Portugal: O choque da extrema-direita nos 50 anos da revolução

Sandra Monteiro - 16 Abr 2024

Há oito anos no poder, o Partido Socialista perdeu as eleições em Portugal. Nenhuma força obteve a maioria absoluta, mas a coligação de direita teve mais deputados. O seu líder, Luís Montenegro, dirigirá um governo minoritário, por agora sem se aliar com a extrema-direita em forte crescimento. Mas o que justifica este crescimento da direita neoliberal e ultraliberal? Como explicar o fim da excepção portuguesa 50 anos depois da Revolução dos Cravos?

 É um choque imenso. A 10 de Março, a poucas semanas de comemorar os 50 anos da Revolução dos Cravos(1), que instaurou o regime democrático em Portugal após 48 anos de ditadura fascista, um partido da extrema-direita populista criado apenas em 2019, o Chega, instala-se como terceira força política. Passa de 7,15% dos votos nas legislativas de 2022 para 18,07%, e mais do quadruplica o número de deputados (de 12 passa para 50). As eleições legislativas são vencidas, à tangente, por uma coligação de partidos da direita tradicional, liderada pelo Partido Social Democrata (PSD), com 28,85% dos votos e 80 deputados. Somado, o campo da direita obtém agora uma maioria absoluta dos assentos parlamentares (138 num total de 230). Há oito anos no poder, o Partido Socialista (PS), que ainda em 2022 obtivera uma maioria absoluta, obtém 78 lugares e é afastado do governo. Dos partidos que sustentaram a solução governativa no período de 2015-2019, o Bloco de Esquerda (BE) mantém os 5 deputados e a coligação liderada pelo Partido Comunista Português (PCP) passa de 6 para 4 deputados.

 Celebrar o 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974 com um país que virou tão profundamente à direita é desafiante. Votaram uns 6 milhões de eleitores, numa significativa redução da abstenção (de 42% em 2022 para 40,16%, a mais baixa desde 2005), cerca de 1 milhão dos quais no Chega. A hipótese de um regresso do «perigo fascista» logo se fez ouvir. Obviamente, os tempos não são os que o país conheceu na ditadura nacional (1926-1933) e no Estado Novo de António Oliveira Salazar e Marcello Caetano (1933-1974)(2). Para compreender o terramoto actual — ou o «estado a que isto chegou», para usar as célebres palavras do capitão Salgueiro Maia quando exortou as tropas a seguirem-no até Lisboa para acabar com o regime —, mais útil será revisitar a reconfiguração neoliberal, «até dizer Chega»(3), por que passou o Estado de direito democrático e social nascido da Revolução.

 O que atrasou, e agora precipitou, a colocação de Portugal no mapa dos países em que a extrema-direita(4) tem uma presença parlamentar determinante? O contexto internacional de um fenómeno que atravessa fronteiras fazia temer pela imunidade do país. Mas a história dos contágios nem sempre é linear: se, na Revolução dos Cravos, o desejo de pôr fim à guerra colonial e ao império que mobilizou os militares revoltosos estava em linha com os ventos europeus de descolonização, também é verdade que, quando o golpe militar português saiu à rua, muitos temeram inicialmente que fosse obra dos «ultras», para intensificar a ditadura, em linha com o golpe do general Augusto Pinochet que ocorrera alguns meses antes no Chile. Passados 50 anos, as surpresas não foram boas.

