Por que temos desemprego?
É importante para a estabilidade do sistema que a magnitude relativa das reservas de trabalho não deve cair abaixo de um certo nível. Isto equivale a dizer que a dimensão do "exército de trabalho de reserva" em relação ao exército activo (ou o total) tem um piso abaixo do qual não pode cair
O desemprego tornou-se um fenómeno tão persistente nos tempos actuais que há um sentimento comum de que se trata do estado "natural" das coisas, que nada pode ser feito quanto a isso e de que o único meio de ter maiores oportunidades de emprego no futuro é a oposição ao sistema de "reservações" de emprego para os segmentos necessitados da população ou pedir que a sua própria "casta" ou "comunidade" seja incluída na categoria do elegíveis para tais "reservações".
Mas esta visão de que o desemprego é um estado "natural" das coisas baseia-se ou na ignorância ou na perda de memória, pois há pouco mais de um par de décadas havia sociedades, um grande conjunto delas, encabeçadas pela União Soviética, que foram tão persistentemente caracterizadas por escassez de trabalho – o que é exactamente o oposto do desemprego – que muitos volumes foram escritos para analisar as características do seu único e notável modus operandi. O mais célebre economista-crítico do sistema socialista da Europa do Leste, Janos Kornai, ao analisar estas economias argumentou realmente que o pleno emprego, ou mesmo a escassez de trabalho, era uma característica central destas economias. Dizer simplesmente que isto se deve ao facto de termos uma economia capitalista não é suficiente; temos de examinar os nexos causais cuidadosamente.
NEXOS CAUSAIS
Há duas possíveis razões próximas para que exista desemprego numa economia: ou há stock de capital inadequado para empregar toda a gente desejosa de trabalhar, ou há procura inadequada na economia para empregar toda a gente desejosa de trabalhar; neste último caso o desemprego deve coexistir com stock de capital não utilizado. Dentro da primeira razão temos de distinguir entre dois factores: pode haver inadequado capital constante (incluindo o fixo); ou pode haver inadequado capital variável, isto é, bens de consumo (wage-goods), para empregar toda a gente no nível "habitual" de subsistência.
A primeira razão, de escassez de capital, nunca foi decisiva. Mesmo que possa haver ocasiões em que tal escassez possa surgir, tal como por exemplo no topo de algum boom (embora mesmo isso seja duvidoso), elas certamente não explicam a existência perene de desemprego. De facto, como disse Michal Kalecki, o eminente economista marxista polaco, "a condição típica de uma economia capitalista desenvolvida" é que os "recursos da economia estão longe de serem plenamente utilizados". E esta é agora a situação mesmo de economias como a nossa onde, sob o regime neoliberal, o stock de capital não utilizado e o excesso de stocks de cereais (o principal bem de consumo) tornaram-se uma característica mais ou menos permanente.
A existência perene de desemprego em conjunto com stock de capital não utilizado e de cereais não vendidos na economia indiana, na sua configuração actual, deve portanto ser atribuída à inadequada procura agregada na economia. A procura agregada, por sua vez, é constituída por quatro diferentes componentes: consumo, investimento, gastos do governo e exportações líquidas (isto é, o excesso de exportações sobre importações). Para uma dada distribuição do rendimento, isto é, a fatia do excedente económico que vai para as classes que se apropriam do produto total, a própria procura para consumo depende do nível de emprego e de produto, ou seja, do nível da procura agregada. Portanto se a procura para consumo deve ser aumentada, então (excluindo medidas transitórias como maior crédito para consumo) a distribuição do rendimento deve ser alterada de uma maneira igualitária, isto é, através de um aumento da participação dos trabalhadores no produto total, ao que os capitalistas obviamente resistiriam.
Da mesma forma, o investimento geralmente depende do crescimento esperado do mercado. Naturalmente estas expectativas por vezes são eufóricas e por vezes nem tanto, mas elas dificilmente podem ser "por encomenda". E a visão de que uma redução da taxa de juro provoca aumentos significativos no investimento não é confirmada pelos factos; o investimento é de facto bastante insensível à taxa de juro.
A despesa governamental era considerada a principal ferramenta autónoma através da qual a procura agregada, e com ela o produto e o emprego, podia ser aumentada. John Maynard Keynes, o qual preocupava-se em que altos níveis de desemprego empurrariam o capitalismo à sua ruína, e portanto advogava a "administração da procura" pelo Estado para manter as economias capitalistas próximas do pleno emprego como um meio de salvar o sistema, punha as suas esperanças nestes instrumento. Mas sob o neoliberalismo, quando se espera que governos mostrem "responsabilidade orçamental", isto é, adaptem sua despesa à sua receita e incidam apenas num pequeno défice orçamental que seja aceitável para a finança globalizada, este instrumento deixou de ser importante. Se o produto é baixo, então a receita do governo é baixa (e arrecadar maior receita através de impostos sobre os ricos é evitado sob o neoliberalismo) e portanto a despesa do governo também é baixa, o que significa que o produto não pode ser acrescido através deste instrumento. Ele já não é mais um instrumento autónomo através do qual o Estado possa intervir para elevar a procura agregada.
