Pandemia e luta de classes

António Avelãs Nunes - 12 Ago 2020

A pandemia permitiu a todos perceber que, ao contrário do que defendem os neoliberais, os malfadados serviços públicos são essenciais quando é necessário salvaguardar direitos tão fundamentais como o direito à saúde e o direito à vida. Sem serviços públicos de qualidade não há democracia digna desse nome

  1. Em 2008, a Sr.ª Merkel defendeu que a origem da crise estava nos excessos do mercado. Agora, a pandemia veio mostrar que o mundo depende da aspirina que (quase só) se produz na Índia e que a Europa e os EUA dependiam da China no que toca à produção de máscaras de protecção individual e de ventiladores utilizados nas unidades de cuidados intensivos. Há quem fale dos excessos da deslocalização de empresas industriais e até da necessidade de salvaguardar a «soberania farmacêutica e sanitária.» Tudo bem. Mas é ainda mais importante garantir aos povos a soberania alimentar, energética, financeira, a soberania no que toca ao controlo dos portos e aeroportos e das empresas de telecomunicações, das empresas de transporte aéreo e de todo o conjunto das empresas estratégicas, aquelas em que assenta a verdadeira soberania.

 Em nome da liberdade de circulação do capital (a mãe de todas as liberdades do capital), inventou-se a internacionalização, a deslocalização de empresas industriais para os paraísos laborais, em busca de mão-de-obra barata e sem direitos. Os países emergentes seriam a fábrica do mundo, ficando as ‘metrópoles’ com os serviços ‘nobres’ (estratégicos) da investigação e concepção, os serviços financeiros e o turismo. Tudo para permitir ao grande capital aumentar a taxa de exploração (nas ‘metrópoles’ e nas novas ‘colónias’) e contrariar a tendência para a baixa da taxa média de lucro que as chamadas crises do petróleo (anos 1970) trouxeram à luz do dia.

 A desindustrialização registada nos países mais industrializados arrastou consigo a subversão da estrutura produtiva (e da estrutura do emprego) e a ruptura das fileiras produtivas em vários sectores, ficando a nu os perigos destes excessos do capital. Fala-se agora da necessidade de re-industrialização. E fala-se também da necessidade de temperar o radicalismo do comércio livre imposto ao mundo através da OMC.

  1. Nos últimos anos, o mundo tem sido fustigado por várias pandemias: SARS – 2003; H1N1 – 2009; MERS – 2012; Ébola – 2014; Zica – 2016. E os especialistas têm relacionado o seu carácter recorrente com as agressões ao ambiente motivadas pela mercantilização da vida, sacrificada ao objectivo da maximização dos lucros. Admite-se que a destruição brutal da floresta esteja a destruir o habitat natural de muitos animais selvagens (portadores de vírus com os quais convivem bem), empurrados para zonas onde é mais fácil e mais frequente o contacto com os humanos, facilitando assim a passagem desses vírus dos animais para as pessoas, que não têm anti-corpos para os enfrentar. Daí o carácter recorrente das pandemias e a provável ocorrência de outras em futuro próximo. O capitalismo, que até aqui gerava crises cíclicas, parece gerar agora também pandemias cíclicas, com efeitos desastrosos no plano económico e social. Vale a pena levar a sério estes avisos: a defesa do ambiente tem que estar no centro da nossa luta contra o capitalismo, pelo socialismo.
  2. A pandemia deixou claro que as receitas do neoliberalismo são só para os pobres, porque são eles os condenados a sofrer as consequências das leis do mercado e das políticas impostas para garantir as liberdades do capital. Os ricos e os grandes potentados do capital vivem do estado (dos impostos pagos por quem trabalha), que lhes garante lucros abundantes sem riscos nem falências, que asfixia o estado social que protege os trabalhadores mas alimenta o estado social para as empresas («corporate welfare», em bom português…).