 Um dos sinais de mudança surgiu com o crescimento da extrema-direita em Espanha, país com que Portugal partilha uma história recente de ditaduras longas e repressivas, que encerraram as sociedades no medo e na pobreza. Mas muitos pensaram que o acesso recente à democracia, ao Estado social e a várias dimensões de modernização da sociedade funcionassem como diques, quando afinal só atrasaram a progressão da extrema-direita. Em Portugal, aliás, a memória da ditadura foi-se esbatendo com o tempo e a passagem geracional, mas também com políticas do apagamento da memória, até nas marcas que persistiam no espaço público — como mostrou a remoção da placa que assinalava, em Lisboa, o edifício da ex-Polícia Política (PIDE-DGS). A dimensão de ruptura do período revolucionário com o capitalismo e o colonialismo foi também progressivamente substituída, desde logo nas comemorações oficiais, pela narrativa do acesso a uma liberdade cada vez mais liberal, ponto de passagem para uma modernização europeísta, aberta a mundos e fundos recebidos na adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1985. Esta adesão ocorreu no mesmo ano que a de Espanha, e os dois países partilharam desde então muitas dificuldades decorrentes da sua condição de economias periféricas na arquitectura institucional europeia, em particular desde o euro. Ainda assim, quando o partido de extrema-direita Vox(5) entrou, em 2019, na representação parlamentar espanhola (mais de 10% dos votos ), muitos continuaram, em Portugal, a salientar o papel determinante de uma questão aqui inexistente, a das autonomias e das nacionalidades. E não era também verdade que nas mais recentes eleições espanholas o número de deputados do Vox até já diminuíra?…

A extrema-direita nasce dentro da direita tradicional

 Mas o dique da memória da ditadura, da suposta «excepção portuguesa» ou ibérica, não pôde suster transformações profundas há muito operantes na sociedade portuguesa. Esse mesmo ano de 2019 acabou por ser o da criação do Chega, por André Ventura, que foi militante do PSD de 2001 a 2018. Ventura começou por construir visibilidade mediática como comentador de desporto num muito popular canal televisivo por cabo (a partir de 2014), encabeçando em 2017 a candidatura do PSD às eleições autárquicas em Loures, município então governado pelos comunistas. As declarações que fez nessa altura contra as pessoas «que vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado», visando explicitamente a etnia cigana, causaram grande choque: «Isto que vou dizer pode não ser muito popular, mas é a verdade: temos tido uma excessiva tolerância com alguns grupos e minorias étnicas. Não compreendo que haja pessoas à espera de reabilitação nas suas habitações, quando algumas famílias, por serem de etnia cigana, têm sempre a casa arranjada. (…) Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no final do mês olha para isto com enorme perplexidade. Isto não é racismo nem xenofobia, é resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei.»(6). O presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, que fora primeiro-ministro de 2011 a 2015, quando questionado sobre a manutenção do candidato após tais declarações, que motivaram o abandono da coligação pelo seu parceiro, o CDS-Partido Popular (CDS-PP), apressou-se a negar-lhes um carácter racista ou xenófobo e a manter o apoio a Ventura. O dique tinha rebentado.

 A crise em que a direita entra depois de 2015 leva André Ventura, ainda militante do PSD, a desafiar, sem sucesso, o recém-eleito presidente do partido, Rui Rio (2018-2022), criando um movimento interno, já denominado Chega, para o substituir. A amálgama estava presente logo nas primeiras propostas: o discurso contra as minorias ou o casamento de pessoas do mesmo sexo convivia com o «compromisso com os valores da social-democracia portuguesa»… A história que se segue é a da criação e progressão eleitoral do Chega por todo o território nacional, feita de investimentos maciços de grandes empresários no novo partido (alguns financiamentos e donativos estão por comunicar às instâncias competentes), superiores aos dos grandes partidos tradicionais — tais como os de outro partido, a Iniciativa Liberal (IL), criado em 2017. É uma história feita também de crescente visibilidade mediática, e não só das já rodadas metodologias de presença deste tipo de partidos nas redes sociais. Em 2022 e 2023, por exemplo, Ventura foi sistematicamente o terceiro protagonista da informação televisiva, sem qualquer relação com o peso eleitoral que então tinha, enquanto protagonistas de outras forças partidárias se viam sub-representadas para o peso que tinham (BE), ou por vezes nem constavam da lista dos dez primeiros (PCP)(7).

