Portugal: O liberalismo ou a vida
A sociedade portuguesa está a dar mostras de ter atingido o seu limite de aceitação de sacrifícios e injustiças. Multiplicam-se acções de contestação social, em movimentos pelo direito à habitação e contra a especulação imobiliária, em greves...
Irá o ano de 2023 ficar marcado pela reconstrução das forças da direita neoliberal e ultraliberal ou pela reconstrução das forças que se opõem ao liberalismo, nas suas várias modalidades? Será dada prioridade à reconstrução da vida de quem trabalha, ou trabalhou, e tem passado anos a perder poder de compra e meios de vida? Não é possível ainda responder, porque isso implicaria conhecer as escolhas que vão ser feitas por actores essenciais, a começar pelo governo de António Costa. Mas é com estas interrogações em mente, e com a vontade política de determinar a resposta, que estão a mobilizar-se forças e protagonistas no xadrez político do país.
No início do ano, as referências inscritas na mensagem do presidente da República ao governo de «maioria absoluta», logo de «responsabilidade absoluta», fizeram a comunicação social recuperar o tópico da possibilidade de dissolução do Parlamento. Marcelo Rebelo de Sousa referira-se a uma «estabilidade que só ele — ele Governo — e a sua maioria podem enfraquecer ou esvaziar, ou por erros de orgânica, ou por descoordenação, ou por fragmentação interna, ou por inação, ou por falta de transparência, ou por descolagem da realidade» (1). Uns dias depois, na sua edição de 6 de Janeiro, o semanário Expresso apressava-se, citando fontes da presidência da República, a descodificar o que o presidente dissera. A entrada da notícia sintetizava: «PR acelera ciclo político e não exclui eleições antecipadas. Vai depender da maioria. E de haver uma “alternativa forte e evidente”, que Marcelo ainda não vê» (2). E citava Marcelo Rebelo de Sousa: «“Imagine que é usada a bomba atómica e que o povo confirma o partido que está no poder. Já viu a posição em que fica o Presidente?” E ainda somou um post it para Luís Montenegro: “Não é claro que neste momento surgisse uma alternativa forte e evidente ao que existe no Governo.” Há que dar tempo ao tempo.»
Num contexto em que se sucediam demissões por incompatibilidades e conflitos de interesses dentro do governo, foi fácil fazer o spin das declarações do presidente como um sério aviso ao governo de que os casos e escândalos teriam de acabar (deixando naturalmente de fora o que os casos dizem sobre práticas e lógicas instaladas, transportadas do privado para o público). O essencial, porém, ficou por explicitar. As palavras do presidente, que nem diferem muito das que proferiu noutras alturas, pelo menos a partir do Verão de 2021, destinavam-se principalmente a mobilizar a direita a que Marcelo Rebelo de Sousa sempre pertenceu, a do Partido Social Democrata (PSD), e que tem estado enfraquecida («heranças da Troika» há muitas, não se responsabilizem só as lideranças) e ameaçada à sua direita.
Ao colocar o horizonte de um ano para que surja uma «alternativa forte e evidente» da direita, o presidente da República acenava à direita com a cenoura mais mobilizadora que podia encontrar: o do regresso ao poder, com todo o potencial que tal regresso tem de distribuição de lugares, recursos e interesses. Pouco interessa se o presidente tenciona ou não obrigar o governo a eleições antecipadas, caso as sondagens mostrem que uma alternativa de direita está pronta a usar, até porque isso depende de muitos mais factores e condições concretas. O que interessa é que o processo da sua reconstrução terá sido posto em marcha. Não é muito relevante saber se Marcelo Rebelo de Sousa está a apostar em reerguer o seu campo político-ideológico para não ficar para a história como o presidente que empossou o primeiro governo do pós-25 de Abril com um partido que não se revê no «arco da democracia constitucional» nem no «Estado de direito democrático». No contexto da crise económica e social que o país atravessa, a agenda das várias direitas liberais tem, de qualquer forma, de esconder as propostas que constariam de um programa assumidamente neoliberal ou ultraliberal — elas ainda mais dificuldades trariam —, para se concentrar na crítica à forma de governo do executivo. Essa falta de crítica programática está presente na linguagem das várias direitas: «é um governo esgotado», «não sabe o que quer para o país», e depois, com a ajuda de casos obviamente censuráveis, «estão afogados em incompatibilidades», «são arrogantes», «não são de confiança», etc.