 Confirma-se o que já sabíamos: quando as coisas correm mal, todos os neoliberais exigem que o estado faça tudo para salvar as empresas e para fazer os trabalhadores pagar a crise. Mais uma vez, enquanto milhões de milhões são entregues ao sector financeiro e às grandes empresas, abandonam-se os trabalhadores ao desemprego, situação que, em países como os EUA, significa a perda da casa e do seguro de saúde. É o que está a acontecer com os cerca de 40 milhões de trabalhadores americanos que caíram no desemprego. A pandemia está a aumentar a pobreza e a acentuar as desigualdades.

 Em meados dos anos 1950, alguém escreveu que o liberalismo só poderia ser levado à prática pela força das armas. A vida confirmou isto mesmo. Os pinochets e os suhartos semeados pelo imperialismo já o tinham deixado claro, dramaticamente. Agora, perante a atitude patologicamente irresponsável do Presidente do Brasil (que representa interesses e poderes que estão muito para além dele), muitos vêm falando da ameaça de genocídio dos povos indígenas da Amazónia.

 O que se passou na Europa com as políticas de austeridade posteriores à crise aberta em 2008 não deixou dúvidas sobre a vocação totalitária do neoliberalismo. Agora, na ‘Europa civilizada’, o Primeiro-Ministro da Holanda (um dos campeões do neoliberalismo) não teve vergonha de vir a público defender que «os pacientes mais idosos ficarão a receber tratamento em casa, considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de sobrevivência, será mais humano deixá-los [morrer, digo eu] nos seus lares». Para o Sr. Mark Rutte (e para todos os Trumps e Ruttes), os idosos são «bocas inúteis»: não produzem nada e só dão despesa. Se eles morrerem, a segurança social pode diminuir as suas despesas (pode mesmo deixar de existir) e as finanças sãs agradecem. É uma frieza assassina e genocida, a lembrar o ‘profissionalismo’ dos carrascos de Auschwitz (por alguma coisa se chamou ao nazismo a peste castanha), sempre preocupados em agir segundo as regras da racionalidade económica capitalista, buscando empenhadamente ‘tecnologias’ capazes de melhorar a eficiência (a produtividade) do genocídio.

  1. A tentativa de esconder o papel decisivo do estado é uma construção ideológica destinada a fazer crer que tudo decorre, naturalmente, das leis naturais do mercado. Mas a História mostra que foi o estado que construiu o mercado e que o estado esteve sempre presente na economia, porque o capitalismo exige a presença do estado capitalista. E as políticas neoliberais têm exigido sempre um estado forte, capaz de impor, pela violência, o fascismo de mercado, contra os trabalhadores.

 Com a pandemia, todos puderam ver que o neoliberalismo não significa o fim do estado-nação: a economia parou, à escala mundial, não por razões do mercado, mas por imposição do estado; e são os estados nacionais que se perfilam como as únicas entidades que podem organizar o processo de recuperação da economia. Como se tivéssemos saído de uma guerra, há quem entenda ser necessário regressar à economia de guerra (ao comunismo de guerra) dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Todos esperam que os estados nacionais recuperem as empresas, recuperem os serviços públicos, assumam o comando da revitalização da economia e da re-industrialização. A luta pela democracia é a luta por políticas públicas que sirvam os trabalhadores e não o grande capital.

 A pandemia permitiu a todos perceber que, ao contrário do que defendem os neoliberais, os malfadados serviços públicos são essenciais quando é necessário salvaguardar direitos tão fundamentais como o direito à saúde e o direito à vida. Sem serviços públicos de qualidade não há democracia digna desse nome.

 Já se sabia que os EUA não têm um sistema público de saúde. A pandemia revelou as dificuldades da Itália para lhe fazer frente, mas mostrou que o défice dos EUA quanto a médicos e camas de hospital por mil habitantes é ainda maior. No Reino Unido, foi preciso o Primeiro-Ministro ser infectado com alguma gravidade para ele próprio assumir que foi o Serviço Nacional de Saúde que o salvou e que é necessário investir mais no National Health Service.

