O que a América Latina pode esperar de Donald Trump?

Alexander Main - 24 Xan 2017

Embora a administração Trump tente aumentar a influência dos EUA sobre a região, os latino-americanos contam  com os meios necessários para enfrentar a hegemonia norte-americana

Ao longo de toda a campanha, o vencedor insultou imigrantes latino-americanos e prometeu construir um muro na fronteira sul dos Estados Unidos (pago pelo México), para manter “estupradores e traficantes” fora do país.

 Durante sua campanha na Flórida, ele falou de lutar contra a “opressão” na Venezuela e de reverter a abertura diplomática de Barack Obama em relação a Cuba, universalmente aplaudida pelos governos da América Latina.

 No entanto, nem todos no continente preveem desgraças e retrocesso com a eleição de Donald Trump. Quando indagado sobre qual candidato presidencial americano seria melhor para a região, Rafael Correa, o presidente equatoriano, não hesitou:

 “Trump (...), porque ele é tão grosseiro que gerará uma reação em toda a América Latina, ajudando a construir governos mais progressistas. (...) O governo norte-americano mudou pouco no que diz respeito às suas políticas e, na prática, agiu da mesma forma como sempre, embora contasse com a figura carismática de Obama.”

 A despeito dos recentes esforços para normalizar as relações com Cuba (limitados pela manutenção do embargo contra a ilha), há pouca evidência de que a agenda norte-americana em relação à América Latina tenha evoluído muito desde os tempos de George W. Bush.

 A pergunta é se o errático e imprevisível Trump manterá as relações com a América Latina da forma como estão, e o que sua presidência significará para uma região atualmente afetada por problemas econômicos e políticos, com alguns observadores concluindo pelo fim de seu “ciclo progressista”.

A agenda da prosperidade

 As diretrizes da política latino-americana da administração Obama, que logo serão herdadas por Trump, estão baseadas em uma série de objetivos estratégicos para a região, frequentemente referidos pelo Departamento de Estado como “prosperidade”, “segurança” e “democracia e governança”.

 A agenda de “prosperidade” norte-americana envolve, em primeiro lugar, a promoção dos chamados acordos de livre comércio entre os EUA e seus parceiros regionais. Obama continuou a implementar tais políticas a partir do ponto onde George W. Bush parou, pressionando pela aprovação parlamentar de acordos no Panamá e na Colômbia, a despeito dos assassinatos de ativistas na Colômbia e da oposição da maior parte dos democratas.

 O segundo objetivo-chave no quesito “prosperidade” é a promoção de reformas neoliberais: medidas de austeridade, desregulamentação, diminuição de impostos, liberalização do mercado, entre outros. Ao longo dos últimos quinze anos, foi difícil atingir este objetivo pelo fato de muitos países na região terem se libertado do FMI (Fundo Monetário Internacional) e de suas prescrições político-econômicas, orientadas por Washington (que contribuíram em muito com o desastre das “décadas perdidas” de 1980 e 90 e com a redução ou interrupção das melhorias em indicadores sociais).

 No entanto, a administração Obama teve sucesso ao auxiliar países mais pobres na implementação de reformas de mercado que beneficiam os investidores transnacionais e geram grandes dificuldades econômicas para o cidadão mediano. No fim de 2014, o Departamento de Estado apoiou o lançamento da Aliança pelo Plano de Prosperidade para a região do Triângulo do Norte, na América Central, um ambicioso programa de desenvolvimento pró-transnacionais que se baseia no Panamá do Plan Puebla, implementado na era Bush.

 A estratégia de “segurança” de Washington para a região se baseia, em grande medida, na extensão dos programas altamente militarizados antidrogas e anti-insurgência, desenvolvidos ao longo das administrações anteriores. Sob Clinton e Bush, bilhões de dólares de auxílio militar foram enviados ao Plan Colombia, apoiando vastas ofensivas militares e causando a morte de milhares de civis, assim como o deslocamento de milhões de outros, sem apresentar qualquer impacto significativo sobre a produção de cocaína. O Plan Colombia continuou com Obama e projetos similares foram implementados no México (Mérida Initiative) e na América Central (Central America Regional Security Initiative).

 Sob tais programas, os exércitos e as polícias militarizadas do México e de países da América Central foram empregados em operações gigantescas que visavam desmantelar o tráfico de drogas e o crime organizado, embora muitas destas unidades estivessem diretamente envolvidas em atividades criminosas.

