Um século de ingerência imperialista no Oriente Médio
Com a nova correlação de forças mundial, o imperialismo, encabeçado pelo imperialismo estadunidense, não tardou a lançar uma série de violentas agressões. A Guerra do Golfo, a invasão do Afeganistão, a guerra do Iraque, a destruição da Líbia, as agressões à Síria e ao Iêmen são marcos de uma ofensiva que visa criar um arco de instabilidade, caos e no Oriente Médio e Ásia Central
O ano de 2017 marca o 100º aniversário da Declaração Balfour, um dos documentos mais destrutivos do Oriente Médio no século 20. Dela decorre o plano de partição da Palestina (1947) e a criação de Israel (1948), acompanhada por um cortejo de violências e pela expulsão de centenas de milhares de palestinos.
“O Governo de Sua Majestade encara favoravelmente a criação na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”, reza a carta dirigida pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Lord Arthur Balfour, ao dirigente sionista Walter Rotschild.
Recordemos brevemente o quadro histórico em que ela se insere. No início do século 20 o Oriente Médio árabe fazia parte do Império Otomano. Ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, os britânicos queriam manter aberta a rota terrestre para a sua colônia da Índia, proteger o acesso ao petróleo iraquiano e persa e impedir que a ele tivessem acesso os alemães, aliados dos turcos. Procuraram para isso o apoio dos árabes na guerra contra os turcos. Em 1915-1916, o alto-comissário britânico no Egito, Sir Henry McMahon, estabeleceu correspondência com o xerife* Hussein, emir de Meca, prometendo à sua família (os hachemitas) um papel dirigente no Oriente Médio. Em 1916 os hachemitas, com a colaboração do famoso militar britânico T. E. Lawrence, lançaram uma guerra contra os turcos.
Porém, ao mesmo tempo que faziam promessas aos árabes, os britânicos mantinham negociações secretas com os franceses para a partilha do Oriente Médio após a derrota dos otomanos. O acordo Sykes-Picot, concluído secretamente em maio de 1916, dividia o Oriente Médio árabe em novas entidades políticas e em esferas de influência das duas potências (a Palestina ficaria sob domínio colonial conjunto).
Mas a verdade veio à tona ainda antes de terminada a guerra. Em novembro de 1917, os bolcheviques, tendo tomado o poder, tornaram público o acordo Sykes-Picot; de fato, também o Império Russo, aliado da França e da Grã-Bretanha na Tríplice Entente, deveria abocanhar uma parte dos despojos.
Por sua vez, a Declaração Balfour prometia aos judeus a criação de um “lar nacional” na Palestina, contradizendo quer as promessas aos árabes quer os entendimentos com os franceses.
Belo exemplo de hipocrisia e perfídia: McMahon prometia a Hussein um reino árabe hachemita incluindo a Palestina; o acordo Sykes-Picot dividia o Oriente Médio entre imperialistas ingleses e franceses, com a Palestina sob domínio conjunto; e a Declaração Balfour prometia a Palestina – que os ingleses não possuíam! – a um movimento de judeus europeus que não tinham nenhuma ligação real com ela. Com sobranceria colonial, os países imperialistas decidiam o destino de países e regiões sem atender aos povos.
Os sionistas afirmavam que os judeus constituíam etnicamente um povo e queriam “regressar” ao país dos seus remotos antepassados: uma falsidade, pois os judeus atuais resultam da conversão relativamente recente de diferentes povos sem ligação ancestral à Palestina. E era a partir de judeus provenientes de muitos países, através do próprio ato da colonização, que os sionistas pretendiam constituir uma nação.
Ao acederem às pretensões sionistas, os britânicos pretendiam desviar da Europa ocidental, e do seu próprio país, e dirigir para a Palestina as vagas de judeus que fugiam às perseguições na Europa central e oriental; e também constituir na Palestina um Estado-tampão povoado por europeus, o que concordava inteiramente com os desígnios coloniais dos sionistas, que se viam como “uma entidade ocidental no meio de um deserto árabe” (Ilan Pappé).
Terminada a guerra, desmentiram-se as promessas feitas ao xerife Hussein de um reino em todas as antigas províncias árabes do Império Otomano e confirmou-se a divisão da região em mandatos britânicos e franceses.
Inversamente – mas na mesma linha de “balcanização” do Oriente Médio –, a Declaração Balfour é integrada no Mandato pelo qual a Sociedade das Nações, em 1922, atribui ao Império Britânico o governo da Palestina. O artigo 2.º do Mandato diz expressamente que o “Mandatário será responsável por colocar o país em condições políticas, administrativas e econômicas que assegurem o estabelecimento do lar nacional judaico”, transformando assim uma promessa unilateral feita aos sionistas em obrigação garantida pelo direito internacional. Quanto aos habitantes indígenas do país, os palestinos, está ausente qualquer referência aos seus direitos políticos e nacionais, mencionando-se apenas a “salvaguarda dos direitos civis e religiosos de todos os habitantes da Palestina”.
