Os papéis do Panamá e Portugal
A novidade dos Papéis do Panamá é a enorme dimensão da informação disponibilizada: 11,5 milhões de documentos. Mas são mais uma confirmação do monstruoso volume de processos de evasão, de elisão e planeamento fiscais, levados a cabo pelo grande capital multinacional e financeiro, com a cobertura e activa participação das principais potências do capitalismo mundial. Não é assim de estranhar a presença de empresas e de capitalistas portugueses.
Há dados que consolidam aspectos não totalmente esclarecidos, como no processo BES/GES. É o caso do saco azul constituído pela Sociedade Offshore, Espírito Santo Enterprises, no «pagamento» a familiares, «políticos» e outros «agentes/colaboradores» do BES. A informação continua claramente a ser gerida politicamente. O número de empresas ligadas ao escritório Mossack Fonseca (cerca de 250), é só por si esclarecedor da amplitude do «fenómeno». Confirma-se a presença de alguns dos principais bancos portugueses. São conhecidas ligações de alguns importantes grupos económicos, bem como de personalidades envolvidas na porta-giratória, umas vezes político, outras vezes gestor económico. E é curioso constatar a consciência pesada desses cidadãos: ou estão amnésicos ou confessam que isso (as suas ligações ao Panamá) já foi há séculos…
Classificamos como «não novidade» os Papéis do Panamá porque eles constituem a continuidade absoluta de outros escândalos que, rotineiramente, têm vindo a lume nos últimos anos. É o caso dos escândalos dos «leaks/fugas» do Liechtenstein, das Ilhas Virgens Britânicas, da Suíça, do Luxemburgo e da Holanda, da Irlanda, etc., e da própria Madeira!
Para Portugal, contudo, o mais grave e o menos falado dos paraísos fiscais é o «TulipaLeak», a Holanda. É o que aconteceu e acontece pelo envolvimento de 19 (hoje 18) das maiores «multinacionais» portuguesas, todas as cotadas em Bolsa, o famoso PSI20. Todas elas, Jerónimo Martins, SONAE, EDP, PT, AMORIM, GALP, etc., constituíram empresas de fachada na Holanda para reduzirem a sua factura fiscal.(1) Foi através da Holanda que parte dos lucros dos principais accionistas privados da PT, da venda da VIVO à Telefónica, não foram tributados em Portugal. Por exemplo, contas bem feitas sobre os 2,3 milhões de euros de dividendos em 2015 das empresas do PSI 20 mostram que o país perdeu de receitas fiscais cerca de 500 milhões de euros.
As consequências de um sistema financeiro com paraísos fiscais, sociedades offshore e banca comercial privada, estão hoje bem à vista nos processos de desagregação financeira, falência e elevados prejuízos do sector bancário português (BPN, BPP, BCP, BES, BANIF), acarretando volumosos custos para a comunidade e para o Estado. A opacidade e secretismo das operações que se realizam graças a esse «sistema», à margem de qualquer escrutínio de reguladores e/ou poderes públicos, acarretam uma detecção tardia, quando já é irreversível o «cancro empresarial».
As operações Monte Branco e Furacão evidenciam também o papel central dos paraísos fiscais e sociedades offshore na evasão de capitais e fraudes fiscais. Outros «acontecimentos», como o das «Mil Famílias mais ricas» que não pagam impostos, confirmam a natureza absolutamente negativa do mundo offshore.
O «lavadouro público» dos RERT
Os dois anteriores governos tomaram medidas para que os autores de evasão ilegal de capitais e/ou titulares de patrimónios de origens escusas obtidas no estrangeiro fossem completamente poupados a sanções fiscais e judiciais, e possam dispor dos seus patrimónios expatriados. Assim aconteceu com o RERT – Regime Extraordinário de Regularização Fiscal, nas suas três versões, 2005, 2010 e 2011. Ou seja, um lavadouro público para dinheiros sujos de capitalistas e banqueiros portugueses postos nos paraísos fiscais da Suíça, Panamá, etc.. O «preço da lavagem» era barato: uma imposição fiscal à taxa de cinco por cento nos dois primeiros, (governos Sócrates) e 7,5 por cento no terceiro (governo P. Coelho/P Portas). E no 3.º RERT nem era preciso que o capital regressasse. A informação oficial indica que se lavaram cerca de 5,9 mil milhões de euros e que os RERT não cuidaram de identificar a origem dos fundos abrangidos.
Monstruosa drenagem de capital para o estrangeiro
A dimensão do fenómeno é, como há muito se sabia, monstruosa. No Relatório «Sobre a luta contra a fraude fiscal, a evasão fiscal e os paraísos fiscais», de 2 de Maio de 2013, da Comissão dos Assuntos Fiscais do Parlamento Europeu, escreveu-se: «Considerando que, segundo as estimativas, se perde anualmente o escandaloso montante de 1 bilião de euros de potenciais receitas fiscais devido à fraude fiscal, à evasão fiscal, à elisão fiscal e ao planeamento fiscal agressivo na União Europeia, o que representa um custo anual de cerca de 2000 EUR para cada cidadão, sem que em resposta sejam tomadas medidas apropriadas...».
