Os neoliberais abriram a porta à extrema-direita. A esquerda tem de regressar às ruas
O trabalho, enquanto componente essencial da vida social, deverá recuperar a sua dimensão política. Nesse sentido, a luta pelo reforço do papel dos sindicatos e dos movimentos trabalhistas deverá assumir uma postura intransigente
Um dos fundamentos básicos do pensamento neoliberal é a ideia de que não existe “sociedade”. Seguindo religiosamente a cátedra de Margaret Thatcher, a sociedade é uma ficção perante o pressuposto de que existimos apenas como indivíduos atomizados e desconexos do ambiente social. Nesse sentido, as lutas sindicais, as mobilizações orgânicas de trabalhadoras e trabalhadores e os restantes movimentos sociais são apenas empreendimentos pueris.
São frivolidades que não levarão a lugar algum, uma vez que o ser humano só se tem a si próprio na senda da melhoria das suas próprias condições materiais. Para pôr termo aos seus problemas diários, a solução é simples: trabalhar, empreender, prescindir de lazer e relações até chegar ao sucesso idealizado.
Se a sociedade não existe, o salto lógico seguinte será invalidar o conceito de classe. Se somos, fundamentalmente, produto apenas de nós próprios (e da nossa família) e do nosso trabalho, as circunstâncias do nosso quotidiano são tão somente da nossa responsabilidade.
Caberá então a um somatório de esforço e sagacidade desenvencilhar o indivíduo sempre que se depare com uma encruzilhada. Fatores externos mas extremamente relevantes – como a existência de um patronato capitalista com poder de disposição sobre a sua força de trabalho – são encarados como desculpas para a preguiça e a indolência. O homem que os aponta é moralmente inferior àquele que baixa a cabeça, engole em seco e continua a laborar por jornadas excruciantes e até humanamente intoleráveis.
Esta cosmovisão é fragilíssima e raramente sobrevive ao teste dos factos. Quando, por exemplo, se abate uma das crises cíclicas que são parte do sistema em que vivemos, a população é tomada por uma sensação geral de anomia. E não é sem razão.
Repare-se: levaram as pessoas a considerar-se soberanos incontestáveis do seu caminho e a construir toda a sua identidade em torno dessa esperança. É natural que ao verem as suas expectativas frustradas, depois de o alçapão se abrir debaixo dos seus pés, se sintam sem rumo e propósito.
Disseram-lhes que poderiam ser tudo quanto quisessem se empenhassem a dose correta de esforço, e agora foram despedidas da empresa onde trabalhavam como se fossem o mais incompetente dos funcionários. Prometeram-lhes os frutos divinos do trabalho –- habitação, saúde e educação – e agora estão em risco de perder a sua casa com o aumento abrupto das taxas de juro ou de ser despejadas por causa do aumento das rendas.
Paralelamente a este momento de descrença, dá-se a recuperação da noção de forças externas cujo poder nos ultrapassa. Mas o conceito de antagonismos de classe foi há muito descartado. O que sobra? Como voltar a encarar a esfera social se já não dispomos das ferramentas interpretativas necessárias?
A resolução é simples: divide-se a sociedade em dois campos abstratos. Num campo situa-se a maioria da população; no outro, entes de identidade nebulosa, que oprimem a primeira. A ciência política designa esse exercício com um nome muito sonante no atual Zeitgeist: populismo.
O que é o populismo?
É certo que populismo é, como lhe chamaria Walter Bryce Gallie, um conceito essencialmente contestado, mas a academia tem vindo a tornar consensual a sua definição como ideologia de baixa densidade, como propõe Cas Mudde. Fundamentada essencialmente no seu trabalho, e nos contributos de autores como Hanspeter Kriesi e Kirk Hawkins, a minha proposta de conceptualização do fenómeno, operacionalizada na dissertação Vox Populi in Facebook: uma análise da comunicação política de André Ventura e do CHEGA em período de campanha eleitoral (2019-2022), diz o seguinte:
populismo é uma ideologia com pouca sofisticação intelectual que perspetiva a sociedade como estando dividida em dois entes homogéneos e antagónicos, o povo puro e virtuoso e as elites corruptas e corruptoras, preconizando que as decisões políticas devem ser sempre tomadas em função da vontade monolítica do povo.
A partir dessa definição, é possível delinear algumas características nucleares da ideologia articulada pelos populistas. Em primeiro lugar, os populistas assumem uma visão dicotómica do mundo, segundo a qual uma entidade titular de toda a moralidade está em constante disputa com uma abstração irremediavelmente imoral: as elites. Estas identificam-se geralmente com a classe política, mas meios de comunicação e entidades supranacionais (tais como a União Europeia ou a Organização das Nações Unidas) também podem integrá-las.