 Em Portugal, foi o SNS (tão debilitado pelas políticas de sucessivos governos do PS e da direita) que tirou das suas fraquezas as forças necessárias para lutar contra a pandemia e salvar a vida de muitos portugueses. Os ‘negociantes’ da saúde recusaram-se a receber doentes (com o COVID-19 ou outros), porque tiveram medo da contaminação, porque recearam não estar à altura das exigências do momento, talvez, sobretudo, porque se aperceberam de que o momento não era para fazer grandes negócios. A Ministra da Saúde disse na AR (20.5.2020) que não foi possível recorrer aos privados para obter ajuda no combate à pandemia porque, mesmo os que tinham convenções com o estado, entraram em lay-off, disseram que queriam suspender as convenções em vigor, disseram que não estavam disponíveis, disseram que tinham medo: «fecharam-se quando o País mais precisava deles» e «isso fica agarrado à pele, não desaparece.»

  1. – A pandemia veio mostrar que a solidariedade não faz parte dos valores do mundo capitalista. Para se exibir junto dos seus apaniguados como um ‘macho’, Trump retirou o apoio financeiro dos EUA à OMS quando ela mais precisa de ajuda. E os defensores da civilização cristã e ocidental recusaram na ONU a proposta de levantamento das sanções ilegais impostas a países como o Irão e a Venezuela, de modo a facilitar a aquisição de produtos médicos indispensáveis ao combate à pandemia. Na Europa, a Alemanha e a França proibiram a exportação de ventiladores e máscaras para países em situação de emergência, como a Itália. Valeu aos italianos a solidariedade da China e de Cuba.

 A pandemia veio confirmar que a ‘Europa’ é exactamente o contrário do que apregoam os apóstolos do culto europeísta: é incapaz de se assumir como uma entidade solidária. Porque isso não está na sua natureza. Por outro lado, a luta contra o coronavírus tem servido de pretexto para disseminar outra pandemia ainda mais grave, reforçando os fascismos já instalados em vários países da ‘Europa democrática’, de que são exemplos mais destacados a Hungria e a Polónia. E, por toda a parte, os interesses de sempre, estão a fazer tudo para que se reforce a campanha (em marcha acelerada desde 2008) no sentido de reduzir os direitos fundamentais dos trabalhadores e mesmo os direitos, liberdades e garantias. Modos autoritários de gestão estão a ser adoptados como algo normal em várias esferas da sociedade, até mesmo nas universidades públicas. Há que estar atento a estes desvios, porque é a democracia que está em causa.

 A pandemia mostrou que a Cuba socialista – apesar de sofrer, há décadas, os pesados danos causados pelo bloqueio ilegal imposto pelos EUA, com a cumplicidade da ‘Europa’ – tratou dos seus problemas, ajudou a Itália e ainda enviou material médico e uma equipa de 200 médicos para ajudar a África do Sul (para além do auxílio que prestou a outros países). E mostrou que o Vietname foi capaz de ultrapassar a crise pandémica sem vítimas e ainda teve disponibilidade para oferecer 440 mil equipamentos de protecção pessoal aos EUA. Foi uma nova vitória do povo vietnamita sobre o arrogante imperialismo americano.

 O ‘filme’ do que se tem passado nestes últimos meses obrigou o mundo a recordar que a China vem aumentando, há décadas, o investimento em investigação científica, representando, actualmente, 25% do investimento mundial neste domínio. A China está na vanguarda do conhecimento em áreas estratégicas como os semi-condutores, a computação quântica e a inteligência artificial. Os EUA, em vez de responderem no mesmo terreno, aumentam o seu já monstruoso orçamento militar (40% do orçamento mundial). A guerra nunca trará (nunca trouxe) a solução: nas condições actuais, significará o holocausto global.

