Trump, proteccionismo e livre comércio

Agostinho Lopes - 02 Feb 2017

O «proteccionismo» de Trump não cai em terra virgem. Os EUA sempre foram muito liberais na imposição a outros das suas mercadorias e capitais, mas nunca deixaram de proteger feroz e devidamente as suas fronteiras económicas

O relançamento por Trump do «proteccionismo», renegando (?!) o «livre comércio», está a produzir notáveis efabulações e mistificações. No comentário mediático em Portugal (e no mundo) o «proteccionismo» de Trump é a nova ameaça global, depois do terrorismo…

 E para justificar a tese e esconjurar o «proteccionismo», vale tudo, até, argumento supremo, a invocação da História (1)!

 A História terá demonstrado, segundo esses liberais de trazer por casa, que o «livre comércio», ao contrário do «proteccionismo» (amarrado por essa gente ao «nacionalismo») sempre correspondeu a períodos de crescimento económico, de melhoria das condições de vida dos povos e nações. O «laissez faire, laissez passer» dos mercantilistas de Colbert e herdeiros, como chave da felicidade humana e paz no mundo.

 A complexidade e diversidade da evolução económica no mundo, pelo menos desde a Revolução Industrial, não permitem tal simplismo nem visão histórica. Bem pelo contrário.

 Paul Bairoch, professor de História Económica da Universidade de Genebra (falecido em 1999), no seu importante ensaio «Mitos e Paradoxos da História Económica» (publicado em Portugal em 2001), põe a nu esse simplismo de abordagem histórica e desmonta os mitos económicos em torno do «livre comércio» versus «proteccionismo».

 «O mito que afirma que o proteccionismo provocou a crise de 1929 e a depressão da década de 1930 leva-nos a examinar uma outra lenda, mais disseminada e muito mais importante, da história de longa duração das políticas comerciais. “O comércio livre é a regra, o proteccionismo a excepção”: exprimindo-se assim, é quase um dos dogmas da economia neoclássica. Quantas vezes ouvimos falar da idade de ouro do comércio livre, do qual se demarca o proteccionismo das décadas de 1920 e 1930? A verdade é que, na história, o comércio livre é a excepção e o proteccionismo a regra.»

«(…) Foi nomeadamente o caso dos Estados Unidos (…) que podem pelo contrário ser classificados como “pátria e bastião do proteccionismo moderno”. O liberalismo iria prevalecer (…) nos países que formam hoje o terceiro mundo (mais particularmente as antigas colónias); mas não se tratou de uma escolha deliberada e estes países tiveram que praticar um liberalismo forçado. (…)»

Mas não é apenas a História. A realidade económica recente e presente é elucidativa da imensa fraude propalada pelos defensores do «livre comércio».

 O «livre comércio» foi sempre a expressão da vantajosa relação de forças (económica, política, militar) dos países mais poderosos, impondo os seus interesses aos países mais pobres, mais frágeis, menos desenvolvidos. Impondo o «livre comércio», quase sempre à força, aos países do chamado Terceiro Mundo (e especialmente aos que foram colónias), com graves consequências na sua industrialização e desenvolvimento económico. O «livre comércio» sempre foi o outro nome do proteccionismo dos países mais poderosos e potências imperialistas.

 O uso pelas potências capitalistas e imperialistas da defesa do «proteccionismo» ou do «livre comércio» sempre foi de geometria variável. A tónica, em cada conjuntura histórica, era/é a que lhes dava/dá jeito… Isto é, a que nesse momento defende os interesses dos seus capitalistas, das suas classes dominantes, transformados em interesses dos seus estados. Os interesses da fracção da classe dominante que acedeu ao poder. Em momentos de crise, como a que o capitalismo atravessa nos dias de hoje, sempre oscilaram as posições do capital e dos seus advogados – assim aconteceu na grande crise de 1930, inclusive com o próprio Keynes (2).