Na verdade, face ao empobrecimento e à crise permanente (austeritária, pandémica, inflacionista), tende a ser apertado o caminho de uma reconstrução da direita que não passe pelo crescimento da direita extrema e populista. Por onde podem os liberais propor mais cortes na vida dos trabalhadores? Em que podem eles distinguir-se dos sociais-liberais sem ser cavalgando a contestação, no seu caso mais retórica do que ideológica, mais populista do que democrática, às práticas de um governo emerso em «casos»? Na ausência de vontade de combater as causas estruturais dos mesmos (das portas giratórias entre política e negócios até às remunerações, indemnizações e prémios milionários num país de salários miseráveis), fica pouco mais do que a enésima iteração de um «eles» em que pretendem subsumir «os políticos» de que não se distinguem.
Quaisquer que sejam as esperanças dessa direita que o presidente da República quer ver construir-se como alternativa política, as chaves do seu acesso ao poder dependem das escolhas feitas no governo do Partido Socialista (PS). Os eleitores portugueses não são melhores nem piores do que outros que, em diferentes tempos e geografias, deram o poder a forças antidemocráticas para descobrir que elas ainda mais agravam as suas condições de vida. O que já estava mal piora: a quebra acentuada do peso dos salários no produto interno bruto (PIB), em constante benefício dos lucros e do capital; o aumento do peso dos rendimentos mais elevados na distribuição total dos rendimentos; a destruição do carácter universal e gratuito dos serviços públicos; o carácter meramente assistencialista do Estado e das prestações sociais; a expansão constante da esfera mercantil; o crescimento das despesas militares e securitárias; e a prioridade às «contas certas» (da dívida, do défice), tal como são definidas pela arquitectura europeia, desprezando o sofrimento e a indignidade a que elas submetem grande parte da população. Em Portugal, como em toda a parte, o social-liberalismo está numa encruzilhada: ou escolhe o socialismo ou escolhe o liberalismo, sabendo que esta segunda hipótese o torna, muito possivelmente, responsável pelo crescimento do ultraliberalismo autoritário.
A sociedade portuguesa está, entretanto, a dar mostras de ter atingido o seu limite de aceitação de sacrifícios e injustiças. Multiplicam-se acções de contestação social, em movimentos pelo direito à habitação e contra a especulação imobiliária, em greves do pessoal da saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS), na impressionante greve dos professores pela Escola pública (ver, nesta edição, o artigo de Mário Nogueira). A importância dos freios sindicais colocados aos apetites inigualitários do capital é há muito destacada neste jornal. Serge Halimi resumia essa importância, já em Abril de 2015, num editorial intitulado «Elogio dos sindicatos»: «Quando o sindicalismo, ponto de apoio histórico da maior parte dos avanços emancipadores, se apaga, tudo se degrada, tudo se fragmenta. A sua anemia só pode agudizar o apetite dos detentores do capital. E a sua ausência só pode libertar um espaço que é de imediato invadido pela extrema-direita e pelo fundamentalismo religioso, dedicando-se ambos a dividir grupos sociais cujo interesse seria mostrarem-se solidários.» É nesta presença solidária do movimento social e dos sindicatos, nas ruas e nos locais de trabalho, que pode radicar a esperança de 2023 ser um ano, não de reconstrução da direita, mas de reconstrução da vida.
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(1) Mensagem de 1 de Janeiro de 2023, disponível em www.presidencia.pt.
(2) Ângela Silva, «Marcelo dá um ano a Costa para segurar a legislatura», Expresso, 6 de Janeiro de 2023.
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[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, febreiro de 2023]