Depois, pressupõe-se que o povo seja uma figura homogénea e que, portanto, os seus constituintes têm uma vontade única e unívoca. Essa vontade – e só essa vontade – deve determinar o resultado da deliberação política. Qualquer outro modus operandi é considerado ilegítimo e, pior, corrupto.
Por fim, a ideologia populista permite aos seus emissores navegar na ambiguidade, uma vez que a identidade do povo e das elites, bem como a definição daquilo que efetivamente configura a vontade do povo, não são elementos claros e dependem sempre da interpretação do recetor. Não é por acaso que o filósofo argentino Ernesto Laclau os apelida de significantes vazios, que permitem que o indivíduo A os conceba de uma forma e o indivíduo B de outra inteiramente distinta.
Fruto da sua natureza dual, pouco complexa e constantemente desconfiada dos poderes instituídos, o populismo é extremamente ressonante com o pensamento conspiratório. Quem no-lo confirma são Paul Taggart e Andrea Pirro, que no seu artigo Populists in Power and Conspiracy Theories exploram a utilização de teorias da conspiração por parte de líderes como Viktor Órban e Donald Trump.
Exemplificando com as fabricações sobre o bilionário húngaro George Soros, por parte do primeiro, e a noção de um deep state, pelo segundo, o autor demonstra como, em diferentes estágios de governação, burocratas de extrema-direita produzem narrativas que promovem interpretações alheadas do verdadeiro funcionamento da sociedade. O objetivo é, primeiro, arquitetar inimigos comuns entre o povo e o seu representante e, segundo, encenar um estado geral de crise.
Estes artifícios são de extrema importância para as lideranças populistas, visto que, quando no poder, precisam de continuar a apresentar-se publicamente como figuras antissistema. Afinal, foi através dessa performance que garantiram o seu capital político. Fazê-lo é mais difícil quando elas próprias são o sistema, daí que o recurso a histórias que dão conta de maquinações de forças obscuras seja absolutamente necessário à sua sobrevivência.
Ao promover uma desconfiança mal direcionada do poder político e a abundância do pensamento conspiratório, os populistas estão no fundo a contaminar o seu eleitorado com realidades alternativas que o alienam cada vez mais de uma leitura coerente e lógica do mundo.
Assim, não é surpreendente quando isso se traduz em consequências práticas e com impacto material. A maioria dos teóricos do populismo não ficou de queixo caído quando apoiantes de Donald Trump, mobilizados por movimentos conspiracionistas digitais como o Qanon, invadiram o Capitólio a 6 de janeiro de 2021, duas semanas antes da tomada de posse do democrata Joe Biden.
Dois anos depois, ainda mais expectáveis foram os ataques às sedes dos três poderes brasileiros que militantes bolsonaristas levaram a cabo a 8 de janeiro de 2023 em Brasília, capital do país. O mais crítico é que nem a vigilância acrescida à qual o processo eleitoral brasileiro foi sujeito os convenceu da legitimidade da vitória de Lula da Silva. Mantiveram-se fiéis ao seu conjunto de crenças, por mais incoerente que fosse. Embora devessem certamente sofrer com uma muito frequente dissonância cognitiva, não arredaram pé da defesa intransigente dos valores conservadores e do renascimento de uma nação “que já foi grandiosa”.
E não nos deixemos enganar pelos resultados eleitorais. Do mesmo modo que o trumpismo não se desvaneceu com Trump, o bolsonarismo vai continuar a vicejar mesmo que Bolsonaro seja preso. Se Lula da Silva não tomar as devidas precauções para evitar uma segunda tomada de poder pela extrema-direita, ela vai certamente acontecer. É fulcral notar que as presidenciais brasileiras foram extremamente polarizantes e que pouco menos da metade da população votou no lado derrotado.
Mas a principal questão prende-se precisamente com quais as precauções a tomar. Além do básico, isto é, da recuperação de um Estado Social robusto que atue sobre as condições materiais do povo – algo que parece francamente improvável depois da aprovação do novo arcabouço fiscal de Fernando Haddad –, é necessário recuperar o conceito de cidadania. E isso envolve um projeto de politização que não se poderá desvincular do conceito de classes e da secular luta entre elas.
Para prevenirmos a renovação dos quadros populistas, temos não apenas de atuar contra as motivações de base da sua ascensão, mas também de os despojar de qualquer vantagem conceptual. É fundamental que deixemos de negar que o antagonismo social é um fenómeno existente. É absolutamente imperativo que deixemos de considerar a sociedade como fruto de uma relação orgânica entre todos os seus membros, sem interesses que colidem ou choques de maior tom. Não, a política é um espaço de tensão, e os populistas vencem-nos quando o reconhecem. Mesmo que falhem redondamente em apontar as origens desse conflito, já estão dois passos à nossa frente quando o identificam.