Finalmente, as exportações líquidas dependem do estado da economia mundial: quando a economia mundial está em expansão, economias individuais podem exportar mais e portanto haverá mais emprego e produção em cada uma delas. Mas uma vez que a própria economia mundial consiste apenas de economias individuais, ela só se pode expandir se algumas economias individuais, nomeadamente uma grande como a dos EUA, começarem a expandir-se. Segue-se portanto que numa configuração neoliberal o nível da procura agregada e portanto do emprego em cada economia depende de [saber] se expectativas eufóricas são geradas numa grande economia como os EUA, isto é, se os EUA têm uma "bolha" ou não. A "bolha dotcom" nos EUA nos anos noventa, assim como a "bolha habitacional" nos EUA nos primeiros anos do século actual, foram em grande medidas responsáveis pelo crescimento da economia mundial ao longo daquele período e portanto em última análise estão subjacentes a qualquer geração de emprego verificada durante o regime neoliberal no nosso próprio país. Aquelas "bolhas" estão agora ultrapassadas e não há perspectivas de que surjam quaisquer outras "bolhas" no futuro imediato previsível. A economia mundial continuará portanto a estar atolada na crise e o desemprego na nossa própria economia – o qual estava a aumentar (embora não de uma forma aberta) mesmo durante os anos de alto crescimento – aumentará drasticamente nos próximos anos.
A conclusão que se seguiria da análise a este nível é sem dúvida esclarecedora, mas ainda é insuficiente. Esta conclusão pode ser declarada como se segue: se pudéssemos destacar a nossa economia da economia global, através da imposição de controles sobre fluxos de capital para dentro e para fora do país, como costumávamos ter nos tempos que antecederam o neoliberalismo, e com isso tornar a política orçamental do Estado independente das loucuras e caprichos do capital financeiro globalizado, então a "administração da procura" como nos velhos tempos poderia ser retomada; a procura agregada poderia ser promovida e, portanto, o emprego poderia aumentar.
SOLUÇÃO DIRECTA
Isto certamente é verdadeiro e importante. Também constitui uma solução directa para a crise do desemprego. Mas mesmo que isto pudesse acontecer, o desemprego ainda não seria eliminado. Isto acontece porque uma redução no desemprego, ou mais precisamente na magnitude das reservas de trabalho (uma vez que o desemprego não existe apenas de uma forma aberta), fortaleceria a posição negocial dos trabalhadores, os quais exigiriam salários monetários mais altos. Se a exigências salariais fossem concedidas mas os preços fossem ascendidos em consequência de tais aumentos do salário monetário, então haveria uma espiral inflacionária pressionada pelos custos, com salários monetários e preços a perseguirem-se um ao outro. Isto desestabilizaria o valor da moeda sob o capitalismo. E se forem concedidas as exigências salariais e os preços não ascendidos em consequência de tais aumentos salariais, então a fatia dos lucros cairia, o que certamente não agradaria aos capitalistas. Portanto é importante para a estabilidade do sistema que a magnitude relativa das reservas de trabalho não deve cair abaixo de um certo nível. Isto equivale a dizer que a dimensão do "exército de trabalho de reserva" em relação ao exército activo (ou o total) tem um piso abaixo do qual não pode cair.
Se o desemprego tem de ser eliminado, isto é, se a dimensão do exército de reserva tiver de cair abaixo deste piso, então a fixação dos preços dos produtos não pode ser deixada às empresas capitalista (pois, como vimos, provocaria uma espiral salários-preços). Deve então haver intervenção do Estado na forma de uma "política de rendimentos e preços". Assim, numa tal economia, o Estado deverá não só executar a "administração da procura" como também empenhar-se na "administração da distribuição". Quando, após anos a perseguir políticas keynesianas de "administração da procura", economias capitalistas começaram a experimentar graves espirais custos-preços, muitos governos tentaram por algum tempo introduzir "políticas de rendimentos e preços", de modo a que os altos níveis de emprego pudessem ser mantidos enquanto [ao mesmo tempo] a inflação pudesse ser controlada. Mas estes esforços demonstraram-se fúteis.
A razão porque se demonstraram fúteis é que os capitalistas opuseram-se a qualquer intervenção extensiva do Estado na economia que não fosse intermediada por eles, isto é, uma intervenção que não lhes proporcionasse "incentivos" para melhorar o estado da economia e sim tentativas de fazê-lo directamente. Isto minava a legitimidade social do capitalismo: se o Estado é tão extremamente necessário para aumentar o emprego, o povo começava a perguntar, então porque o Estado não toma o comando da própria economia retirando-o dos capitalistas? Para a legitimidade social do sistema é essencial que os capitalistas devam ser encarados como indispensáveis. E para preservar este mito a intervenção do Estado deve ser mediada através deles através da melhoria dos seus "incentivos", promovendo seus "espíritos animais" e a "euforia"; e assim por diante.
Voltando à questão do porque temos desemprego, segue-se portanto que sob o capitalismo neoliberal, onde o nível de actividade exige "bolhas" para se manter, a escassez da procura agregada como característica geral constitui a explicação óbvia. Mas mesmo numa economia onde o Estado recapture a sua capacidade para promover a procura agregada ao insistir na política orçamental que deseja, por meio da tributação e do défice orçamental, a manutenção de um alto nível de emprego exige aumento da intervenção por parte do Estado, desde a "administração da procura" a uma "política de rendimentos e preços", e assim por diante – o que mina a legitimidade social do sistema capitalista e que portanto é impossível de se manter dentro dos limites do sistema capitalista.
Dizer isto não significa que não deveríamos exigir emprego mais alto sob o sistema existente ou que não possamos mesmo alcançar através das nossas lutas emprego mais elevado sob o sistema existente. O que significa de facto é exactamente o oposto, nomeadamente que uma luta persistente pelo emprego dentro do sistema é um meio de transcender o próprio sistema. E isto constitui uma razão todo-poderosa para o nosso empenhamento nesta luta.
[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Resistir.info’, do 15 de marzo de 2016]