É fácil fazer contas: dois mil euros vezes 10 milhões de habitantes, igual a 20 mil milhões de euros de perda de receitas fiscais/ano em Portugal.
De acordo com as estatísticas do FMI, só entre Janeiro e Junho de 2015 saíram de Portugal para offshores, na definição restritiva do Banco Internacional de Pagamentos (BIS), 4,4 mil milhões de euros. Valor esse que sobe para 41,5 mil milhões de euros, adicionando o que saiu para outros offshores bem conhecidos, denominados eufemisticamente «centros financeiros internacionais» (como a Áustria, a Irlanda, a Holanda, o Luxemburgo e a Suíça). Neste último caso, falamos já de 23,2 por cento do PIB de 2015, em meio ano.(2)
Segundo Richard Murphy, da ONG Tax Research, a fuga de capitais do nosso País pode aproximar-se de um quarto da riqueza anual, ou seja 25 por cento do PIB. Zucman, em «A riqueza ausente das nações», diz que, num cálculo prudente, as contas de portugueses só na Suíça (2013) valiam 30 mil milhões de euros!
Estes valores estarão sempre longe da «realidade», isto é, são valores calculados, por (largo) defeito. Qualquer que seja o valor aproximado da presença de capitais portugueses nos paraísos fiscais, estamos perante valores extremamente elevados – a sua ordem de grandeza é sempre da ordem dos milhares de milhões de euros, como se constata dos exemplos apresentados.
É fácil identificar a classe social e empresarial detentora desses capitais: banqueiros, titulares dos grandes grupos económicos, grandes empresas e multinacionais, participantes institucionais nos fundos de investimento, etc..
As consequências para o País não são difíceis de deduzir.
Em primeiro lugar temos as elevadas perdas de receitas fiscais, que eram devidas ao Estado português por actividades económicas realizadas no território nacional e por patrimónios financeiros, imobiliários e outros de que são detentores cidadãos ou entidades nacionais.
Com duas implicações directas. A sobrecarga fiscal que atinge trabalhadores, pequenos empresários, famílias, por défice de receitas fiscais causadas pela não (ou reduzida) cobrança de quem podia pagar, ou pagar muito mais. Os défices públicos seriam facilmente superados ou reduzidos, caso o Estado cobrasse o que devia. É pedagógico comparar, por exemplo, o défice público do OE para 2016 – 4,125 mil milhões de euros – com o valor da perda de receitas fiscais calculadas, segundo a Comissão dos Assuntos Fiscais do PE – 20 mil milhões de euros anuais! Bastaria que o Estado recuperasse 25 por cento para que o défice público fosse colmatado!
Com uma agravante: é, em grande parte, esse capital que não paga impostos, que voga pelos paraísos fiscais, esses fundos com nomes esquisitos, parqueados e comandados a partir das tais sociedades offshore, os ditos «mercado financeiros», que depois nos vêm pregar lições de moral austeritária, dizer que temos de fazer contas públicas equilibradas e chantagear os estados nas taxas de juro.
Sabe-se que alguns justificam, sem vergonha ética e cívica, o uso dos paraísos fiscais em nome das elevadas cargas fiscais de alguns países, ou seja a consideração de que há operações legítimas de optimização fiscal via offshores/paraísos fiscais (aliás a base para artificiosa e falsa distinção/divisão dos paraísos fiscais em maus e bons, uns são offshore outros são «centros internacionais de negócios»). Então é justificado que os contribuintes «fujam». E a solução é fácil, reduzir a zero os impostos sobre o capital…
Uma importante conclusão é necessário retirar destes escabrosos processos vindos à luz do conhecimento público: o Estado português não tem despesa a mais, tem é receita a menos… pela grande evasão fiscal, legal e ilegal, permitida pelos «amigos» das contas públicas equilibradas! Equilíbrio feito depois, naturalmente, à custa de mais carga fiscal sobre o trabalho e os pequenos empresários e de brutais restrições com os vencimentos, o SNS, a educação, os apoios sociais, como acontece com o PSD e CDS, e os órgãos da UE.
Em segundo lugar é a total subversão da tão nomeada «economia de mercado», pela desigualdade em que participam a generalidade das pequenas e médias empresas nos mercados nacionais e internacionais, sujeitas a uma impiedosa concorrência fiscal desleal e discriminatória. Não só pela superior carga fiscal sobre os lucros (basta comparar as taxas que paga o Jerónimo Martins na Holanda e o que paga qualquer pequeno/médio empresário em Portugal), como pela incapacidade de levar a cabo operações de planeamento fiscal agressivo e elisão fiscal, e a utilização dos chamados «preços de transferência».
Em terceiro lugar há que sublinhar o gravíssimo défice de capital de que sofre o País, decorrente da drenagem do capital cá produzido para esses territórios fiscais. Todos conhecemos os lancinantes apelos ao capital estrangeiro para que possam concretizar-se os investimentos de que Portugal carece. Porque, em teoria (má teoria!), o País não tem, não produz ou acumula, o capital necessário. Há até os que teorizam sobre o capitalismo português como um «capitalismo sem capital». Afinal a explicação é bem mais simples: não há capital em Portugal simplesmente porque os grandes capitalistas portugueses o exportam… sobretudo para paraísos fiscais! Colectando a mais-valia em Portugal, gostam de a acumular fora de Portugal!