 Nascido do interior do PSD, o Chega tornou-se o protagonista central de uma reconfiguração da direita neoliberal. Enquanto os partidos da direita tradicional, associados à memória dos anos de chumbo em que governaram com a Troika (Banco Central Europeu (BCE), Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI)), procuraram «recentrar» o discurso, os novos partidos apresentam-se com diferentes rostos. A IL surge como ultraliberal em economia e aparentemente menos conservadora em temas de sociedade como a interrupção voluntária da gravidez (IVG) ou as questões LGBTI+. O Chega mostra-se como amálgama ideológica de posições neoliberais com propostas sociais mais recentes. Com efeito, este partido prometeu aumentar as pensões de 200-300 euros, para as aproximar do salário mínimo nacional (hoje de 820 euros)(8), ao mesmo tempo que faz um discurso «anti-sistema» e «anticorrupção» — ilustrado pelo slogan «Limpar Portugal» —, alimentado por lamentáveis casos, de diferente gravidade, lançados no debate público por instâncias judiciais e pelos media como espectáculo sensacionalista, mas nem sempre seguidos de processos nos tribunais nem condenações. O discurso do Chega defende também o reforço do Estado securitário, curiosamente num país com índices baixos e declinantes de criminalidade violenta, com excepção dos crimes de discriminação e incitamento ao ódio, que entre 2022 e 2023 cresceram 38%(9)… Assumindo um populismo racista e xenófobo, este partido visa sobretudo os portugueses ciganos, a imigração oriunda dos países africanos de língua oficial portuguesa (objecto de protocolos com o Estado que o Chega quer anular) e os imigrantes, nomeadamente do Sul da Ásia, que trabalham na agricultura e nas plataformas digitais. São os argumentos que podem ser mobilizados em contexto de pressão sobre os serviços públicos e de baixos salários, mas com taxas de desemprego que baixaram de 16,3% em 2013 para 6,5% em 2023, apesar de nesse ano ser de 20,3% entre os jovens(10).

 Esta reconfiguração da direita pretende certamente esbater a memória dos governos austeritários (cortes de salários e pensões, explosão do desemprego, da pobreza e das desigualdades, salvamento de bancos privados, etc.). Mas alimenta-se também das insuficiências e erros da governação que se seguiu. É certo que a solução governativa criada em 2015 com os acordos assinados entre o PS e o BE, o PCP e o Partido Ecologista - Os Verdes (a chamada «Geringonça») reverteu cortes anteriores e mostrou, até 2019, uma política modesta de estímulo à procura interna. Verificaram-se melhorias salariais (em particular do salário mínimo) e aumentos ligeiros de prestações sociais (sobretudo as mais baixas); retomou-se algum investimento nos serviços públicos desaparecido na Troika (mas tão insuficiente que se perderam os seus profissionais para a emigração e o sector privado, sobretudo na saúde); e foram até concretizadas medidas importantes como a redução do preço dos transportes públicos, o aumento das vagas gratuitas nas creches ou a gratuitidade dos manuais escolares e das consultas de saúde. Mas também é verdade que as forças políticas à esquerda do PS nunca conseguiram impor outras alterações, como a reversão das leis laborais da Troika(11) (em particular a contratação colectiva) ou a recuperação de um investimento público robusto, para já não falar da reversão de um ciclo de privatizações dos mais intensos na União Europeia(12).

«Contas certas» e perda de poder de compra

 A partir de 2019, as políticas do governo do PS, minoritário ou em maioria absoluta, norteadas pelo objectivo de «contas certas» antes tão criticado, conseguiu mesmo realizar excedentes orçamentais. Mas quaisquer melhorias foram absorvidas pelos efeitos da pandemia, da inflação dos preços e dos aumentos das taxas de juro. Perante significativas quebras de poder de compra, os anúncios de indicadores económicos positivos (aliás alcançados por uma recuperação económica guiada pelo turismo e pela construção) permitiram à direita juntar um discurso pretensamente social ao projecto de reconfiguração neoliberal do Estado. Assim, o regresso das parcerias público-privadas na saúde supriria as falhas do SNS; uma fiscalidade mais recessiva e bónus fiscais aos mais ricos gerariam poder de compra para os que mais precisam, por via de um suposto estímulo à economia; políticas de incentivos aos proprietários imobiliários, em vez de construção pública e controlo dos preços no mercado, responderiam à dramática crise da habitação; e por aí adiante. Nos media, a invisibilidade dos partidos à esquerda do PS e uma constante denúncia de casos «de corrupção» envolvendo membros do governo, que culminou com a decisão do primeiro-ministro António Costa de se demitir — por instauração de um inquérito judicial no âmbito de uma investigação sobre tráfico de influência e corrupção (sobre o qual nada mais se sabe) —, criaram as condições para o terramoto eleitoral de 10 de Março.

