guerra, nem com expressões como ‘Terceira Guerra Mundial’”, disse em Bruxelas o chefe de governo espanhol Pedro Sánchez.

 Não é que discorde da sugestão de Charles Michel de se preparar para a guerra, embora não partilhe o tom que o debate adotou. Mas sua própria ministra da defesa, Margarita Robles, lembrou numa entrevista, há alguns dias, que “um míssil balístico pode muito bem chegar à Espanha vindo da Rússia”.

 O próprio representante da política externa da União Europeia, Josep Borrell, que muitas vezes alimentou este ambiente de guerra, preferiu agora alertar para a tendência de assustar os cidadãos europeus com uma guerra, exagerando a ameaça de um conflito direto com a Rússia. “Ouvi vozes que falam de uma guerra iminente. Graças a Deus, a guerra não é iminente. Vivemos em paz. Apoiamos a Ucrânia, mas não fazemos parte dessa guerra”. Para Josep Borrell, não se trata de soldados europeus que “vão morrer no Donbass”.

 Um risco que o presidente francês e outros países, especialmente os bálticos e a Polônia, parecem dispostos a correr. O ministro das relações exteriores ucraniano, Dimitry Kuleba, numa entrevista ao Politico, em 25 de março, não descartou que países europeus decidam enviar tropas para a Ucrânia para conter os avanços russos. “Se a Ucrânia perder”, disse, “Vladimir Putin não vai parar”.

 É evidente que a declaração de Josep Borrell está repleta de contradições. É difícil compreender que vivam em paz enquanto é cada vez maior o envolvimento da OTAN numa guerra para a qual desviaram recursos muitas vezes superiores aos destinados a qualquer outro de seus projetos no mundo.

Fascismo como extrema direita

 “Os políticos europeus estão perdendo a cabeça. A voz da paz está recuando completamente. Muitos líderes políticos europeus estão sofrendo de uma psicose de guerra”, disse o ministro das relações exteriores húngaro, Peter Szijjarto, no domingo, 24 de março. A Hungria – frequentemente acusada na Europa de ser “populista” e de “extrema-direita” – é um país que se opõe aos planos de envio de armas para a Ucrânia.

 “Populismo”, um conceito que alimentou milhares de páginas acadêmicas muito variadas, tem a vantagem de evitar muitas complicações para os jornalistas. O adjetivo, inútil para explicar o cenário político, serve para sair do assunto sem necessidade de maior elaboração. Poupa muito tempo de reflexão a certos jornalistas.

 Na Alemanha, está sendo dada especial atenção ao papel de um partido que se situa na “extrema-direita”: a Alternativa para a Alemanha (AfD).

 O Grand Continent (publicação do Groupe d’études géopolitiques, um centro de pesquisa independente com sede na École Supérieure de Paris, fundado em maio de 2019), decidiu acompanhar os abundantes processos eleitorais previstos para este ano com uma série de entrevistas. Para o caso alemão, entrevistou o historiador Johann Chapoutot.

 Johann Chapoutot falou sobre o significado do AfD para a Alemanha. “O AfD passou de um enfoque em questões monetárias para uma posição populista mais pronunciada”, diz. “Como muitos partidos de extrema direita, propõe um discurso populista que promete devolver o poder ao povo diante de uma elite que supostamente se apressa a oprimi-lo”.

 Mas o próprio Johann Chapoutot – que recorre aqui ao conceito de “populismo” – fornece elementos para uma análise mais aprofundada desta direita alemã, certamente extrema, mas representada nas mais diversas formações políticas do país, e não apenas na AfD. Na Baviera, onde os social-cristãos da CSU, muito conservadores, dominam o panorama eleitoral, a AfD encontra “pouco ou quase nenhum espaço” para se desenvolver. O forte particularismo bávaro parece limitar seu avanço numa região onde o domínio de uma direita bastante radical (CSU e Freie Wähler) é “esmagador”, diz Johann Chapoutot.

 Após a reunificação alemã em 1990, insiste Johann Chapoutot, os jovens do Leste viraram-se para o nacionalismo em resposta ao que consideravam ser um roubo de identidade diante do domínio ocidental após a queda da RDA. O desemprego de 30%, a liquidação da indústria e do artesanato da Alemanha Oriental, a violência da “tomada do poder” (Übernahme) ou da “anexação” (Anschluss) pelas empresas da Alemanha Ocidental provocaram um trauma social “cuja intensidade é difícil de medir, e cujas consequências culturais e políticas continuam bem vivas 35 anos depois”, acrescenta.

 Helmut Kohl, o chanceler democrata-cristão que conduziu o processo de unificação, e seu ministro da fazenda, Wolfgang Schäuble (o mesmo que, anos depois, imporia condições leoninas na renegociação da dívida grega para salvar os bancos alemães comprometidos com esses empréstimos), tinham permitido que as empresas renunciassem à legislação laboral em troca de se instalarem no Leste. E que se tornaram um laboratório de “políticas sociais”, impostas posteriormente no Ocidente pelos social-democratas Gerhard Schröder e Peter Hartz, com suas ofertas de “miniempregos” para os alemães desempregados.

 Johann Chapoutot lembra que a aproximação da CDU com os Verdes, os mesmos Verdes que fazem parte da atual coalizão governamental com os social-democratas e os liberais e que defendem uma política agressiva contra a Rússia. Os liberais (FDP), cada vez mais extremistas em suas posições conservadoras, adotam as propostas mais duras da AfD, diz Johann Chapoutot. Tal como a extrema direita, o FDP é anti-ambientalista, pró-empresas, anti-impostos, anti-normas… A proposta de baixar os impostos tem como corolário a destruição dos serviços públicos e o abandono das infraestruturas.

 É esta a extrema direita alemã e europeia que, segundo as mais diversas estimativas, não só consolidará sua posição no cenário político europeu (no Parlamento, na Comissão e no Conselho) nas eleições do próximo mês de junho, como se inclinará ainda mais para a direita, sem que seja necessário, para compreender o que está em jogo, recorrer ao “populismo”, ou à procura de posições mais extremas, porque não as há (mesmo que se discorde sobre as migrações e algumas outras questões).

 As mesmas pessoas que lutam contra a Rússia, apoiam a Ucrânia e Israel, pensam que para alcançar a paz temos que nos preparar para a guerra, em vez de negociar uma paz que ofereça aos europeus (e ao resto do mundo) segurança e garantias de desenvolvimento comum. Não há necessidade de reforçar a capacidade europeia “de defender o mundo democrático, tanto para a Ucrânia como para a Europa”, como afirma Charles Michel. O problema, desta vez, é que uma nova guerra europeia nos arrastará a todos, acabará com a humanidade tal como a conhecemos. Nessa guerra não haverá espectadores. Seremos todos vítimas.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 30 de marzo de 2024]