  1. É nos períodos de dificuldade que se conhecem as pessoas. E também os estados e os sistemas económico-sociais. Neste tempo de pandemia, o mundo assistiu ao reaparecimento da pirataria, desta vez nos aeroportos por onde transitavam máscaras e ventiladores saídos da China com destino a determinados países, mas desviados em benefício dos estados piratas. Mais uma vez, o capitalismo fica muito mal na fotografia.

 Mas esta pandemia veio igualmente revelar outras pandemias tanto ou mais perigosas do que ela. O Director do Programa Alimentar Mundial falava há pouco da «pandemia de desnutrição» que ameaça muitos milhões de trabalhadores em todo o mundo. Segundo dados da OMS, nos primeiros cinco meses deste ano morreram, em todo o mundo, 237.469 pessoas de coronavírus; mas morreram 327.262 de malária e 3.731.427 de desnutrição. São muitas pandemias, que não podem resolver-se através de acções de caridade por mais bem intencionadas que elas sejam.

 Estudos vários indicam que as desigualdades aumentam nas ocasiões de pandemia, dentro da cada país e entre os vários países. Já todos vimos como esta pandemia está a atingir muito mais duramente os pobres e as minorias étnicas ‘inferiores’. Para o mundo de gente que vive nas ruas das grandes cidades da ‘sociedade da abundância’ o conselho das autoridades médicas para que fiquem em casa parece uma brincadeira de mau gosto ou uma manifestação de humor negro. O mesmo se diga da situação dos milhões de pessoas em todo o mundo impedidas de trabalhar e aconselhadas a ficar em casa, sem poderem contar com o mínimo apoio do estado. Que casas têm os milhões que vivem em favelas, com este ou com outros nomes? De que vivem estas pessoas se não trabalharem? Dizer-lhes que fiquem em casa é quase o mesmo que dizer-lhes que morram da ‘cura’ para não morrerem da doença.

 A OMS falou já de infopandemia. E há quem fale da pandemia de info-falsidades (ou pandemia de fake news). A verdade é que a pandemia do coronavírus tem sido transformada pelos interesses dominantes em objecto de luta política, nomeadamente por parte dos EUA, que viu expostas as suas debilidades quando se trata de defender a vida e não de provocar a morte.

 Outros têm aproveitado a onda para semear um clima de medo, que leve as pessoas, especialmente os trabalhadores, a aceitar o que lhes oferecem, porque os tempos não estão para brincadeiras. Os ‘fabricantes de notícias’ sabem muito bem que o medo é paralisante e priva as pessoas do discernimento e da coragem necessários para enfrentar as situações difíceis. Por isso difundem o medo e o pânico. Cabe-nos fortalecer a confiança no futuro.

  1. Em finais de Abril, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma Declaração/Apelo na qual se defende a colaboração internacional para a descoberta de uma vacina e se proclama o direito de todos, em todo o mundo, a aceder a ela, logo que seja descoberta. Esta é a única atitude digna dos homens.

 A verdade, porém, é que a corrida a esta vacina está a transformar-se em instrumento de luta política e comercial entre as grandes potências. Uma vergonha para o mundo. Trump já tocou trombetas anunciando que a chegada dos EUA em primeiro lugar à obtenção de uma vacina será (mais) uma vitória do seu projecto America first, transformando em propaganda eleitoral uma questão tão relevante para todo o mundo. Empenhado em ganhar esta ‘corrida’, para a qual parte mal colocado, o governo americano tem tentado ‘conquistar’ vários laboratórios fora dos EUA, oferecedendo-lhes financiamento gratuito com a contrapartida de serem os EUA os primeiros a receber a vacina.