 Uma onda sem precedentes de violência se seguiu, atingindo não apenas criminosos, como também inúmeros cidadãos inocentes e ativistas sociais locais, especialmente em Honduras, um dos principais recebedores da assistência norte-americana no setor de segurança. A jornalista e pesquisadora Dawn Paley demonstrou como a violência e o deslocamento de comunidades resultantes da “guerra às drogas” financiada pelos Estados Unidos ajudaram a liberar, para empresas transnacionais, territórios antes indisponíveis.

 A agenda de “democracia e governança” que Obama agora repassa a Trump pode parecer, inicialmente, ser apolítica e estar focada na “construção de instituições” e no fortalecimento do Estado democrático de direito, dentre outras propostas benéficas. Mas as informações do Departamento de Estado vazadas pelo WikiLeaks no fim de 2010 e em 2011 oferecem uma perspectiva contrastante.

 Dentre outras coisas, revelou-se que os diplomatas norte-americanos empregam métodos já conhecidos de intervenção interna “moderada”, incluindo a imposição de programas de assistência norte-americanos, empréstimos multilaterais e subsídios para a “promoção da democracia”, visando na verdade minar, cooptar ou remover movimentos políticos de esquerda, particularmente os que se acredita terem mantido algum tipo de vínculo com o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez.

 Outros esforços norte-americanos para a derrubada da esquerda na América Latina não precisaram sequer ser disfarçados.

 No dia 28 de junho de 2009, o então presidente de esquerda de Honduras, Manuel Zelaya, que irritou a elite de seu país e o governo dos Estados Unidos ao aprofundar as relações com a Venezuela e exigir uma assembleia constituinte, foi sequestrado por homens armados do exército e levado até a Costa Rica. A então secretária de Estado, Hillary Clinton, se recusou a reconhecer formalmente que um golpe militar tivesse ocorrido, reconhecimento que levaria à suspensão da maior parte dos auxílios norte-americanos ao governo ilegítimo. Ela também buscou ativamente evitar o retorno de Zelaya a Honduras.

 Mais tarde, o governo dos Estados Unidos anunciou que reconheceria os resultados das eleições hondurenhas de 29 de novembro, sem a restauração prévia de Zelaya, exigida por vários governos da América Latina.

 Este movimento descaradamente unilateral e antidemocrático causou ultraje na região. Mas os Estados Unidos pioraram a situação ainda mais, apoiando os governos subsequentes de Honduras, repressivos e de deireita. O Departamento de Estado e o Departamento de Defesa aumentaram os fundos de assistência à segurança enviados a Honduras, ignorando em larga medida a corrupção do governo e as dezenas de assassinatos de líderes sociais, como a renomada ativista indígena Berta Cáceres.

 Auxiliada em grande parte pelas terríveis marés econômicas que atingiram a América Latina, a agenda de Bush e Obama deu grandes passos ao longo dos últimos anos. O grande inimigo dos Estados Unidos, a Venezuela, passa por uma crise econômica e política prolongada e deixou de desempenhar um papel relevante na região.

 Após a morte de Chávez, em 2013, os Estados Unidos dialogaram intermitentemente com os setores radicais da oposição, aprovando suas táticas de desestabilização. À medida que a administração Obama buscou a abertura do diálogo com Cuba, endureceu sua política com a Venezuela implementando novas sanções no fim de 2014.

 Os antigos pilares da integração sul-americana, Argentina e Brasil, passaram para as mãos da direita após doze anos de governos de esquerda. A administração Obama auxiliou essas transições, impondo uma drástica suspensão dos empréstimos multilaterais ao governo de Cristina Kirchner (rapidamente revogada após o partido de Kirchner perder as eleições de 2015) e oferecendo apoio diplomático ao governo interino brasileiro enquanto o controverso impeachment (ou golpe) contra a presidenta Dilma Rousseff ainda estava em curso.

 O panorama político hoje é nitidamente diferente daquele encontrado por Obama há oito anos, quando a esquerda controlava majoritariamente a região e se orgulhava de sua independência.

 Após deixar o cargo, Obama poderá mencionar pelo menos este sucesso na política internacional, a fim de contrabalancear seu terrível histórico no Oriente Médio e no Leste Europeu. Honduras, Paraguai, Argentina e Brasil: um a um, os governos de esquerda destes países caíram e os Estados Unidos recuperaram uma parte significativa de sua antiga influência sobre a região. A morte de Fidel Castro, apenas 16 dias após a eleição de Trump, pareceu sinalizar o retorno da hegemonia dos Estados Unidos e um período duro e incerto para a esquerda na América Latina.

