O Ocidente declara guerra à Rússia
Washington forma aliança militar de dezenas de países para enviar armas pesadas à Ucrânia, internacionalizar conflito e esgotar Moscou – o único adversário militar à sua altura. A aposta dos EUA e seus parceiros, porém, é de extremo risco
Duas narrativas, opostas entre si, buscavam até agora interpretar a invasão da Ucrânia por tropas russas, iniciada em 24 de fevereiro. Segundo os governos do Ocidente e a mídia associada a eles, trata-se de um ato brutal do regime de Vladimir Putin para projetar sua força sobre uma nação mais débil, recorrendo a meios violentos e buscando desviar as atenções da opinião pública sobre suas dificuldades internas. Os que buscam compreender a posição de Moscou argumentavam, no entanto, que o país foi forçado à guerra pela expansão incessante da OTAN, pelo cerco a seu território por bases militares inimigas e pela opressão das populações russas majoritárias no leste da Ucrânia.
Ambas as visões, contudo, podem ter se tornado obsoletas esta semana. Uma série de fatos novos deu à guerra um caráter inteiramente novo e a transformou num conflito que opõe à Rússia, agora sem disfarces, uma coalizão de mais de trinta países alinhados a Washington. O objetivo, também anunciado abertamente, é minar as forças da único Estado hoje capaz de se opor militarmente às pretensões norte-americanas. Se isso ocorrer, os EUA estarão de mãos livres para tentar resolver por meios bélicos o declínio de seu poder econômico e o desgaste de sua hegemonia geopolítica.
O acontecimento mais importante se deu terça-feira (26/4), na base militar de Ramstein, que Washington mantém desde 1948 no sudoeste da Alemanha. O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin III, reuniu-se com autoridades militares de 33 países, mais a União Europeia e a OTAN. Como resultado, formou-se um Grupo Consultivo sobre a Segurança da Ucrânia, que se reunirá todos os meses. As declarações de Austin sobre os objetivos da coalizão são reveladoras: “vencer a luta atual e as que virão”, garantindo de imediato o envio do maior volume possível de armamento a Kiev. Mas houve antecedentes. No fim de semana, o próprio Austin, chefe do Pentágono, havia visitado a capital ucraniana na companhia do secretário de Estado, Anthony Blinken, em viagem mantida em sigilo até o último momento. Lá, encontraram-se com o presidente Zelensky, e mantiveram conversações cujo teor não foi revelado. De Kiev, ambos rumaram para Berlin, onde obtiveram da ministra da Defesa alemã, Christine Lambrecht, o compromisso de abastecer a Ucrânia com material bélico pesado – ao menos 50 tanques.
Nos dias seguintes, outros países cujos governos estavam presentes à base de Ramstein (entre os quais pesos-pesados militares, como a Inglaterra e a França) também anunciaram o envio de armas. Fala-se inclusive em aviões, segundo a revista The Economist. O movimento teve seu ápice nesta quinta-feira (28/4) quando o presidente Joe Biden pediu ao Congresso novo crédito, de US$ 33 bilhões (além dos US$ 13,6 bi já despachados), para armar Kiev. E não foram apenas palavras. Em 26/4, num sinal de que o armamento ocidental sofisticado já faz diferença no front de guerra, mísseis de longo alcance disparados da Ucrânia destruíram instalações militares de Moscou em território russo, próximo à fronteira entre os dois países.
O propósito por trás dos fatos desta semana vai bem além do conflito na Ucrânia. “Queremos ver a Rússia enfraquecida”, afirmou o secretário Austin em Kiev, no domingo. A estratégia militar vislumbrada para chegar a este fim – agora está nítido – é prolongar e internacionalizar a guerra, para evitar que Moscou obtenha até mesmo uma vitória parcial. Nas últimas semanas, o Kremlin concentrou suas operações militares no leste e sul da Ucrânia – a região do Donbas, onde as repúblicas de Luhansk e Donetsk lutam pela independência. Ocupá-las e assegurar a autonomia da maioria russa que as habita e encerrar o conflito parecia até há pouco um objetivo factível.
Mas e se, depois disso, não puder haver retirada? E se o Donbas continuar a ser fustigado por um exército ucraniano turbinado pelo armamento pesado fornecido por mais de 30 países, alguns dos quais têm poder econômico muito superior ao da Rússia? Isso não conduziria a um esgotamento das capacidades militares de Moscou e – sonha Washington – à anulação de seu atual poder geopolítico? Não estariam certos, então, aqueles que viram na guerra, desde o início, o resultado de uma provocação dos governos ocidentais?
A aposta de Washington e seus parceiros, porém, é de extremo risco – por dois motivos. Na arena militar, Moscou também pode optar por uma escalada. Nesta quinta (28/4), a porta-voz do ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, advertiu as potências ocidentais, afirmando que “novos apelos à Ucrânia, para atingir instalações russas, levarão certamente a uma resposta dura da Rússia”. Até onde irão os que tentam acirrar a guerra contra uma potência nuclear?
Já no terreno econômico, onde os EUA pensavam emparedar Moscou, há sinais de que o tiro pode sair pela culatra. Há uma semana, um editorial do próprio New York Times ponderava que, apesar de muito duras, as sanções de Washington e seus aliados contra a Rússia não estão sendo capazes de desorganizar a economia do país. O contrário é possível. Em 27/4, a Gazpron, estatal russa de combustíveis fósseis, anunciou o corte do fornecimento de gás aos dois primeiros países europeus – Polônia e Bulgária – que se recusaram a pagá-lo em rublos. Se a mesma medida se estender à Alemanha, teme o banco central alemão, o resultado pode ser um impacto em até 5% do PIB. Além disso, em 28/4 um dado inesperado arranhou a autoconfiança dos governos ocidentais. O Departamento de Comércio dos Estados Unidos revelou que o PIB do país caiu 1,4% no primeiro trimestre do ano, em comparação ao mesmo período do ano passado.
As narrativas da mídia ocidental sugerem que se trava, na Ucrânia, uma guerra de mocinhos contra bandidos. A vida real parece estar prestes a esfarelar este discurso.
[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 28 de abril de 2022]