 A Administração Trump tentou adquirir um laboratório alemão que tinha alguma investigação promissora nesta área. Mas o governo alemão fez gorar o negócio, alegando que «a Alemanha não está à venda». Mais falado tem sido o caso do laboratório francês SANOFI, um dos maiores grupos farmacêuticos à escala mundial e o primeiro na área das vacinas, resultante da fusão de duas empresas públicas deste sector, alimentado por investigação desenvolvida no sector público e financiado com muitos milhões de euros que saem anualmente do erário público. A certa altura, soube-se que a SANOFI tinha feito com uma empresa americana do ramo um acordo de parceria financiado pelo governo dos EUA, que exigiam ser os primeiros a receber a vacina. Perante o escândalo, Macron teve de vir a público dizer que «a vacina contra o COVID-19 devia ser um bem global», um bem «à margem das leis do mercado». O governo francês terá avançado com mais dinheiro e a SANOFI recuou, depois de a França e a Alemanha terem conseguido reunir cerca de sete mil milhões de euros destinados à investigação para a descoberta da vacina.

 Um sinal de esperança vem da mensagem enviada pelo Presidente da China à 73.ª Assembleia Mundial da Saúde (18.5.2020). Nela, a China anuncia um donativo de 2 mil milhões de dólares para ajudar os países subdesenvolvidos a enfrentar as exigências e as consequências económicas e sociais do coronavírus e anuncia que a vacina COVID-19 que vier a ser produzida na China «converter-se-à num bem público mundial.»

 Este é o caminho. Parece óbvio que, uma vez descoberta uma vacina, ela deverá ser considerada património comum da Humanidade e colocada à disposição de todos os povos do mundo.

  1. Perante a pandemia, a ‘Europa’, enquanto entidade, ainda pouco mais fez do que discursos.

 O Banco Central Europeu (BCE) tem feito o que fez depois da crise aberta em 2008: comprando títulos da dívida pública no mercado secundário, fornece liquidez a baixo custo aos bancos para que estes continuem a fazer os seus negócios de sempre. Esquece-se o fundamental: o dinheiro fácil não chega para que os ‘empreendedores’ invistam. Nenhum capitalista investe quando há tanta capacidade produtiva por utilizar, quando as incertezas abundam e quando não há expectativas de lucro.

 Se não pensarmos em alterações estruturais profundas, dizem os livros que, nestas situações, só o estado pode promover políticas de promoção do emprego e de combate ao desemprego, fazendo os investimentos que os privados não fazem; só as despesas públicas podem criar riqueza e emprego e distribuir rendimento pelas famílias, para que estas alimentem o consumo interno, essencial, num país como o nosso, para dar vida às pequenas e médias empresas que são a base da nossa estrutura produtiva, que criam riqueza e emprego.

 Esta política exige medidas que combatam a fraude e a evasão fiscal; que façam depender os descontos patronais para Segurança Social do volume de negócios ou dos lucros globais e não do número de trabalhadores; que aliviem a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho e que tributem as grandes fortunas, os rendimentos do capital e as transacções financeiras; que se traduzam em transferências significativas do estado para as famílias mais pobres (prestações sociais).

 E exige um sistema de controlo efectivo da banca, dos seguros e dos mercados financeiros. E a presença de um banco central que financie as políticas públicas pela via da emissão de moeda, sem gerar dívida pública, e que compre títulos da dívida nacional directamente ao estado, no mercado primário, sem a intermediação da banca privada. É o que se passa nos EUA, no Reino Unido, na Rússia, na China e em tantos outros países. Mas a ‘Europa’ é o bastião da independência dos bancos centrais, uma invenção dos monetaristas/neoliberais que se traduz na privatização dos estados nacionais, colocados na mesma situação de uma qualquer empresa ou de uma qualquer família: quando precisam de dinheiro vão aos bancos e estes é que decidem se financiam (e em que condições) ou não financiam as políticas públicas. O BCE é o banco dos bancos, mas não é o banco central nem da UE nem dos estados-membros que adoptaram o euro como moeda única.