Haveria ainda de avaliar as consequências decorrentes do controlo de centenas das principais empresas portuguesas, a partir de sociedades offshores em paraísos fiscais!
Entre 2008 e 2014, fora o sector financeiro, as empresas do PSI 20, algumas altamente endividadas, distribuíram 13 mil milhões de euros de dividendos do lucro accionista. Não reduziram a dívida. Algumas endividaram-se mesmo mais, para pagar os lucros/dividendos. Não investiram. O investimento declinou substancialmente! E parte substancial desses lucros, marchou para terras estranhas… para paraísos fiscais!
Ministros das Finanças distraídos
Apesar dos escândalos e prejuízos para o Estado, sucessivos governos pouco ou nada fizeram no combate à evasão e fraude fiscais. No mínimo, houve completa inacção junto da UE. Sempre com o argumento justificatório e desculpabilizante de que estas janelas abertas ao «desvio» de fundos públicos, à corrupção, ao crime, só são possíveis de fechar quando todos os países acordarem. É exemplar, pela negativa, o comportamento de sucessivos ministros das Finanças. Sempre passivos e resistentes a qualquer intervenção. Não investigam, não solicitam a documentação, e quando, por pressão da AR, a obtêm, não lhe dão seguimento, nem concluem qualquer processo.
De referir igualmente o elevado grau de responsabilidade das entidades fiscalizadoras e reguladoras portuguesas, como as autoridades tributárias e Banco de Portugal, pela sua passividade e cumplicidade.
Estes comportamentos não negam a responsabilidade maior da UE, que nem sequer toma a iniciativa de eliminar os paraísos fiscais presentes em alguns estados-membros. O que não é de espantar, quando a Comissão Europeia tem como presidente quem fez do seu país, como primeiro-ministro, um paraíso fiscal!
Não desvalorizando a cooperação entre países, os factos mostram que as sucessivas declarações solenes do G20, UE e EUA são manifestamente exageradas, sem correspondência com a realidade, quando não cortina de fumo, da completa paralisia de medidas e soluções, que vão sendo sempre apontadas para um futuro… longínquo.
Há falta de «vontade política» para acabar (Pacheco Pereira). É uma evidência a falta dessa vontade, em diversos estruturas/órgãos do poder político (governos, partidos, UE, BCE). Mas como a «vontade política» exprime interesses económicos e sociais, interesses de poder, interesses de classe, não é possível separar «essa vontade política» da identidade/conteúdo de classe representada pelos partidos políticos. Não é possível mudar essa vontade política sem mudar os interesses de classe presentes/representados pelo poder político/governos e outros órgãos de soberania e poder.
Estamos perante os «interesses poderosos», os interesses de classe do capital. E os estados e os partidos (da direita e da social-democracia) estão ao seu serviço, não porque são frágeis ou são «(…) países fragilizados», mas porque são a expressão, a emanação política desses interesses.
Um vasto património de luta e alerta
As soluções para este grave problema são, inevitavelmente, a eliminação dos paraísos fiscais (é quase consensual a total inutilidade económica destes espaços), assegurando a proibição de transferências financeiras e de localização de sedes fiscais de empresas nacionais ou multinacionais nesses territórios. Exigem logicamente o controlo público na circulação internacional de capitais e da banca comercial. Sem estas medidas, tudo o resto não passará de paliativos, como a experiência destas quase duas décadas do século XXI demonstram. Mesmo se algumas propostas podem ter algum impacto imediato.
Na continuidade de um vasto património de luta e alerta sobre estas questões, nomeadamente a luta contra a liberalização da circulação de capitais, a linha federalista da «harmonização fiscal», que acentuaria uma maior perda de autonomia e soberania na política fiscal, o combate pelo fim dos paraísos fiscais e o controlo público da banca comercial(3), o PCP retomou, como já anunciou, um conjunto de iniciativas, na AR e no PE, adequados ao fim destes mecanismos de roubo e extorsão dos povos.
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(1) O que foi feito através das Sociedades Financeiras Especiais (SFI) e a negociação com o Estado holandês, de acordos APA, um acordo de dupla não tributação…
(2) Estes valores não contradizem os valores revelados a semana passada pelo Público (mais de 10 mil milhões de euros entre 2010 e 2014, para offshores/BIS), na base dos dados fornecidos pelo Ministério das Finanças (não divulgados desde 2010!), antes correspondem a critérios diversos na contabilização e classificação dos offshores.
(3) Como escreveu a jornalista Cristina Esteves, a propósito do SwissLeaks «A banca privada e de investimento comporta-se como um autêntico canivete suíço, multifacetado para providenciar consultoria e planeamento fiscal evasivo, e vender soluções à medida» (Diário Económico, 13FEV15)
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[Artigo tirado do sitio web ‘Avante’, núm. 2.214, do 5 de maio de 2016]