Num memorando de 1919, Balfour exprime com clareza a base ideológica da política britânica na Palestina: “As Grandes Potências estão comprometidas com o sionismo. E o sionismo, seja ele certo ou errado, bom ou mau, está enraizado em tradições antigas, em necessidades atuais, em esperanças futuras, de importância muito mais profunda do que os desejos e preconceitos dos setecentos mil árabes que agora habitam aquela terra antiga.”
Ao longo das décadas de 20 e 30 intensificou-se a emigração judaica para a Palestina e intensificou-se igualmente a resistência dos árabes palestinos, muçulmanos e cristãos, que já em 1918 tinham protestado contra a Declaração Balfour. Em outubro de 1936 inicia-se uma greve geral, que durou seis meses, e registam-se manifestações em todo o país.
Em 1937, uma comissão de inquérito, encabeçada por Lord Peel, recomendou a partição da Palestina entre judeus e árabes. Estes rejeitaram o plano, apelando para um Estado palestino independente. Os sionistas aceitaram, não o plano em concreto mas o princípio da partição, vendo nela a base para uma futura expansão.
A Grande Revolta Árabe, que se prolongou até 1939, assumindo formas armadas, foi duramente esmagada pelos britânicos. Os palestinos ficaram privados de dirigentes, cuja falta se faria duramente sentir. Já os sionistas saíram fortalecidos, designadamente no plano militar.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha decidiu em fevereiro de 1947 renunciar ao Mandato e confiar o problema da Palestina à ONU. Em 29 de novembro de 1947 a Assembleia Geral da ONU aprovou a resolução 181, que previa a partilha da Palestina em dois Estados, um judaico e outro árabe, tendo Jerusalém um estatuto especial. A partição da Palestina foi discutida e aprovada num clima condicionado pelo recente genocídio dos judeus às mãos do regime nazi e pela sorte dos sobreviventes (o caso do navio Exodus é de julho de 1947); mas a solução adotada traduziu-se na penalização do povo palestino por um crime que não tinha cometido. Além da sua injustiça essencial, o plano atribuía 45% do território da Palestina ao Estado árabe e 55% ao Estado judaico, embora os judeus só fossem proprietários de 7% das terras e representassem 33% da população. Os sionistas concordaram com o plano de partição, que não tencionavam respeitar. Para os palestinos a partição era totalmente inaceitável: não podiam concordar com a alienação do seu território histórico.
Os sionistas iniciaram de imediato uma operação de limpeza étnica. As inúmeras atrocidades não foram cometidas ao acaso, mas integradas no Plano Dalet (descrito em pormenor em Ilan Pappe, The Ethnic Cleansing of Palestine), que visava limpar o futuro Estado judaico do maior número possível de palestinos no menor tempo possível, de modo a colocar a ONU, os EUA e os países árabes diante de um fato consumado.
Quando o Estado de Israel foi proclamado, em 14 de Maio de 1948, tinha já sido expulso um terço da população palestina. Na primavera de 1949, quando terminou a guerra israelo-árabe, só permaneciam nas suas terras ou nas proximidades 160.000 palestinos; 750.000, quase 90% da população que vivia no território atribuído ao Estado judaico, tinham-se tornado refugiados.
Contrariamente ao que prevê a Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU, adotada logo em Dezembro de 1948 (e reafirmada mais de 110 vezes!), sete décadas depois eles e os seus descendentes ainda não puderam regressar: são os refugiados mais antigos do Oriente Médio. Os que ficaram transformaram-se na minoria palestina de Israel. Metade das aldeias tinham sido destruídas. É com razão que os palestinos chamam a estes trágicos acontecimentos “a Catástrofe” – Al-Nakba.
A guerra de 1948 é muitas vezes apresentada como uma nova história de David e Golias, em que o pequeno Israel enfrentou e derrotou o conjunto dos poderosos exércitos árabes. A realidade é bem diferente. Os sionistas dispunham de tropas disciplinadas e bem treinadas e com um plano bem definido. Pelo contrário, os políticos do mundo árabe só em fins de abril de 1948 prepararam um plano para salvar a Palestina (e alguns países, como a Jordânia, até procuraram acordos secretos com os sionistas para anexar partes dela); os seus exércitos tinham experiência militar muito limitada, treino muito sumário e coordenação deficiente. Durante quase toda a guerra manteve-se equivalente o número de combatentes dos dois lados, incluindo os dos países árabes vizinhos. Mas logo a partir de junho de 1948 os sionistas ganharam preponderância em poder de fogo: Israel conseguiu comprar armas, enquanto os exércitos do Egito, Iraque e Jordânia, que utilizavam apenas munições britânicas, sofreram um embargo inglês, obedecendo a uma resolução da ONU.
