O imperialismo e os povos do Médio Oriente

Jorge Cadima - 21 Nov 2019

Três décadas após o início do ciclo de guerras com que o imperialismo quis ‘celebrar’ o fim da primeira experiência histórica de construção do socialismo, o Médio Oriente é testemunho eloquente da barbárie do capitalismo

 Os imperialismos norte-americano e europeus aproveitaram as vitórias contra-revolucionárias no Leste da Europa no final do século XX para lançar uma ofensiva recolonizadora global e, em particular, na região do planeta mais rica em recursos energéticos. Procuravam fazer voltar para trás a roda da História e voltar a controlar uma região que colonizaram, abertamente ou na prática, durante décadas.

 Alvos foram os países que, mesmo que de forma contraditória e hesitante, haviam afirmado vias de desenvolvimento soberanas, não ditadas a partir de Washington, Londres ou Paris, como o Irão, Síria, Líbia, Iémene, Iraque, Afeganistão, entre outros. Processos soberanos que foram possíveis numa correlação de forças mundial onde a União Soviética socialista era um contrapeso real e um travão à agressividade do imperialismo.

 A partir da primeira Guerra do Golfo contra o Iraque, desencadeada em 1991 quando a URSS se encontrava já em desagregação, assistimos a uma escalada de guerras cada vez mais abertamente predatórias. A mentira descarada e uma comunicação social cada vez mais propagandística foram parte integrante da máquina de guerra imperialista. Por vezes estas guerras evidenciaram contradições entre as potências imperialistas (uma característica permanente), como na invasão do Iraque em 2003. Mas na maioria dos casos prevaleceu a concertação entre as potências euro-americanas. Foi de mãos dadas que se lançaram contra os países que mais se destacaram na afirmação da sua soberania nacional, numa tentativa de desforra pelo desafio histórico das suas antigas colónias da região.

Recolonização e fundamentalismo

 A presidência Obama prosseguiu a estratégia de agressão, sob velhas e novas formas. Aproveitando o surto de descontentamento popular que eclodiu em numerosos países da região em 2011 (a chamada Primavera árabe) no contexto das repercussões económicas da explosão de crise de 2007/8 o imperialismo, em particular através dos seus serviços de espionagem e operações clandestinas, procurou canalizar o descontentamento contra os governos dos países que mais se afirmaram ao longo da História como independentes, ou mesmo anti-imperialistas.

 Na Líbia e Síria o imperialismo mobilizou todos os meios para derrubar os governos: a guerra aberta da NATO no caso da Líbia, a guerra por interpostos bandos terroristas armados, financiados e ao serviço do imperialismo, no caso da Síria. Em ambos os casos com a conivência, ou mesmo apoio aberto, de forças que se proclamam «de esquerda» ou «progressistas». O fundamentalismo islâmico, oficialmente culpado pelos ataques de 11 de Setembro e invocado como pretexto da invasão do Afeganistão pelos EUA em 2001, tornou-se aliado aberto do imperialismo.

 Já havia sido assim nos anos 80, no combate ao governo popular e revolucionário do Afeganistão que durante alguns anos trouxera justiça social, direitos das mulheres e progresso áquele martirizado país. Outros pesos e medidas foram usados face às revoltas populares contra as piores ditaduras da região, enfeudadas ao imperialismo, como a Arábia Saudita ou o Bahrain (onde tem sede a V Esquadra Naval dos EUA).

 Aí os protestos e a repressão subsequente foram escondidas na comunicação social e poupadas às operações de subversão. Também calada ou hostilizada foi a resistência do martirizado povo palestiniano, vítima desde há sete décadas do carrasco israelita, como ficou patente nos últimos dias com as dezenas de palestinianos mortos pelos bombardeamentos israelitas na Faixa de Gaza.

 A tentativa de recolonização do Médio Oriente saldou-se por uma imensa tragédia humana. Países inteiros destruídos, milhões de mortos e feridos, milhões de desalojados e refugiados. Nalguns países, o imperialismo restabeleceu um temporário controlo. Mas o saldo global é uma desilusão para o imperialismo, cujos planos têm sido gorados pela resistência popular à invasão do Iraque; pela resistência do povo e governo sírios, com a ajuda dos seus aliados iranianos, libaneses e russos; pela resistência do povo iemenita à ocupação do seu país pela Arábia Saudita, em conluio com os EUA, Reino Unido e França; pela permanente e heróica resistência do povo palestiniano.

Rearrumação de forças

 É hoje evidente a perda de influência dos EUA e a crescente importância da Rússia e do Irão na região. Os aliados dos EUA foram derrotados nas últimas eleições no Iraque, que manifesta hoje uma maior independência face aos EUA. Os enormes custos económicos das guerras ajudaram a agravar ainda mais a desastrosa situação financeira dos EUA, a braços com uma dívida nacional na ordem dos 23 biliões de dólares («triliões» na terminologia dos EUA)1.