 O chamado Banco de Portugal não é um verdadeiro banco central: é uma simples sucursal do BCE, obrigado a cumprir as ordens do ‘patrão’. Em benefício do BCE, perdemos a soberania monetária: não controlamos a emissão de moeda, não definimos as taxas de juro nem as taxas de câmbio (não podemos utilizá-las como instrumento de política), não definimos os índices da inflação, nem sequer somos titulares do direito de supervisão sobre os bancos que operam no nosso País (todos nas mãos do capital estrangeiro, salvo a CGD). Perdemos também a soberania orçamental, porque é a ‘Europa’ que dita os limites do défice orçamental e os limites da dívida pública, e porque o OE é agora aprovado em Bruxelas, limitando-se a AR a carimbar a decisão dos eurocratas de serviço. Enquanto continuarmos assim não passamos de colónias do grande capital financeiro.

  1. É já claro que vão ficar muito para trás os países mais pobres e mais débeis, com menor capacidade para enfrentar, com recursos próprios, a crise económica e social associada à pandemia. Ao abrigo da flexibilização do regime das ajudas de estado, a Alemanha já ajudou as empresas alemãs com muitos milhões de euros, mas outros países não podem fazer o mesmo.

 Actuando mais uma vez como ‘donos’ da ‘Europa’, a França e a Alemanha vieram anunciar o propósito de uma ‘ajuda’ de 500 mil milhões de euros (que poderia não ser um empréstimo…) para combater a crise. Ora este montante é cerca de 1/3 do valor reclamado pelos países mais carecidos de ajuda, e diz-se que tem de ser utilizado tendo em conta «as prioridades da UE». Tudo claro. É mais uma proposta inserida na estratégia de ‘colonização’ das periferias europeias pelas duas potências dominantes: é preciso evitar que as indústrias estratégicas caiam nas mãos de investidores não europeus, não para garantir o seu controlo pelos povos dos estados-membros da UE (a privatização, a preços de saldo, é a palavra de ordem), mas para garantir o seu controlo pelo grande capital alemão e francês. É mau que a EDP seja controlada por capitais chineses (e, para Portugal, é mau, a meu ver), mas já seria óptimo se fossem empresas alemãs ou francesas as donas da EDP (como acontece com a PT), porque assim se garantiria a soberania económica e industrial da UE…

 O curioso é que, de imediato, um dos vice-presidentes da Comissão Europeia veio lembrar que o Pacto de Estabilidade e Crescimento não foi suspenso e que, passada a onda, é necessário regressar às boas práticas das finanças sãs (cortar nas despesas sociais para evitar o défice das contas públicas e ‘libertar’ o dinheiro necessário para pagar os encargos da dívida). Esta ‘Europa’ não tem segredos, é sempre igual a si própria: imperialista, neoliberal, austeritária, que sacrifica os povos para salvar os bancos.

  1. Na sequência da proposta franco-alemã, a Comissão Europeia anunciou que vai propor ao Conselho Europeu a criação de um Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros, obtidos através de um empréstimo contraído pela Comissão, que os estados-membros amortizarão mais tarde, entre 2027 e 2058. Em princípio, 500 mil milhões de euros serão transferidos a fundo perdido, mas o valor global fica muito aquém do que o próprio Parlamento Europeu considera necessário. Por outro lado, já se anunciam cortes de 3% no Quadro Financeiro 2021-2027, o que significa que Portugal vai receber menos do Fundo de Coesão e da PAC. Por outro lado, a Comissão vai falando no lançamento de impostos europeus, através dos quais diz poder recolher mais 420 mil milhões de euros. Um caminho perigosíssimo (essas receitas são subtraídas aos orçamentos nacionais) e sem base legal, porque só estados soberanos podem criar impostos e a UE não é um estado federal nem existe uma soberania europeia.

 No momento em que escrevo, a ‘ajuda’ da UE continua incerta, porque o Conselho Europeu (CE) ainda não reuniu para aprovar a proposta da Comissão. A decisão do CE tem de passar depois pelo Parlamento Europeu, para regressar depois ao Conselho, lá para Outubro. Muita água ainda tem de passar por baixo das pontes… A própria Presidente do BCE veio a público criticar a lentidão com que a questão está a ser tratada, porque ela atrasa o combate às dificuldades e aumenta o custo do ‘tratamento’.

