Portugal: O tecto de vidro europeu
Nas últimas décadas, a arquitectura das regras orçamentais e monetárias da União Europeia constitui um tecto de vidro particularmente poderoso na subalternização de sectores sociais cada vez mais amplos, bem como de uns países em relação aos outros
A metáfora do tecto de vidro é conhecida. Ela convida-nos a analisar as condições em que vivemos e actuamos politicamente olhando, não só para os problemas bem visíveis à nossa volta, mas também para os que só identificamos com clareza virando os olhos para cima. Demasiadas vezes está lá uma barreira que impede a mudança, um tecto de vidro quase imperceptível, que mostra um «lado de lá» aparentemente ao alcance da mão, mas que na verdade é um obstáculo sólido que impede a emancipação de uma parte da população em relação a outra parte. As mulheres num mundo do trabalho em que os cargos de direcção pertencem a homens, certamente, mas também as classes populares num mundo em que os rendimentos se concentram nas classes privilegiadas, os imigrantes num mundo em que a habitação digna está em bairros inacessíveis, e por aí fora.
Os combates das esquerdas têm aumentado a consciência social destas barreiras, a tal ponto que algumas delas já a todos parecem tectos de cimento bem palpável. Tornaram-se socialmente indesejáveis, senão inaceitáveis, e por sua causa travam-se diariamente lutas políticas, sociais e culturais. A história desses combates — que conjuga ferramentas críticas, acção partidária e movimentos sindical e social — é também a história do estilhaçar desses tectos ou, dito de outro modo, da tenaz oposição às limitações que impedem a igualdade num sistema estruturalmente desenhado para reproduzir desigualdades.
Nas últimas décadas, a arquitectura das regras orçamentais e monetárias da União Europeia constitui um tecto de vidro particularmente poderoso na subalternização de sectores sociais cada vez mais amplos, bem como de uns países em relação aos outros. Há momentos de crise mais aguda em que este tecto se mostra em toda a sua força, como aconteceu na mais recente crise financeira, em que o neoliberalismo europeu brutalizou salários e pensões até das classes médias, transferindo através da austeridade recursos dos países da periferia para o centro europeu. Mas fora destes momentos agudos tende a prevalecer, até nas periferias europeias, uma espécie de pensamento mágico que quer acreditar que o tecto de vidro europeu há-de evaporar-se por si próprio. Mas o tecto de vidro europeu está lá. E exige desconstrução crítica, consciência social e acção política.
O Partido Socialista (PS) ensaiou nos últimos seis anos um caminho estreito, feito de contradições nos seus próprios termos, que mostrou agora os seus limites. A reversão de políticas impostas pela Troika e pela direita a que o governo de António Costa se propôs, aceitando até 2019 um conjunto de negociações com os partidos à sua esquerda, tinha como baliza não introduzir alterações estruturais contrárias às orientações das instituições europeias, desde logo em sede de legislação laboral ou fiscal. António Costa referiu-se repetidamente, desde o início, ao objectivo de repor rendimentos sem afrontar as regras europeias. Depois de terminados os acordos com os partidos à sua esquerda para essa devolução, e mesmo antes da eclosão da pandemia de Covid-19, que a todos reorientou no sentido das respostas de emergência, era já claro o que facilmente se adivinhava durante a crise da austeridade. Mesmo que houvesse em seguida alguma recuperação de rendimentos, e para isso seria necessário impor uma solução governativa à esquerda, dificilmente se verificaria um regresso ao patamar de condições de trabalho e de vida anteriormente existentes para a maioria (mesmo sendo já estas últimas resultantes de uma longa trajectória de perdas). E muito menos isso seria conseguido sem enfrentar as regras europeias desenhadas para transferir rendimentos do trabalho para o capital, do público para o privado, e da periferia para o centro europeu.
O agora governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, fez questão de lembrar a todos a existência dessas regras, do tal tecto de vidro europeu, logo em Junho, por altura do arranque das negociações do Orçamento do Estado para 2022 entre o governo e os partidos à sua esquerda. «Os apoios do Estado que perduram no tempo levam a perdas para o Estado que perduram no tempo», e «a evolução do mercado de trabalho antes e durante a crise mostrou um elevadíssimo grau de adequabilidade da legislação aos desafios, até extremos, que a economia enfrentou», afirmou Centeno [1]. Em suma, nada de mexer na lei laboral da Troika e da direita (caducidade das convenções colectivas, princípio do tratamento mais favorável, indemnizações por despedimento, etc.). Nada de mexer em despesas que passassem a ser estruturais, desligadas dos apoios de emergência da pandemia. Nada de considerar outras propostas dos partidos à esquerda do Partido Socialista, como a reversão da desastrosa privatização dos CTT ou a reestruturação da dívida pública. E, facto particularmente chocante, nem sequer pensar em aproveitar a suspensão das regras do Tratado Orçamental em vigor até ao fim de 2022 para aliviar a contenção orçamental e aumentar o investimento público, de modo a que o país deixasse de ter um dos mais frágeis pacotes orçamentais de resposta à crise pandémica que são conhecidos.
O que sobrava, neste quadro incompreensivelmente auto-restritivo? Sobravam aumentos insuficientes do salário mínimo nacional — arrendar um quarto em Lisboa custa meio salário mínimo, já do aumentado. Sobravam aumentos salariais na função pública demasiado exíguos para travar a perda de poder de compra, em particular num ano em que a crise dos combustíveis ameaça causar uma inflação geral dos preços. Sobravam, ainda, investimentos nos serviços públicos, como no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que ficaram muito aquém do necessário para reerguer serviços subdimensionados e desarticulados pela pandemia, e para reter médicos, enfermeiros e auxiliares que, exangues e subvalorizados, estão a perder-se para os privados e para os países do Norte europeu.
Sem a vontade de não afrontar o tecto de vidro europeu, como explicar que António Costa tenha preferido a não aprovação do Orçamento do Estado para 2022, pondo termo à primeira experiência — certamente que não a última — de uma solução governativa com entendimentos à esquerda, em vez de fazer cedências, algumas perfeitamente acomodáveis em termos orçamentais, que melhorariam as condições de vida de sectores assolados pela pobreza, pela fome, pela falta de assistência médica, pelos despejos, pela precariedade, pelos baixos salários e pensões, pela precariedade?
A desesperança que se encontra em tantos sectores pela interrupção da solução governativa que tornou possíveis alguns entendimentos à esquerda, e que foi vivida como esperança de se alcançar uma vida melhor, só pode, neste momento, levar as esquerdas a procurar as condições imprescindíveis para que no futuro se consiga mais e melhor. Sem esquecer tudo o que de positivo foi alcançado e de que são exemplos a reposição de salários e pensões cortados na crise austeritária, o pagamento integral dos salários durante a pandemia ou o êxito da campanha de vacinação. Mas sem esquecer também que o tecto de vidro europeu, que dá força aos tectos de cimento patronais e privados, foi criado para impor uma alternância sem fim entre neoliberalismo (ou ultraliberalismo) e social-liberalismo. Esta alternância pode ser o paraíso marcelista, adalbertista e de vários outros que sonham com blocos centrais e maiorias absolutas tão convictamente europeístas quanto indiferentes ao desespero social que está instalado. Indiferentes até a que esse desespero seja instrumentalizado por forças ultraliberais antidemocráticas. Mas os combates igualitários precisam de muito mais.
[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, do 5 de novembro de 2021]