Os generais

 “Hoje, o mundo assiste ao falecimento de um ditador brutal que oprimiu seu próprio povo por quase seis décadas”. A afirmação de Trump sobre o líder cubano contrasta nitidamente com a postura neutra e relativamente respeitosa adotada pelo presidente Obama, que observou que “a história registrará e julgará o enorme impacto desta figura singular”, oferecendo condolências à família Castro.

 As palavras belicosas de Trump sugerem que ele pode levar a cabo as promessas feitas durante sua campanha na Flórida, quando afirmou que adotaria políticas mais agressivas contra Cuba, Venezuela e outros governos de esquerda.

 Predizer o que Trump fará se mostrou uma tarefa quase impossível. Ele se mostrou um volátil e caprichoso demagogo, com grande habilidade em capitalizar sobre as frustrações e expectativas dos setores brancos da classe média e baixa, “os esquecidos”. Trump parece não ter uma visão clara ou princípios que o dirijam para além da autopromoção obsessiva, e também não parece interessado nas minúcias da política.

 Apesar disso, as escolhas de Trump para seu gabinete dão dicas quanto à sua possível orientação em relação à política externa.

 Até o momento, pelo menos duas tendências se destacam: um fortalecimento da militarização, típica da política externa norte-americana, e a obsessão com a ameaça supostamente representada pelo Irã e pelo “islã radical”. Ambas as tendências podem ter um impacto real sobre a política norte-americana em relação à América Latina.

 Embora tenha assumido posições anti-intervencionistas durante a campanha e criticado “os generais” por “não fazerem seu trabalho”, Trump escolheu mais militares aposentados para cargos relacionados à segurança nacional do que qualquer administração desde a Segunda Guerra Mundial. Dentre eles estão o general aposentado James “Mad Dog” Mattis, nomeado por Trump para a Secretaria de Defesa, e o general aposentado Michael Flynn, escolhido pelo novo presidente para o cargo de conselheiro de segurança nacional. Supostamente, eles foram demitidos pela administração Obama por sua postura agressiva e extremista em relação ao Irã e ao “islã radical”.

 Quando indagado sobre qual seria atualmente a mais grave ameaça aos Estados Unidos, Mattis respondeu “Irã, Irã, Irã”, chegando a sugerir que o país estivesse por trás do Estado Islâmico, apesar da extrema oposição do grupo extremista à República Islâmica e à vertente xiita do islã.

 O general Flynn, que provavelmente será o conselheiro mais próximo de Trump em política internacional, relacionou o Irã e as ameaças do terrorismo islâmico a governos de esquerda na América Latina. Em julho de 2016, ele escreveu: “Estamos em uma guerra global contra uma aliança inimiga que vai de Pyongyang, na Coreia do Norte, a Havana, em Cuba, e a Caracas, na Venezuela”.

 O general aposentado John Kelly, nomeado por Trump para o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos e ex-chefe de operações do hemisfério ocidental das Forças Armadas, alertou membros do Congresso sobre o suposto financiamento de células terroristas no continente por parte do Irã e de grupos islâmicos radicais e sobre “a sobreposição financeira e operacional entre redes criminosas e terroristas na região”.

 O ponto de vista é compartilhado por outros nomes indicados para a política internacional, como Yleen Poblete, ex-assessora sênior da congressista de origem cubana Ileana Ros-Lehtinen, que apresentou a proposta da Lei de Combate ao Irã no Hemisfério Ocidental, em 2012.

 Embora estas ideias tenham ganhado pouco impulso enquanto Obama estava no poder, elas podem muito bem se tornar parte da política de Trump na América Latina, suplantando o bolivarianismo venezuelano como principal perturbação regional. Esforços para minar e remover governos esquerdistas podem ser justificados com base em seus supostos vínculos com o Irã. Programas de segurança podem receber apoio adicional para combater a suposta infiltração terrorista em redes do crime organizado.

 Mesmo que as ditas ameaças não se tornem uma prioridade na estratégia para a América Latina da próxima administração, as políticas de Bush e Obama para a “segurança” e a “democracia” certamente se intensificarão. A expansão do modelo Plan Colombia provavelmente continuará, possivelmente incorporando novas regiões, como a área da tríplice fronteira na América do Sul, há muito tempo descrita como território propício ao terrorismo por agências de inteligência dos Estados Unidos.

 Ainda que Rex Tillerson, nomeado por Trump como secretário de Estado, venha a se opor à crescente militarização da política de segurança regional, ele encontrará resistência em duas principais frentes: a burocracia do Departamento de Estado, que tem se tornado cada vez mais militarizada (particularmente o bem provido Gabinete de Narcóticos e Aplicação da Lei) e o complexo militar-industrial, que estará muito bem representado na próxima administração.