 Alguns já dizem, sem base séria, que Portugal receberá uma pipa de massa: 15 mil milhões de euros a título de subvenção, e 11 mil milhões a título de empréstimo. Ainda não se sabe quando chegará e muito menos como chegará, através dos vários ‘instrumentos’ (oito, parece) que filtrarão o acesso à pipa. Mas adivinha-se que, se vier, a ‘ajuda’ há-de vir ‘envenenada’. Segundo os critérios da proposta franco-alemã, parece que Portugal seria um contribuinte líquido: país solidário, iríamos ajudar outros mais carecidos. Pode ser que não sejamos contribuinte líquido segundo os critérios da proposta da Comissão. Mas é certo que, em termos absolutos, vamos receber muito menos do que a Alemanha, a França, a Itália e a Espanha.

 Dizem alguns ‘comentadores’ que a atribuição da ‘ajuda’ há-de ser, certamente, condicionada à adopção de reformas estruturais…, de que logo apontam, como mais prováveis, as reformas da legislação laboral. O Ministro Santos Silva já falou de «uma agenda de reformas ambiciosa» e de «planos nacionais de investimentos e de reformas» que terão de ser negociados com Bruxelas e terão de respeitar as prioridades definidas por Bruxelas (que podem não ser as nossas). As nuvens vão-se adensando…

 Por falta de espaço não falarei aqui das complicações que poderão resultar do tão falado acórdão do Tribunal Constitucional Alemão. É dífícil fazer prognósticos a este respeito. É provável que nem o Governo alemão nem o Banco Central alemão queiram exactamente o que resulta deste acórdão. Mas o Tribunal Constitucional é, na Alemanha, uma instituição quase sagrada e não é provável que seja desrespeitado. Se ele vier a decidir que as instituições alemãs (Parlamento, Governo e Banco Central) deverão pôr termo à sua participação nos programas de aquisição de títulos da dívida pública pelo BCE, o que vai acontecer? A Alemanha sai do euro? A UE e o euro aguentam ataques virais deste tipo?

  1. Em Portugal, os responsáveis ao mais alto nível vêm insistindo no apelo ‘patriótico’ à unidade nacional, que dizem indispensável à recuperação da economia. Sem fazer juízos de intenções, direi que não é um gesto inocente, porque as escolhas políticas nunca são inocentes. Parece-me claro que ele visa desmobilizar os que não estão dispostos a abdicar da luta pelos seus direitos. Foi fácil o acordo quanto às medidas recomendadas pela ciência para combater a pandemia. Mas não é de esperar o mesmo quanto à definição de políticas económicas e sociais capazes de ultrapassar os problemas decorrentes da pandemia.

 Sabemos hoje que o regime de lay-off simplificado (alegadamente para salvar as empresas e travar o aumento do desemprego) beneficiou sobretudo as grandes empresas: 54% de entre elas estão a receber ajudas do estado (quase 40% do total das ajudas), sendo que só 27% das microempresas e 32% das pequenas empresas recebem apoio do estado por essa via. Os 800 mil trabalhadores atingidos por esse regime perderam 1/3 do seu salário (pagando o estado 84% do restante). A ‘fatalidade’ de sempre: em caso de crise, os trabalhadores que paguem a crise.

