Paz e segurança: afinal, quem as ameaça?
A possibilidade da Ucrânia se juntar à NATO (ou, mais precisamente, de ser por ela absorvida) suscitou nas últimas semanas inflamadas declarações acerca da liberdade de cada Estado decidir das suas alianças. Omitiu-se, porém, que o princípio da indivisibilidade da segurança, estabelecido pela OSCE, assume que essa liberdade não poderá pôr em causa a segurança de outro país… Aceitariam os EUA ter mísseis estrangeiros estacionados junto às suas fronteiras?
Nas últimas semanas, a tensão militar no Leste da Europa suscitou justas apreensões e deu azo a uma autêntica avalanche mediática (não confundir com noticiosa ou informativa, pois é coisa bem diferente).
Porém, do muito que se disse e escreveu, quase tudo passou ao lado do fundamental: a acção desestabilizadora e belicista do imperialismo, bem patente, naquela região, no autêntico cerco militar à Rússia que EUA e NATO vêm protagonizando, e sucessivamente apertando, há quase três décadas, bem como nas constantes provocações que engendra junto às fronteiras do país euro-asiático, directamente ou por intermédio dos seus instrumentos locais – alguns, aliás, bastante sinistros, como é o caso do Batalhão Azov e outros agrupamentos nazi-fascistas. Nesta estratégia de tensão e guerra, os interesses do povo ucraniano são o que menos conta para o imperialismo, que os sacrificará se daí puder retirar vantagens.
Este rumo perigoso é replicado (com diferentes expressões e sob diversas siglas) noutras regiões do globo, visando outros alvos.
Com a situação em rápido desenvolvimento, assim como a operação mediática que a envolve, importa não nos deixarmos submergir na espuma dos dias, decifrar o que se esconde por detrás da propaganda, ver o panorama completo e puxar o filme atrás.
Nestas páginas, em traço grosso, procuramos responder à pergunta que importa: afinal, quem ameaça a paz e a segurança?
I — Das «promessas» à realidade: a NATO às portas da Rússia
O desaparecimento da União Soviética e do campo socialista europeu, no início da década de 90 do século XX, resultou na dissolução da sua estrutura militar, o Pacto de Varsóvia. Do outro lado, e muito embora não existisse já aquela que era a sua apregoada razão de ser, a NATO não só não desapareceu como se reforçou e alargou o raio de acção e âmbito geográfico.
Quebrando, uma após outra, todas as promessas de que não se expandiria para Leste («nem um centímetro», jurava em 1990 o Secretário de Estado norte-americano James Baker), a NATO não fez outra coisa desde então: logo em 1990, toda a Alemanha se tornou parte da NATO; em 1999, juntaram-se-lhe República Checa, Hungria e Polónia; em 2004, as ex-repúblicas soviéticas Estónia, Letónia e Lituânia, mais Bulgária, Roménia, Eslováquia e Eslovénia; em 2009, Albânia e Croácia; em 2017, Montenegro e, já em 2020, Macedónia do Norte. Ucrânia e Geórgia, ambas com fronteiras terrestres com a Rússia, estão prometidas desde 2008.
A possibilidade da Ucrânia se juntar à NATO (ou, mais precisamente, de ser por ela absorvida) suscitou nas últimas semanas inflamadas declarações acerca da liberdade de cada Estado decidir das suas alianças. Omitiu-se, porém, que o princípio da indivisibilidade da segurança, estabelecido pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, assume que essa liberdade não poderá pôr em causa a segurança de outro país… Aceitariam os EUA ter mísseis estrangeiros estacionados junto às suas fronteiras?
Para além das múltiplas bases e dos avultados contingentes (alargados nos últimos dias), e dos acordos e parcerias que a colocam hoje em praticamente todo o mundo, a NATO tem ainda instalados em vários países da Europa Central e Oriental componentes do seu sistema de escudo antimíssil, que ameaça seriamente o equilíbrio de forças nuclear. Também nestes casos, em flagrante violação de acordos anteriores, nomeadamente do Acto Fundador Rússia-NATO, de 1997, onde se garantia que não seriam instaladas novas infra-estruturas militares permanentes naquela região.
II — A NATO não é, nunca foi, uma organização «defensiva»
A suposta natureza defensiva da NATO é um mito sobre o qual assenta toda a narrativa imperialista em torno da situação actual no Leste da Europa, como aliás da história mundial das últimas décadas. Segundo esta lógica, a NATO nunca poderia constituir uma ameaça para nenhum Estado por se tratar de uma organização intrinsecamente defensiva, benévola, humanitária, até … Porém, nada no seu percurso e acção corrobora esta visão idílica.
A constituição da NATO, em Abril de 1949, impôs ao mundo um bloco político-militar e a lógica da confrontação e da corrida armamentista, contrariando – e interrompendo – a formação de um sistema de segurança colectiva, como previsto na Carta das Nações Unidas. O objectivo de defesa do Mundo Livre, que proclamava, chocava de frente com a sua própria composição: entre os membros fundadores contavam-se a ditadura fascista portuguesa e outras potências coloniais que violavam os mais elementares direitos dos povos subjugados ao colonialismo.
A cronologia também não ajuda à tese da organização defensiva. Aquando da sua criação, a União Soviética desmobilizava milhões de soldados, destacando-os para as tarefas de reconstrução nacional. Quanto ao Pacto de Varsóvia, só seria criado em 1955, ou seja, seis anos depois da NATO: a ameaça comunista, permanentemente brandida, serviu na perfeição para justificar a manutenção – e o reforço – da presença militar norte-americana na Europa.