Quando o identificam, revestem-no de narrativas maniqueístas e polarizadoras. Para os populistas, a história da política é a história de uma guerra constante entre o Bem e o Mal, representados nas duas entidades irreconciliáveis desses pólos morais. Por isso, estes agentes são inevitavelmente contra os compromissos necessários à vivência numa comunidade composta por diversos retalhos e matizes. A vontade do povo, única e exclusivamente interpretada pelo seu líder, é a vontade do Bem. Qualquer acordo com o outro lado resulta na conspurcação da pureza que se exige da democracia. O pluralismo é, consequentemente, inaceitável.
Por seu lado, o conflito pensado segundo a ótica da luta de classes não resulta de atribuições morais aos vários atores envolvidos no processo. Não: entende-se que a classe capitalista, em função da sua posição material, tem interesses que se encontram em constante colisão com os interesses das classes trabalhadoras.
A título de exemplo. Ao passo que os capitalistas pretendem reduzir ao máximo os custos de produção, o que inclui o preço da mão de obra, aumentando o lucro, as classes trabalhadoras querem reduzir a jornada de trabalho e aumentar o seu salário. Mas isso não implica que um capitalista não possa ser uma excelente pessoa, com preocupações sociais e uma apreciação muito grande pela compensação adequada do trabalho.
Porém, essa virtude é fundamentalmente individual e não reflete uma consequência direta da posição dominante de um indivíduo. Do mesmo modo, também não é impossível que um trabalhador sinta que deve trabalhar cada vez mais pelo mesmo preço. É provável que essa atitude resulte dos processos de socialização neoliberal, mas é de qualquer forma um caso de aparente renúncia às necessidades de classe, e às suas individuais.
Estes exemplos não comprometem de maneira alguma a tese da luta de classes porque esta não ajuíza sobre o caráter individual do ser humano, e sim sobre circunstâncias materiais. E são essas circunstâncias que permitem ao poder económico imiscuir-se no poder político de uma maneira que uma pessoa comum não pode. Estas circunstâncias materiais são aquilo que leva o cidadão médio a considerar que o seu voto não lhe garante qualquer capacidade para influenciar o rumo da comunidade e a desconfiar, de modo geral, das instituições democráticas.
Assim sendo, o papel da esquerda é precisamente explicar-lhe o porquê dessa desconfiança, clarificando que em cada caso há complexidades e especificidades e que a política resulta da interseção de fatores de classe e de fatores contextuais.
A tese populista perderá assim – e só assim – o seu apelo. Quando até os mais nebulosos processos são colocados a nu, a população começa a demonstrar muito menos propensão para aderir a superstições, por exemplo. Quando tentamos demonstrar que a origem da sua carência de poder decisório resulta de uma tendência sistémica para o favorecimento de substratos económicos minoritários, ela tende a não se deixar levar por palavras moralísticas e pelo catecismo de homens providenciais.
Contudo, este projeto não segue uma receita pronta. Da mesma maneira que o conceito de populismo não é consensual, há imensas divergências quanto à prescrição de medidas capazes de o combater de modo eficaz. Há autores, como a filósofa belga Chantal Mouffe, que propõem o surgimento de um populismo de esquerda. Outros consideram essa abordagem perigosa. De qualquer forma, o que se propõe aqui é tão somente o ressurgimento de uma politização abrangente.
No âmbito da educação, a esquerda poderá pugnar-se pela inclusão nos currículos escolares de um programa no qual estejam sistematizados os principais vetores do funcionamento das nossas instituições. O aluno deverá ser capaz de reconhecer como se compõe a Assembleia da República e, posteriormente, o governo, quais os poderes fundadores de um Estado de Direito e as formas de financiamento partidário, entre outras informações basilares.
Por outro lado, o trabalho, enquanto componente essencial da vida social, deverá recuperar a sua dimensão política. Nesse sentido, a luta pelo reforço do papel dos sindicatos e dos movimentos trabalhistas deverá assumir uma postura intransigente. É verdade que isso poderá estar nos antípodas da arquitetura neoliberal, mas será necessário se pretendermos tornar transparentes as relações de forças que condicionam a sociedade.
De resto, a esquerda não deve descurar a articulação com os diversos movimentos sociais existentes. Deve regressar às ruas e aos bairros, estimulando e direcionando a sua efervescência reivindicativa. Afinal, nenhum processo de politização chega a bom porto se não se formar a partir do contacto direto com as pessoas.
Nenhuma destas propostas resulta de uma fórmula universal e aplicável em todos os contextos. Afinal, nada no complexo campo das disputas sociais resulta. Mas um movimento de redemocratização de setores tomados pelo suposto domínio da técnica viabilizará, pelo menos, uma expansão do conhecimento geral sobre a política. E, embora o conhecimento não seja a derradeira solução para as problemáticas da nossa era, será certamente uma pequena parte dela, pois o maniqueísmo do preto e do branco costuma perder a sua eficácia quando mostramos ao povo o quão complexo é o cinzento.
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[Artigo tirado do sitio web portugués setentaequatro, do 27 de xullo de 2023]