 A direita tradicional, eleitoralmente estagnada, será governo. O partido que mais cresce, o Chega, é o que melhor aproveitou o descontentamento e o sofrimento social, sem ser penalizado pela memória de governações passadas. Mas é mesmo no passado que estão as raízes do actual crescimento da extrema-direita. Aliás, os sinais que inserem esta história na da implantação do neoliberalismo surgiram logo na campanha eleitoral. Enquanto parte do país se escandalizava com o estilo populista radical de André Ventura, apanhado em constantes aldrabices, contradições e vitimizações, o líder da coligação liderada pelo PSD, Luís Montenegro, procurava manter o verniz centrista recém-adquirido. Isso não impediu elementos da sua coligação de virem lembrar o quanto o pensamento de Ventura não lhe é exclusivo. Primeiro, um candidato independente, nada convencido das alterações climáticas, alertou para a falta de segurança no mundo rural e a possibilidade da formação de «milícias armadas», assunto a ser «resolvido com a GNR (Guarda Nacional Republicana) ou quiçá com os militares». Depois, o antigo primeiro-ministro Passos Coelho associou insegurança e imigração («precisamos de ter um país aberto à imigração, mas cuidado, precisamos de ter também um país seguro»). E, por fim, um candidato do católico CDS-PP, seu parceiro, defendeu um novo referendo para anular a lei da IVG.

 Este pensamento não é novo nestes dois partidos. Já em 2010, Passos Coelho afirmava ser preciso «repensar o Estado» criador de «subsidiodependência», vindo mais tarde, em 2014, a promulgar, em coordenação com o FMI, limites à acumulação de prestações não contributivas e subsídios («a subsidiodependência é um abuso»). Não eram apontados a dedo os que recebiam as transferências sociais, talvez porque nesse ano a taxa de risco de pobreza antes de transferências sociais atingia um pico de 47,5% (após transferências sociais, 19,5%)(13). Mas essa associação já tinha sido feita, anos antes, por Paulo Portas, o vice-primeiro-ministro (2013-2015) de Passos Coelho, ideólogo e depois executor da transformação do seu partido, o Centro Democrático Social (CDS), no CDS-PP, em 1993. A primeira experiência populista da direita nascera aqui.

 Paulo Portas, que agora será mais conhecido de muitos portugueses pelo espaço de comentário político semanal que tem numa estação televisiva de canal aberto desde 2016, ao domingo e em horário nobre, foi líder do seu partido durante dezasseis anos (1998-2005 e 2007-2016). A designação que lhe foi posta de «Paulinho das feiras» surgiu quando passou a irromper por feiras e mercados, nas campanhas eleitorais, defendendo quotas para a imigração e reforços policiais, e insurgindo-se contra «os preguiçosos que não querem trabalhar» e recebem «o rendimento mínimo», que Portas opunha aos idosos que recebem pensões baixas. Tal como afirma, hoje, o Chega de Ventura. Já em 2002, 2009 ou 2010, Paulo Portas confrontava estes vendedores, frequentemente de etnia cigana, para criticar estas prestações sociais (desde 1996, o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e, a partir de 2003, o Rendimento Social de Inserção (RSI)), tendo sido o rosto, em 2010, da proposta de revisão do RSI de transferir parte das suas verbas para as pensões. A associação discriminatória imputava então «abusos» e «fraudes» a supostos «subsidiodependentes».O regime constitucional instaurado na sequência da Revolução manteve inicialmente algumas barreiras a estas viragens: a Igreja católica fazia-se discreta por causa do papel que tivera na ditadura, e insistia em valores sociais; uma memória da descolonização e da integração dos portugueses «retornados» de África, em contexto de importantes comunidades emigrantes, para países como França, matizava alguns discursos; a forte influência do PCP, do sindicalismo até ao poder local, favoreciam conquistas laborais e sociais, ocupando o espaço do discurso nacional sem ser nacionalista; os temas da segurança, ainda associados aos militares de Abril, não eram facilmente apropriáveis pela direita; e a Constituição de 1976, estruturada a partir de ideais socialistas, definia aspectos como a irreversibilidade das nacionalizações, a Reforma Agrária ou a gratuitidade do acesso à saúde.