Proclamações à parte, sobra a realidade: a NATO é um instrumento do imperialismo norte-americano apontado à soberania dos Estados e aos direitos dos povos. Provam-no a sua participação em golpes de Estado, o apoio a ditaduras fascistas, as redes de espionagem, ingerência e terrorismo (como a Gládio), as manobras de intimidação – como as que decorreram ao largo de Lisboa, em 1975, face à Revolução de Abril.
A partir da última década do século XX, desaparecido o seu opositor de ontem, a NATO rapidamente descobriu novas ameaças ou desafios, para procurar justificar não só a sua manutenção como o novo protagonismo que viria a assumir: não se tratava já de «conter» e «repelir» o movimento libertador dos povos, mas estender o domínio imperialista a todo o mundo.
As agressões directas à Jugoslávia, à Líbia, ao Afeganistão; os acordos e parcerias que a colocam hoje em praticamente todo o mundo; as revisões do Conceito Estratégico, alargando áreas de actuação e âmbito geográfico, são expressões desta estratégia.
III — Factores de desestabilização, militarização e de guerra
Não há argumento, discurso ou narrativa, por mais criativos que sejam, capazes de desmentir o que todos os factos e números comprovam: são os EUA e os seus aliados da NATO os principais responsáveis pela acentuada militarização que marca o nosso tempo, com todas as ameaças que dela decorrem.
Deixando de lado a retórica (e que perigosa é…) e o que atrás já se referiu, veja-se em primeiro lugar a fatia representada pelos EUA e NATO no total das astronómicas – e crescentes – despesas militares mundiais. Segundo o Instituto Internacional de Estocolmo para os Estudos da Paz/ SIPRI, os gastos militares ascenderam, em 2020, a mais de 1980 mil milhões de dólares – um aumento de 2,6% relativamente ao ano anterior e de 9,3% face a 2011. Ora, com gastos na ordem dos 778 mil milhões de dólares, os EUA assumem sozinhos 40% do total. Se lhe juntarmos os restantes membros da NATO, ultrapassa-se os 60%, números dez vezes superiores ao valor das despesas militares russas – aliás, só as despesas militares dos membros europeus da NATO, no seu conjunto, ultrapassam em muito as da Rússia.
Nos anos anteriores, a tendência foi a mesma.
Os EUA investem mais no seu arsenal nuclear do que todos os outros países juntos, têm vindo a desenvolver armas nucleares mais modernas e inteligentes e a investir fortemente na aplicação militar da chamada inteligência artificial. Admitem, na sua doutrina militar, a possibilidade de desferir um primeiro ataque nuclear, mesmo contra Estados que não detenham este tipo de armamento.
São também os EUA e a NATO – e não a Rússia ou a China – a terem uma presença militar em praticamente todo o mundo. Segundo dados oficiais, os EUA têm fora do seu território milhares de operacionais estacionados em mais de 600 bases e instalações militares em cerca de 60 países. Supõe-se, porém, que os números reais sejam consideravelmente superiores, devido ao carácter secreto de algumas dessas instalações. A este número deverá acrescer dezenas de bases dos outros Estados membros da NATO.
Nas últimas três décadas, os EUA têm vindo também a demolir peça por peça o edifício de tratados e acordos internacionais de desanuviamento e controlo armamentista erguido por influência do campo socialista e das grandes movimentações em defesa da paz que marcaram a segunda metade do século XX: entre outros, os EUA abandonaram unilateralmente o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ao mesmo tempo que desenvolviam os seus sistemas antimíssil), o Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio e o Tratado sobre o Regime de Céu Aberto.
IV — Velhas estratégias, novos alvos
Desde há muito que o imperialismo norte-americano vê na sua superioridade militar e na sua acção agressiva respostas para fazer face à crise estrutural do capitalismo e à perda da sua preponderância relativa a nível internacional: a subordinação de todo e qualquer Estado que não se submeta aos seus ditames é um objectivo central da sua política externa, assumido de modo cada vez mais desassombrado. A República Popular da China é, desde há anos, alvo central desta estratégia.
Nos últimos anos, têm sido muitas as formas encontradas para atingir este objectivo: guerras comerciais, chantagem sobre Estados para não aprofundarem relações com a China, desestabilização interna, campanhas mediáticas e, também, o cerco militar. Tal como sucede no Leste da Europa e Ásia Central, em torno da Federação Russa, também na Ásia Oriental e no Pacífico se ergue já hoje um anel de fogo em torno da RP da China, com dezenas de bases militares, frotas navais e sistemas de mísseis.
Depois de, em 2007, ter sido constituído o denominado Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad), envolvendo os EUA, o Japão, a Índia e a Austrália, foi anunciada há meses a criação do acordo militar designado AUKUS, acrónimo em inglês de Austrália (A), Reino Unido (UK) e EUA (US). No seu âmbito, a Austrália será dotada de uma frota de submarinos nucleares e de uma infra-estrutura capaz de a manter e desenvolver; já os britânicos e os norte-americanos (sobretudo estes últimos) verão aumentada a sua presença militar na região, podendo utilizar bases e postos militares australianos para estacionamento e movimentação de tropas, navios, aeronaves e armamento.
[Artigo tirado do sitio web ODiario.info, do 28 de febreiro de 2022]