Portugal: O estado a que a política económica do Estado chegou
Uma política industrial ativa seria importante para responder a um dos principais desafios que o país enfrenta: a necessidade de mudar o perfil de especialização produtiva da economia e evitar a crescente dependência de setores como o turismo ou o imobiliário, que têm baixo potencial produtivo, incorporam pouco conhecimento e tecnologia e são marcados por baixos salários e precariedade
A demissão do primeiro-ministro e a dissolução da Assembleia da República deixaram o país em sobressalto. Na última semana, o debate público tem-se centrado nas suspeitas que recaem sobre a atuação de membros do governo e nas dúvidas sobre a atuação do Ministério Público. Este texto não pretende discutir nenhum desses assuntos. No entanto, é possível fazer uma leitura sobre a economia política da situação em que nos encontramos, que implica olhar para aquilo que menos se tem discutido: o papel da intervenção do Estado na economia.
Ao longo das últimas três décadas, foi-se consolidando entre os partidos que governaram o país o consenso de que o Estado deve reduzir a sua intervenção na economia ao mínimo indispensável, assegurando a provisão de bens públicos mas abstendo-se de intervir ativamente no decurso da atividade económica. A entrada de Portugal na União Europeia e o processo de integração no mercado único trouxeram consigo as regras de concorrência, assentes no mesmo consenso, que restringem fortemente a capacidade de intervenção do Estado na economia e o apoio seletivo a setores considerados estratégicos.
Desde então, Portugal seguiu a receita neoliberal e privatizou as principais empresas do setor da energia (como a EDP, a REN ou a Galp), empresas de transportes (como a Rodoviária Nacional, a Brisa ou a ANA, além da tentativa da TAP), de telecomunicações (PT) e de atividades industriais (CIMPOR, Secil, Portucel, Quimigal, Setenave ou, mais recentemente, a Efacec). O Estado português abdicou de inúmeras empresas produtivas, lucrativas e cuja atividade tem uma dimensão estratégica para a economia nacional, não apenas pela atividade que desenvolvem, como pelo potencial de alavancar o investimento privado a montante e a jusante.
Se olharmos para as grandes privatizações do período da Troika – EDP, REN, ANA e CTT –, justificadas com a suposta necessidade de reduzir a despesa do Estado e angariar receitas para ajudar a pagar a dívida, o cenário é desolador: na maioria dos casos, houve uma redução do investimento na economia nacional, um corte no número de trabalhadores e a canalização de dividendos para os privados, que, só numa década, já encaixaram cerca de metade do que pagaram pelas empresas. O Estado abdicou de empresas lucrativas por um montante que permitiu pagar... apenas 3,3% da dívida pública. O caso mais recente da Efacec, uma empresa com potencial de inovação na área da transição energética que acaba de ser entregue a um fundo alemão, mostra que a prática governativa não mudou assim tanto.
O grande resultado deste processo foi o enfraquecimento do setor público. O Estado abdicou de empresas estratégicas para a definição de uma política energética e de inovação e abraçou um processo de integração europeia que retirou ou restringiu significativamente os instrumentos de política industrial, tendo-se limitado à atribuição de benefícios fiscais que, no caso do IRC, já ascendem a 1637 milhões de euros e cujos critérios e eficácia nem sempre são claros. Pelo caminho, perdeu-se a capacidade administrativa e as competências técnicas necessárias para uma política de planeamento público que permitisse definir objetivos sobre os setores de atividade que devem ser apoiados (com base em critérios como a descarbonização da economia, ou a substituição de importações), requisitos claros sobre a qualidade do emprego criado e a sustentabilidade ambiental dos projetos e normas que garantam que os investimentos têm retorno para o país.
Uma política industrial ativa seria importante para responder a um dos principais desafios que o país enfrenta: a necessidade de mudar o perfil de especialização produtiva da economia e evitar a crescente dependência de setores como o turismo ou o imobiliário, que têm baixo potencial produtivo, incorporam pouco conhecimento e tecnologia e são marcados por baixos salários e precariedade, sendo não apenas responsáveis pela estagnação económica como pela subida galopante dos preços da habitação e, consequentemente, pela perda de poder de compra de boa parte das pessoas que vive no país.
Na ausência de uma estratégia coerente, não surpreende que seja difícil descortinar os objetivos estratégicos de boa parte dos investimentos privados que recebem apoios do Estado – tanto de forma direta, através de benefícios fiscais, como de forma menos direta, através da agilização de procedimentos. Na verdade, entre os Projetos de Interesse Nacional (PIN) que beneficiam da simplificação de processos administrativos, um dos setores que se tem destacado é precisamente o do turismo, o que mostra como a mudança da estrutura produtiva está longe de ser uma prioridade clara na definição do "interesse nacional".
Portugal é hoje o 2º país europeu com menor peso das empresas públicas na economia. O Estado, que sempre desempenhou um papel central no processo de inovação, perdeu boa parte das competências e estruturas necessárias para o planeamento económico. Com níveis historicamente baixos de investimento público e pouca vontade política para o recapacitar, os governos ficaram mais dependentes dos investimentos privados e mais permeáveis aos interesses de quem os promove. Depois de seguirmos à risca as recomendações do consenso liberal, aquilo com que ficámos foi um Estado demasiado vulnerável a interesses privados.
[Artigo tirado do sitio web portugués Ladrões de bicicletas, do 21 de novembro de 2023]