A integração na globalização neoliberal

 A partir de meados da década de 1980, as mudanças aceleram-se. A integração na globalização neoliberal também. Depois das duas intervenções do FMI em Portugal (1977 e 1983), a adesão à CEE em 1985 foi acompanhada da imposição de uma revisão constitucional, em 1989, que liberalizou o sistema económico e o adaptou a uma economia capitalista plena: impôs a abolição da irreversibilidade das nacionalizações, permitiu reprivatizações, reduziu o peso da economia planificada pelo Estado, eliminou a referência constitucional à Reforma Agrária e abriu as portas à privatização na comunicação social, que chegará às televisões na década de 1990. Os fundos europeus que afluem com a integração europeia permitem modernizar alguns sectores, enquanto outros, como a indústria têxtil do Vale do Ave, entram em crise e sucumbem.

A liberalização nos serviços públicos avança, como no ensino superior, e a violência policial volta a mostrar a dimensão repressiva do Estado, contra trabalhadores e estudantes. Nas ruas, a violência racista, nacionalista e xenófoba é exercida em particular contra a população negra, por grupos neonazis que se mantêm até hoje na esfera da criminalidade e nunca conseguiram tradução eleitoral significativa, apesar da manutenção das candidaturas até hoje. A integração de Portugal na União Europeia e no euro foi certamente marcada por períodos de afluência de fundos importantes, primeiro na adesão, agora com o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Mas o novo padrão de especialização produtiva do país, que na sequência da liberalização, da financeirização e da crise 2008 é cada vez mais caracterizado por serviços ligados ao turismo e ao imobiliário, só tem acentuado o carácter dual de um país profundamente desigual: pobreza, desigualdades socioeconómicas, territoriais (litoralização, metropolização) e ambientais (com o Algarve particularmente ameaçado por uma seca persistente, cortes e racionamentos de água).

 Enquanto grande parte da população se sente deixada para trás, interesses e sectores que têm enriquecido a cada crise apostam agora na extrema-direita, a que o campo mediático escancarou as portas, para aproveitar as falhas de uma social-democracia crescentemente social-liberal e conseguir invadir o terreno social — sem abdicar do liberalismo económico. Mais de um milhão de eleitores dirigiu o voto para o Chega, muitos deles votando pela primeira vez (jovens ou anteriores abstencionistas). A génese deste neoliberalismo oportunista e autoritário de rosto social tem as suas raízes num passado de décadas. O facto de o país estar agora no mapa da extrema-direita não significa, porém, que se possa olhar para os mais de 18% de actuais votantes do Chega como motivados por racismo ou xenofobia. A sociologia eleitoral deste acto será complexa, mas tudo indica que os votantes deste partido, não deixando de incluir outras proveniências, reúnem uma geografia do ressentimento, do protesto e da cólera contra um poder político que não resolve os problemas das suas vidas. A «máquina dos sonhos está avariada», também em Portugal(14).

