Trabalhadores, a classe a destruir
Nos últimos 35 anos, um esforço ideológico tenaz tentou mostrar que o futuro das sociedades estava nas classes médias e “empreendedores”. O objetivo era minar a própria ideia do conflito social
No final da I Guerra Mundial, os médicos observaram um fenômeno estranho: os feridos dos países que tinham vencido a guerra salvavam-se mais do que os feridos dos exércitos que a tinham perdido. Como se para além dos ferimentos reais houvesse algo mental que determinava a capacidade de lutar pela sobrevivência.
Há uma semana, o El País publicou um texto onde dava conta de um relatório de professores da Universidade de Princeton em que eles alertavam para a subida da mortalidade entre os brancos de média idade e de classe média baixa, setores sociais normalmente ligados àquilo que consideramos a classe operária branca. Segundo este estudo, elaborado por Angus Deaton, vencedor do último Nobel da Economia, e Anne Case, o aumento da mortalidade entre homens e mulheres brancos entre os 45 e os 54 anos, desde 1999 até 2013, “inverte décadas de progresso e é único nos EUA”. Este fenômeno não tem paralelo em nenhum outro grupo social e racial nos EUA, nem em nenhum outro país na história recente.
Já em 2015, estes dois economistas tinham alertado para esse fenômeno: se, em 1999, a taxa de mortalidade entre os brancos sem estudos universitários era 30% mais baixa que a dos negros com as mesmas características, no ano de 2015, ela era 30% mais elevada que a dos afro-americanos. Desde o século passado até hoje, a taxa de mortalidade a nível mundial tem caído 2% a cada ano que passa, em todos os países e em todas as categorias demográficas. Os norte-americanos brancos sem preparação acadêmica são exceção.
Uma das explicações mais comuns para o fenômeno é que o desemprego passou a afetar gravemente este grupo social, devido à crise, à globalização e à automação da produção. Mas estes fenômenos também afetam os afro-americanos e os hispânicos. A diferença é que estas populações têm uma maior esperança de conseguir uma melhoria de vida. Eles nunca tiveram condições de vida dignas para si e para os seus filhos, e o seu futuro só pode ser melhor. Já os brancos de classe média baixa são a primeira geração que chegará à meia-idade com condições sociais em que serão “os primeiros que não viverão melhor que os seus pais”, afirmam os autores do estudo.
Significativamente, estes setores da população dos EUA foram aqueles que deram a vitória a Donald Trump: 60% votaram nele.
A multiplicação de candidaturas extremista xenófobas é um claro sinal, não só de uma reação de setores da população que se sentem desesperados, como a tentativa da sua destruição como sujeitos políticos ativos com um projeto para transformar a sociedade. Essas alternativas extremistas têm uma dupla vantagem para quem manda: não só constroem uma política em que o inimigo não é quem fica com 99% dos rendimentos da economia, mas o imigrante, o negro, o muçulmano; como dividem o campo daqueles que poderiam lutar por uma mudança entre a cor da pele e as várias religiões.
A destruição de projetos políticos alicerçados em setores populares e trabalhadores é precedida da sua destruição como grupo com consciência do seu valor e dos seus interesses comuns. Para sermos capazes de mudar uma sociedade não basta sentirmos que as coisas estão mal, é necessário percebermo-nos detentores de uma força coletiva e também da percepção de que há um caminho possível que pode ser traçado. Durante décadas assistimos a uma operação ideológica que atomizou as pessoas, tornou-as pasto apenas para redes sociais, deixando de constituir uma possível comunidade de vontade, de sonho e de ação. Esse processo foi acompanhado da destruição do valor social dos trabalhadores. A ideologia do “empreendedorismo” é um processo ideológico que legitima a apropriação da riqueza criada por todos para os bolsos de alguns.
Num livro muito interessante de Owen Jones, Chavs – The demonization of the working class, faz-se a resenha desta operação social de destruição da capacidade política dos trabalhadores a partir da sua destruição como comunidade de ação, através não só da maior apropriação da riqueza que eles criavam, mas sobretudo da destruição dos seus valores. Nesse processo é bem visível o papel que os órgãos de comunicação social britânicos tiveram na estigmatização do movimento operário e das classes populares no Reino Unido durante o governo de Margaret Thatcher. Owen Jones faz análises comparativas das notícias produzidas pelos vários órgãos de comunicação social em casos em que estão envolvidas pessoas das classes baixas em relação a quando estão envolvidos outros segmentos da população. Compara a cobertura do desaparecimento de Maddie [Madeleine McCann] na Aldeia da Luz com o alegado desaparecimento de uma criança dos subúrbios na Grã-Bretanha. Denuncia a invenção de fatos por parte dos jornais “populares” em relação à tragédia de Hillborough, em 1989, durante um jogo de futebol entre o Liverpool e o Nottingham Forest, em que a mídia transformou sucessivos erros na atuação da polícia, perante um estádio cheio, na consequência de uma luta entre claques violentas. A polícia divulgou, com a cumplicidade objetiva da mídia, informação falsa sobre o sucedido para escamotear a sua gestão incompetente numa tragédia que custou quase 100 mortos. Tudo isto revela a total falta de “independência” do jornalismo a este respeito, que é como quem diz a total ausência de vozes que procurem a verdade dos fatos e defendam parte da população. “O problema não é só a escassez de gente da classe trabalhadora no jornalismo. A maioria dos jornais desfizeram-se dos jornalistas que antigamente cobriam as relações laborais à medida que o poder dos sindicatos diminuía vertiginosamente”, escreve Owen Jones, acrescentando que a classe operária deixou de existir por completo no que respeita aos órgãos de comunicação, cultura popular e políticos.
A única coisa que lhes importa é a mítica classe média, que por momentos parecia, como por milagre, o destino de toda a sociedade, o alfa e ômega a que todos devemos aspirar. De fora ficam apenas alguns elementos residuais compostos por marginais, racistas e sem ambições, uma espécie de escória da sociedade. O ódio aos chavs (palavra de calão para descrever elementos de uma alegada escória social) justifica a manutenção da ordem estabelecida e das suas desigualdades inerentes, baseada na ideia de que ela traduz a justa diferença de valor das pessoas. A imprensa, segundo Owen, martela a ideia das fraudes com os benefícios da Previdência Social dos mais pobres, esquecendo-se de que no Reino Unido elas são mais de 70 vezes inferiores aos valores imputados à fraude fiscal dos mais ricos. Esta criminalização midiática das classes mais baixas e a afirmação das virtudes de uma classe média virtuosa não significam, de fato, a liquidação total das classes: “Thatcher não tinha a menor intenção de acabar com as classes sociais, simplesmente não queria que nos apercebêssemos de que fazíamos parte de uma, como confirma um documento do Partido Conservador. ‘Não é a existência de classes que ameaça a unidade da nação, é apenas a existência de consciência de classe.’”
[Artigo tirado do sitio web Outras Palavras, do 6 de abril de 2017]