 «Se a opção protecionista contraria a globalização, ela não contraria a ordem capitalista. Ao colocar em oposição os produtores voltados para o mercado interno e os que privilegiam as transações com o exterior, ela não questiona nem as prerrogativas do capital, nem as relações de força dentro das empresas. No entanto em períodos de crise, ela divide a classe dirigente e suscita duros enfrentamentos de interesses.». (S. Halimi, Monde Diplomatique, Março 2009)

 É, por exemplo, interessante ver a história do processo de defesa do «livre comércio» dos principais países capitalistas, e fundamentalmente da Tríade (EUA, CEE/UE, Japão) no quadro da evolução do mundo após a II Guerra Mundial – consolidação de um bloco socialista, emergência do Movimento dos Não Alinhados, afundamento da URSS e restantes países do COMECON, alargamento e aprofundamento federal da UE/Zona Euro, subida em poder económico da China e BRICS. De como esse processo iniciado no pós-guerra, com as negociações do GATT (1943), à margem das estruturas multilaterais das Nações Unidas e assim marginalizando o bloco socialista, até à constituição da OMC em 1993 (em vigor desde Janeiro de 1995), motor da liberalização do comércio. A adesão da China e outros países dos BRICS acaba por travar (3) «o quero, posso e mando» da Tríade (a ronda de Doha, iniciada em Novembro de 2001, ainda não se concluiu), nomeadamente com a presidência entregue a um director-geral do Brasil. É neste contexto que se assiste ao «esvaziar» da OMC, com a multiplicação de acordos regionais de liberalização do comércio – ALENA/NAFTA, TTP, TTIP, CETA – outra vez comandados em absoluto pela tríade (4). Que, concretizados ou a concretizarem-se, acabarão por impor aos outros países e à própria OMC as suas regras, e não apenas no comércio de mercadorias. Os objectivos estendem-se aos serviços, à propriedade intelectual, às garantias para o investimento estrangeiro (capital das multinacionais), e em particular à forma de resolução dos conflitos através de processos de arbitragem (5) à margem dos sistemas de justiça e das próprias constituições nacionais (6).

«Guerra comercial»

 Outra preocupação dos advogados do «comércio livre» com o «proteccionismo» de Trump, é o reacender da «guerra comercial» no mundo. Extraordinário! Como se alguma vez tivesse acabado ou sequer atenuado (7). Como se os tratados, agora postos em causa por Trump, não fossem a continuação da «guerra comercial» por outros meios. Como se a própria OMC não fosse uma tentativa da Tríade de domesticar e gerir a «guerra comercial» à vontade dos seus desígnios. Como se as pretendidas «igualdade e lealdade» de concorrência nos mercados internacionais não fossem sistemática e permanentemente golpeadas e torpedeadas por golpes e contragolpes, sujos e baixos, particularmente por recurso às várias variedades de dumping – comercial, fiscal, sanitário, social, ambiental … e outras manigâncias.

 No quadro da aguda crise estrutural do capitalismo e das suas consequências económicas, sociais, políticas no mundo e principais potências capitalistas, assistimos agora a um questionar da tónica da «liberalização» por sectores do grande capital e políticos de direita e extrema-direita, que cavalgam descontentamentos sociais, produzindo Trump, Le Pen e etc. Trump não está só no «proteccionismo». Da Alemanha à França, e em muitas outras grandes potências, há sinos a tocar a defuntos pelos acordos do «livre comércio».

 O próprio Brexit é também uma expressão desse questionar do «livre comércio» – veja-se como resposta a visibilidade dada pela primeira-ministra T. May ao objectivo político da «reindustrialização» do Reino Unido. Brexit que é também um xeque (vamos ver se não é mate) ao Mercado Único da liberalização do comércio intra-europeu.

 O «proteccionismo» de Trump não cai em terra virgem. Os EUA sempre foram muito liberais na imposição a outros das suas mercadorias e capitais, mas nunca deixaram de proteger feroz e devidamente as suas fronteiras económicas. O «Buy American Act» (cláusula «comprar americano nos mercados públicos»), o «Small Business Act» (reserva para as PME americanas das encomendas públicas), as multas e retaliações, mesmo para multinacionais dos seus aliados da Europa, não são figuras de retórica…

  Como se Obama (e anteriores presidentes) não tivesse começado a levantar «muros económicos» com o Tratado Transpacífico (TPP) (excluindo a China de uma zona de livre comércio), com o confronto militar no mar da China meridional (uma rota comercial estratégica para a China) e mesmo com restrições crescentes no interior dos EUA a investimentos chineses. Ou como se o «muro» com o México não estivesse construído em cerca de um terço…

 Trump tem que arranjar bodes expiatórios, reais ou imaginários, para as consequências da crise na sociedade norte-americana. Assim surgem o pântano de Washington, os especuladores de Wall Street, a regulamentação ambiental, os mexicanos, os imigrantes… etc. Uns com efectivas responsabilidades, outros cordeiros de Páscoa para serem imolados na aguda luta pela preservação do sistema capitalista e os bolsos/patrimónios dos um por cento, na explicação/justificação dos problemas dos EUA, nomeadamente da sua economia. E contra esses «bodes» esbraceja Trump e a sua tropilha… (8).