 Num processo contraditório e incerto, um dos maiores aliados históricos dos EUA na região, e destacado país da NATO, a Turquia, parece afastar-se dos EUA e UE. O grande aliado do imperialismo na região, o Estado de Israel sionista, vive uma profunda crise política, que é também em parte consequência do fracasso das suas políticas de permanente agressão e belicismo, patente desde a derrota da invasão do Líbano em 2006.

 Esta perda de influência das potências imperialistas está a fazer soar campaínhas de alarme nos círculos mais belicistas. São frequentes os artigos alegando que a «a Síria foi perdida» e os gritos de alarme sobre «a influência do Irão». Alguns culpam Trump. Mas para o imperialismo, todas as crises são motivo para reforçar a sua política de ingerência, agressão e guerra.

 É neste contexto que se assiste a um novo recrudescimento de grandes manifestações de rua em países da região. A partir do início de Outubro multitudinárias manifestações de protesto enchem as ruas do Líbano e Iraque. Na base das manifestações estão reivindicações sem dúvida legítimas, sobre condições de vida, corrupção e o clientelismo de sistemas políticos baseados na divisão de cargos por entre comunidades étnicas ou religiosas, sistemas criados pelo imperialismo e que visam dividir os povos para melhor os subjugar. Assim se explica a dimensão dos protestos e os apoios iniciais de algumas forças progressistas.

 Também nos últimos dias, no Irão acossado pelas sanções dos EUA, o aumento do preço da gasolina deu lugar a manifestações de protesto. Mas é uma evidência que, a par de legítimas reivindicações, há uma renovada tentativa do imperialismo para – tal como em 2011 – canalizar os protestos num sentido favorável aos seus desígnios. A cobertura mediática na comunicação social do grande capital tem sido intensa e compreensiva para os manifestantes – ao contrário do tratamento reservado à população de Gaza, vítima da bárbara repressão israelita.

 Os protestos no Iraque têm-se saldado por um banho de sangue, com mais de 300 mortos, entre manifestantes e forças de segurança. No âmbito dos protestos, foi assaltado um consulado iraniano. Mas o Ministro da Defesa iraquiano acusa uma «terceira força» de estar a disparar sobre os manifestantes, insistindo que as granadas de gás lacrimogéneo responsáveis pela maioria das mortes não são do tipo usado pelo governo de Bagdade: «as granadas encontradas pelos médicos legistas nos cadáveres e na cabeça de manifestantes foram importados para o país sem o conhecimento das autoridades iraquianas» (Press TV, 15.11.19).

 A denúncia é plausível. O uso de franco-atiradores é uma velha táctica de provocação, repetidamente usada pelo imperialismo e seus agentes. Foi documentada na Venezuela em 2002, nas manifestações que antecederam a tentativa de golpe de Estado contra Hugo Chavez. Foi usada nas manifestações de Kiev, em 2014, para servir de pretexto ao golpe de Estado na Ucrânia, como o então Ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia informou a Alta Representante da UE para a Política Externa e de Segurança, num telefonema gravado e divulgado na Internet em Março de 2014 (denúncia prontamente ignorada pela UE)2. Foi usado na Líbia e na Síria em 2011. Foi usado na Lituânia, em 1991, nas manifestações que levaram à proclamação da independência daquele país, dando início à desagregação da URSS. A lista é longa, e não acaba aqui.

Resistência é indispensável

 As manifestações no Líbano tiveram início no dia seguinte à publicação pelo Washington Post (16.10.19) dum artigo de opinião do seu colunista David Ignatius de título: «A Síria está perdida. Vamos salvar o Líbano». Ignatius, apoiante de todas as guerras, incluindo a invasão do Iraque em 2003, torna claro ao que vem num artigo posterior, com o título: «O Hezbollah tem sido quase intocável. Mas agora o povo reage» (1.11.19). Existem vídeos com o Reitor da Universidade Americana de Beirute a incitar à participação nas manifestações (Al Manar, 30.10.19).

 O órgão noticioso da ex-potência colonial informa que, «num desenvolvimento inconcebível há apenas alguns dias, manifestantes atacaram os escritórios de alguns deputados xiitas, incluindo Mohammad Radd, presidente do grupo parlamentar do Hezbollah» (France 24, 25.10.19).

 Neste momento de agudização da crise sistémica do capitalismo, quando se avolumam os sinais dum novo pico de crise e as velhas potências imperialistas receiam o seu ocaso histórico, seria grave subestimar a natureza e ferocidade da fera imperialista. Todos os dias, e de todo o planeta, chegam novas provas da agressividade fascizante deste capitalismo agonizante. A resistência popular é mais indispensável que nunca. Mas é indispensável que não erre na escolha dos alvos e na identificação do inimigo principal de todos os povos: o imperialismo.

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(1) Em 2008 o economista Joseph Stiglitz estimou os enormes custos para os EUA da guerra do Iraque, no título dum livro: «A guerra dos três triliões de dólares».

(2)No telefonema, o Ministro estónio Urmas Paet afirmou: «Existe hoje uma convicção cada vez mais forte de que por detrás dos franco-atiradores não estava [o ex-Presidente] Ianukovitch, mas sim alguém da nova coligação».

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[Artigo tirado do sitio web portugués Avante, do 21 de novembro de 2019]