 Além disso, é provável que o governo Trump tente dar continuidade à “história de sucesso” de Obama na América Latina, buscando agressivamente a hegemonia norte-americana na região.

 Esforços para continuar a desestabilizar e isolar a Venezuela certamente estarão na lista de prioridades, assim como o enfraquecimento de outros governos de esquerda por meio de métodos detalhados nos comunicados vazados pelo WikiLeaks. É possível que se empreguem outros métodos, clandestinos, nos quais o General Flynn, diretamente saído do mundo das operações secretas, é um especialista.

 Não está claro se Trump reverterá a tentativa de abertura em relação a Cuba (medida que vai contra a vontade de vários setores da comunidade empresarial norte-americana, cuja opinião goza de prestígio junto ao novo presidente), mas ele certamente empregará mais recursos na suposta “promoção da democracia”, a fim de enfraquecer o governo cubano.

 No entanto, obstáculos sérios podem impossibilitar esta agenda. Certamente, conforme observado por Correa, o estilo “grosseiro” e ofensivo do futuro presidente e de sua equipe produzirão renovada animosidade contra o governo dos Estados Unidos e motivarão os latino-americanos a renovar sua busca pela independência.

 Outros fatores podem desempenhar um papel ainda maior no distanciamento dos Estados Unidos da região. Se Trump seguir adiante com sua promessa de renegociar acordos de troca e impor impostos sobre vários produtos importados que prejudicam a indústria norte-americana, ele fará mais do que os presidentes Chávez, Lula e Kirchner jamais fizeram para minar a agenda pró-corporativa de Washington na América Latina.

 É claro, ainda não se sabe se Trump de fato levará a cabo tais promessas (assim como muitas outras). Embora seu secretário de comércio, Wilbur Ross, defenda medidas protecionistas, Trump enfrentará forte oposição da maior parte da elite corporativa dos Estados Unidos, incluindo vários membros de sua própria administração e poderosos congressistas republicanos.

 Possivelmente, o principal fator que poderia prejudicar o projeto norte-americano de retomar sua hegemonia local é a China.

 O aumento extraordinário dos investimentos, comércio e empréstimos chineses na região já contribuiu em muito para limitar a capacidade de atuação econômica e financeira dos Estados Unidos em países da América Latina. O comércio entre a China e a América Latina cresceu de cerca de US$ 13 bilhões, em 2000, para US$ 262 bilhões, em 2013, tornando a China o segundo maior mercado de exportação da região. Os investimentos chineses, nem sempre positivos do ponto de vista ambiental ou social, chegam sem qualquer exigência em relação aos rumos da política interna destes países, ao contrário de muitos dos empréstimos e projetos de investimento dos Estados Unidos.

 Em suma, a expansão econômica da China na região se tornou um grande benefício para os governos de esquerda da América Latina, dando a eles espaço para voltar a desenvolver as políticas progressistas mais ousadas que ajudaram dezenas de milhões de pessoas a sair da pobreza. De 2002 a 2014, o número de pessoas vivendo na pobreza na América Latina caiu de 44% a 28%, após ter aumentado ininterruptamente ao longo dos 22 anos precedentes.

 Com a recente diminuição do ritmo de crescimento da economia chinesa, a demanda por commodities latino-americanas recedeu, o que causou um impacto negativo sobre várias das economias latino-americanas. Mas a China, ainda assim, parece estar se tornando cada vez mais econômica e politicamente assertiva na região. O fracasso da Parceria Transpacífico de Obama, que incluía várias grandes economias da América Latina, criou uma significativa abertura para a expansão do comércio e dos investimentos chineses na região, e o presidente chinês, Xi Jinping, deixou isso bem claro durante sua viagem de novembro ao Chile, Equador e Peru.

 Além disso, a China sabe que logo estará lidando com um governo norte-americano imprevisível e potencialmente hostil, que já sinalizou sua intenção de fazer frente à influência chinesa na região do Leste Asiático. Conforme sinaliza o clamor de Xi por “uma nova era de relações com a América Latina”, o governo chinês parece reconhecer seu interesse geoestratégico na expansão das relações diplomáticas e comerciais com o antigo “quintal” dos Estados Unidos.

 Desta forma, embora a administração Trump vá tentar aumentar a influência dos Estados Unidos sobre a região, os latino-americanos contam ainda com os meios necessários para enfrentar a hegemonia norte-americana e atingir a sua própria versão doméstica de prosperidade, democracia e segurança.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Vermelho, do 23 de xaneiro de 2017]