 Do lado dos dirigentes do Chega, os objectivos são claros. A instrumentalização neoliberal do terreno social destina-se a forçar o fim da alternância entre dois blocos partidários («liberal», «socialista»), substituindo-a por uma paisagem partidária tripartida. A sua agenda é ultraliberal, securitária e anti-imigração. A retórica promete «acabar com a corrupção» e melhorar a vida de quase todos: forças de segurança, polícias, ex-combatentes da guerra colonial, profissionais de saúde, professores, etc. Mas o projecto assenta numa aliança entre os sectores mais ultramontanos do capital português com uma média burguesia (imobiliário, agricultura) com uma agenda conservadora (onde tem aliados religiosos) e de regressão social.

 O choque político e simbólico sentido pelos que defendem a democracia nascida há 50 anos foi sublinhado por André Ventura na noite eleitoral, em jeito de aviso: «Hoje houve também um ajuste de contas com a história. Com a nossa história no pós-25 de Abril; (…) com o passado que durante décadas foi asfixiado, dominado, manipulado, atrofiado pela extrema-esquerda e pela esquerda, que dominou redacções, que dominou instituições, que dominou a nossa economia; (…) com a história de um país silenciado, de muitos que perderam a voz ao longo das últimas décadas ou que a tiveram fugazmente. De muitos que viram o país de Abril transformar-se na desilusão de Abril.» A referência ao país de Abril ainda é, apesar de tudo, incontornável. Trata-se agora de disputar o sentido da desilusão, para reabrir caminhos de democracia e igualdade.

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Notas:

(1) Para um enquadramento recente, ver Victor Pereira, C’est le peuple qui comande — La Révolution des Œillets (1974-1976), Éditions du Detour, Bordéus, 2023.

(2) Ler Alcides de Campos, «M. Caetano pratique habilement “la répression dans la continuité», Le Monde diplomatique, Agosto de 1973.

(3) João Rodrigues, «Até dizer chega» e «Liberais até dizer chega», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Setembro de 2020 e Junho de 2023.

(4) Jean-Yves Camus, «Extremas-direitas mutantes na Europa», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Março de 2014.

(5) Criada em 2013, esta formação de ultradireita registou os seus primeiros ganhos eleitorais em 2018 — cf. Pauline Perrenot e Vladimir Slonska-Malvaud, «O franquismo continua a dilacerar a Espanha», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Novembro de 2019.

(6) «“Há minorias que se acham acima da lei. Temos tido excessiva tolerância”», Notícias ao Minuto, 12 de Julho de 2017, www.noticiasaominuto.com

(7) Dados da empresa de sondagens Marktest (www.marktest.com). Em 2022, o primeiro e o segundo lugar foram ocupados pelo primeiro-ministro António Costa e pelo presidente da República Marcelo de Sousa, que em 2023 surgem na ordem inversa.

(8) O salário mínimo nacional era de 505 euros em 2015; desde então aumentou anualmente, situando-se hoje nos 820 euros. O salário médio situava-se, em 2023, nos 1505 euros, um aumento que não compensou a inflação. Cf. «Evolução da Remuneração Mínima Mensal Garantida (RMMG) », Direcção-Geral do emprego e das relações de trabalho, 17 de Novembro de 2023, www.dgert.gov.pt

(9) «Crimes de ódio em Portugal subiram 38% em 2023», Diário de Notícias, 9 de Fevereiro de 2024, www.dn.pt

(10) «Taxa de desemprego aumentou para 6,6 % no 4.º trimestre de 2023 e para 6,5 % em 2023», Instituto Nacional de Estatística, 7 de Fevereiro de 2024, www.ine.pt

(11) Ler Mickaël Correia, «A face escondida do milagre português», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2019.

(12) Nuno Teles, «A urgência de mais investimento público em Portugal», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2020.

(13) Neste século, estas proporções nunca baixaram, respectivamente, de 40%, em 2006, e de 16,4%, em 2021.

(14) Arlie Hochschild, «Anatomia de uma cólera de direita», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2018.

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[Artigo tirado da edición portuguesa de Le Monde Diplomatique, abril de 2024]