 Poder-se-iam também, em nome da história, lembrar as consequências para Portugal do livre comércio no Mercado Único da CEE/UE, que prometia, no célebre Relatório Checcini (1992), cinco milhões de postos de trabalho na Europa… e que ia trazer 300 milhões de clientes à produção nacional. Conhecem-nas hoje e duramente os portugueses. Como sabem os resultados do livre comércio que a UE foi semeando através de contratos bilaterais, ao serviço dos interesses exportadores da Alemanha e do Directório (9).

 Nota final: este texto não é sobre Trump nem a defesa das medidas de Trump. É sobre os que, à boleia de Trump, querem continuar a vender a treta do «livre comércio» (10)!

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Notas:

  1. Por muitas outras citações possíveis: «Ora um país só é grande se for aberto ao mundo política e economicamente. Fechando os EUA ao exterior, Trump diminui-lhe o seu poder e capacidade de influência. Basta olhar para a história». Elevador, Jornal de Negócios, 24Jan17, e Trump com a seta para baixo…claro;
  2. Ver texto de J. Sapir, «Le protectionisme, notre avenir – Actualité du texte de J. M. Keynes “National Self-Sufficiency (1933)”»;
  3. Não obstante o que se refere, a OMC mantém-se como importante ponta de lança no avanço da liberalização do comércio internacional/«livre comércio», mesmo se as dúvidas e as interrogações crescem. Como também refere J. Sapir no texto referido anteriormente, «os peritos do BM reviram brutalmente em baixa as suas estimativas dos “ganhos” duma liberalização do comércio internacional, mesmo que o cálculo tenha sido feito sem referência a possíveis custos.» Um estudo da CNUCED mostra ainda que o «ciclo de Doha» da OMC poderá custar aos países em vias de desenvolvimento até 60 mil milhões de dólares enquanto não trará senão 16 mil milhões de ganhos. Longe de favorecer o desenvolvimento, a OMC bem poderá contribuir para a pobreza mundial.»
  4. Stiglitz não tem dúvidas: «A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento», mais conhecida pela sigla inglesa TTIP «está a ser vendida como acordo comercial, mas é outra coisa». «Estes grandes acordos intercontinentais não visam o livre comércio, acusa, mas sim a defesa de interesses empresariais, como o das farmacêuticas contra os medicamentos.» (Expresso 12Nov16).
  5. Responsável já por inúmeras condenações com multas de estados (N. Zelândia, Uruguai, Canadá, Argentina, etc.) e a favor de multinacionais.
  6. Não os satisfaz hoje o Mecanismo de Resolução de Conflitos da OMC que, na actual relação de forças no interior da Organização, pode tomar decisões favoráveis a países que não são da Tríade, como já aconteceu com o Brasil, China, etc.
  7. Poderíamos referir dezenas de exemplos. Refira-se a guerra recente do «frango lixiviado», ou dos OGM que os EUA querem impor à UE. Ou dos queijos crus, que levaram os EUA a triplicar os direitos alfandegários sobre o Roquefort francês, como represália à proibição comunitária de importação dos EUA de carne bovina com hormonas. Ou do presidente da Airbus reclamando «a preferência europeia em matéria de serviços de lançamento» de satélites, pois as outras potências espaciais assim a aplicam escrupulosamente.
  8. Percebe-se que Teresa de Sousa, atlantista de gema e fiel da igreja do «livre comércio», questione, perplexa: «um governo de CEO de multinacionais e de financeiros vindos directamente de Wall Street vai decretar o proteccionismo ao serviço da economia mais aberta e mais competitiva do mundo?» (Público, 21Jan17). Mas a sua perplexidade resulta de não enxergar do outro lado, e ao seu lado na defesa do «livre comércio», outros CEO, da Coca-Cola, da GM, das multinacionais tecnológicas (Google, UBER, etc.), outros financeiros de Wall Street…
  9. Basta olhar para um quadro da Balança de Transacções Correntes dos estados-membros da UE com o resto do mundo para ficarmos esclarecidos: entre 2005 e 2015 o excedente alemão cresce duas vezes e meia (de 106 para 257 mil milhões de euros) e o holandês duplica (de 33 para 62 mil milhões de euros).
  10. P. Bairoch, no livro referido, cita Leão Tolstoi «a história económica é um surdo a responder a perguntas que nenhum economista lhe fez», para pôr ponto final no mito de que o livre comércio, é o que nunca foi!

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[Artigo tirado do sitio web portugués Avante, núm. 2.253, do 2 de febreiro]