O desfecho da guerra fala por si: os israelitas ocupavam agora uma área correspondente a 78% da Palestina histórica (contra os 55% que o plano de partilha da ONU lhes atribuía).
Israel terminou em 1967 aquilo que não conseguira em 1948, isto é, a ocupação da totalidade da Palestina histórica. Nesse ano, na sequência da chamada Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou Jerusalém Oriental, a Margem Ocidental e a Faixa de Gaza. Mais uma vez se assistiu ao êxodo de uma vaga de refugiados palestinos (cerca de 250.000) da Margem Ocidental e da Faixa de Gaza.
Em 1967 Israel ocupou ainda os montes Golã (Síria) e a península do Sinai (Egito), a única que até hoje foi devolvida. Tal como já fizera em 1956, no quadro da agressão tripartida (com a França e o Reino Unido) ao Egito, quando este país nacionalizou o Canal de Suez, Israel continuou a desempenhar o papel de ponta de lança do imperialismo no combate aos regimes progressistas e aos povos da região. Disso são igualmente exemplo as agressões ao Líbano em 1978, 1982 (ocupando o Sul do país até 2000), 1993, 1996 e 2006.
Na viragem dos anos 80-90 verificou-se uma drástica alteração da correlação de forças mundial a favor do imperialismo, na sequência da derrota do socialismo na União Soviética e nos países do Leste europeu. As suas nefastas consequências para os povos não tardaram a fazer-se sentir tanto na Palestina como em todo o Oriente Médio. Nos Acordos de Oslo (1993-1995) e em ulteriores negociações com Israel patrocinadas pelos EUA, a Organização de Libertação da Palestina – enfraquecida desde a sua expulsão do Líbano, em 1982, sofrendo o decréscimo da assistência financeira dos países árabes e privada do apoio da URSS – fez sucessivas concessões, no que foi criticada por algumas facções palestinas. Ainda assim, continuam por cumprir as resoluções 194 (1948), 242 (1967) e 338 (1973) do Conselho de Segurança da ONU, que preconizam a retirada de Israel dos territórios ocupados em 1967 e uma solução justa para o problema dos refugiados. Ao cabo de 50 anos, os refugiados ainda não puderam regressar e a ocupação continua.
Com a nova correlação de forças mundial, o imperialismo, encabeçado pelo imperialismo estadunidense, não tardou a lançar uma série de violentas agressões. A Guerra do Golfo (1990-1991), a invasão do Afeganistão (a partir de 2001), a guerra do Iraque (iniciada em 2003), a destruição da Líbia (2011), as agressões à Síria (desde 2011) e ao Iêmen (desde 2015), são marcos de uma ofensiva que visa criar um arco de instabilidade, caos e violência – Condoleeza Rice, antiga Secretária de Estado dos EUA, chamou-lhe cinicamente “caos construtivo” – no Oriente Médio e Ásia Central, para debilitar e fragmentar países, liquidar resistências, reordenar de acordo com os seus interesses esta estratégica região, rica em recursos naturais.
A tentativa de fragmentação segundo linhas religiosas e étnicas está bem patente nos casos do Iraque, onde a região curda se tornou de fato independente, e mais recentemente da Síria. De passagem, assinale-se como fato muito positivo que este país, com o auxílio nomeadamente da Rússia, do Irã e do Hezbollah, tenha conseguido para já resistir e talvez inverter o curso da raivosa guerra que lhe tem sido movida pelas potências imperialistas ocidentais (EUA, Reino Unido, França), com a colaboração das reacionárias petromonarquias árabes, da Turquia e de Israel.
A acreditar no famoso mapa do “Novo Oriente Médio” do tenente-coronel Ralph Peters, nem os mais próximos aliados-lacaios dos Estados Unidos, como a Arábia Saudita, estão a salvo. Só Israel escapa.
Um século após a Declaração Balfour e o acordo Sykes-Picot, não se interrompeu um só dia a ingerência mortífera dos países imperialistas no Oriente Médio. A pretensa superioridade moral do “Ocidente”, baseada na democracia e nos direitos humanos, é uma sinistra mistificação.
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Referência bibliográfica
Ilan Pappé, História da Palestina Moderna, Caminho, Lisboa, 2007.
Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine, Oneworld Publications, Oxford, 2006.
MPPM, O Essencial sobre a Questão Palestina, Lisboa, 2016.
Shlomo Sand, Como o Povo Judeu Foi Inventado, Figueirinhas, Porto, 2012.
Tanya Reinhart, Destruir a Palestina, Caminho, Lisboa, 2004.
* Título usado por príncipes mouros, supostamente descendentes de Maomé (N.E.)
Fonte: O Militante – Revista Teórica do Partido Comunista Português (PCP)
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[Artigo tirado do sitio web brasileiro Resistência, do 21 de xuño de 2017]