 O Governo anunciou há pouco o Programa de Estabilização Económica e Social, acompanhado da declaração de que tudo foi feito para salvar as empresas, para recuperar a economia e para salvaguardar o emprego e o rendimento dos trabalhadores e das famílias mais carenciadas. Se as boas intenções bastassem, tudo estaria resolvido. Mas não bastam. Não posso analisar aqui em pormenor o Programa do Governo. Mas penso que ele não foi tão longe como seria justo e bom para a economia. O regime de lay-off simplificado mantém-se até ao fim de Julho. Apesar das melhorias prometidas, os trabalhadores acabarão por perder, este ano, dois ou três meses de salário, um tributo muito mais pesado do que a taxa adicional de 0,02% que será aplicada à banca (se for…). Vale a pena recordar que, durante vários anos, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, as taxas marginais dos impostos sobre os rendimentos mais elevados e sobre sucessões e doações atingiram, mesmo nos EUA, valores próximos dos 90%. Porque não se lança um imposto sobre as grandes fortunas? Porque não se tributam as transacções financeiras? Os lucros das grandes empresas portuguesas vão ser tributados ou vão continuar a refugiar-se na Holanda (a Holanda ‘virtuosa’, que não quer ouvir falar de solidariedade europeia)? Uma exigência mínima: o dinheiro destas ajudas não pode sair da Segurança Social, mas do Orçamento do Estado.

 A pandemia veio provar que os privados não existem para tratar da saúde das pessoas, mas para ganhar dinheiro à custa da saúde das pessoas. O comportamento dos empresários da saúde foi vergonhoso (ou criminoso: desertaram quando o País estava em guerra contra um inimigo poderoso). Como disse a Ministra da Saúde, isso fica colado à pele, não desaparece. É um ferrete para sempre. Pois bem. Vai o Governo extrair todas as consequências do que disse a Ministra? Vai investir a sério no SNS ou vai injectar mais dinheiro para depois o transferir para os privados? Vai acabar com as parcerias público-privadas na saúde ou vai continuar a financiar os ‘mercenários’ do sector, enriquecendo quem deserta da luta em plena batalha? Se tudo continuar na mesma, direi, parafraseando a Ministra, que essas atitudes ficarão para sempre coladas à pele do governo que as tomar. Já está colada à pele deste Governo a vergonha de não acabar com as taxas moderadoras no SNS. Porque não aproveita agora, para dizer aos portugueses que o SNS é o único serviço de saúde que conta?

 E o que se vê não é nada animador. Em Coimbra, acaba de ser anunciado o encerramento da urgência do Hospital dos Covões. Antes de o associarem aos HUC para o liquidar (aspiração de sempre dos ‘barões’ da Faculdade de Medicina), aquele Hospital era um hospital a sério, com várias unidades de referência. E faz falta em Coimbra. A sua ‘morte’ só se justifica por força de interesses corporativos ou para abrir espaço ao negócio da saúde em Coimbra (com a funcionamento em pleno do Hospital dos Covões o comércio da saúde não teria grande futuro na cidade do Mondego).

 O que vai fazer o Governo português? Vai continuar a ser o melhor aluno da ‘Europa’? Ou vai opor-se ao roubo de direitos aos trabalhadores (disfarçado de reformas estruturais) que já se anuncia como moeda de troca de uma ‘ajuda’ que ainda não se viu? Num país com tantas deficiências (e tantos ‘buracos negros’) na luta contra a corrupção (denunciados até pelas instâncias comunitárias), o dinheiro vai ser gasto em segredo ou vai haver transparência democrática? O Governo vem gastando fortunas com as PPP, mas os OE não esclarecem em que condições. O Governo transferiu (e continuará a transferir) milhões e milhões para o Novo Banco, mas nem a Assembleia da República conhece o contrato que compromete o estado português. É uma vergonha para a democracia. Vai fazer o mesmo com a ajuda à TAP?

  1. Sabemos todos que as classes sociais existem e que a luta de classes (que não esteve de quarentena nestes últimos dois ou três meses) ganha redobrada importância em situações como a que vivemos. Porque o estado capitalista, como estado de classe, vai actuar (com máscara ou sem máscara) na defesa dos interesses dominantes, como está na sua natureza (esperar outra coisa é como pedir peras ao olmo…).

 A situação exige uma resposta rigorosa e firme. A luta de classes vai revestir-se de especial dureza e a luta ideológica vai ser, mais uma vez, um dos palcos mais importantes da luta de classes.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués O Militante, núm. 367, de xullo-agosto de 2010]