O direito soberano de decidir
O referendo britânico é uma expressão evidente da profunda crise na e da União Europeia, e do agravamento das contradições e tensões entre potências e oligarquias nacionalistas no seio da UE
O povo britânico é hoje chamado a participar num referendo sobre o vínculo do Reino Unido à União Europeia.
Independentemente do resultado final, que provavelmente só será conhecido pela madrugada, é útil recuperar e reter algumas ideias.
O referendo foi uma promessa de David Cameron nas eleições de 2015. Mas não como resposta a um clamor popular, antes como uma dupla jogada política. Por um lado reagindo a tensões dentro do Partido Conservador e como resposta ao aparecimento e ascenso do UKIP. Por outro, como um trunfo negocial ante a UE, visando salvaguardar os interesses do capital financeiro britânico, e bem assim aos interesses económicos dos EUA, no quadro das rivalidades com os interesses de outras grandes potências europeias.
Cedendo aos interesses britânicos e a todas as suas exigências, o Conselho Europeu de Fevereiro acedeu ao alargamento dos regimes de excepção já aplicados ao Reino Unido. A exclusão do sistema financeiro britânico da União Bancária é um dos exemplos. Mas mais grave, a prossecução da linha de ataques aos direitos dos trabalhadores e uma perigosa deriva xenófoba e racista, consubstanciada na discriminação de trabalhadores consoante a sua nacionalidade e condição social, deitando por terra o sacrossanto princípio da livre circulação de pessoas.
Um processo negocial que demonstra que o processo de integração capitalista se desenvolve numa lógica de dois pesos e duas medidas, com países de primeira e de segunda. Assim se compreende que se faça tábua rasa dos tratados quando se trata de defender os interesses do grande capital e das grandes potências. Já quando falamos de direitos sociais, interesses dos trabalhadores e povos ou de países como Portugal esses instrumentos são absolutamente inflexíveis e multiplicam-se as pressões.
Este referendo é uma expressão evidente da profunda crise na e da União Europeia, e do agravamento das contradições e tensões entre potências e oligarquias nacionalistas no seio da UE.
Quaisquer que sejam os resultados teremos de estar atentos ao dia seguinte. Se se mantiver a actual situação, estaremos confrontados com a integração na legislação da UE dos acordos, ou seja com a institucionalização de regressão social e discriminação. Simultaneamente existe o risco de, embalado pela «vitória», o directório de potências acelerar o ritmo de aprofundamento do processo de concentração de poder na UE. O seu objectivo será o do agravamento das políticas neoliberais, o ataque aos direitos dos trabalhadores, a liberalização dos mercados, as reformas estruturais, a destruição das funções sociais do estado, mais perda de soberania, militarização e securitarização da UE.
Se vencer a saída – um cenário talvez menos provável, mas não impossível – o povo britânico será certamente afrontado com manobras de chantagem, com pressões e mesmo provocações que procurem contornar ou mesmo perverter a vontade do povo.
Esse cenário é bem conhecido na história da UE e da seu sistemático desrespeito pela democracia. Relembremos o tratado de Maastricht e o Não dinamarquês, a que se seguiu um Sim fruto da garantia de um conjunto de cláusulas de excepções. Ou o parco Sim francês, onde não obstante uma muito ténue margem (51,05% pelo Sim), não se repetiu o referendo. Recordemos ainda a «Constituição Europeia» que caiu por terra com o Não nos referendos de França e Holanda, sendo imediatamente desconvocados os referendos na República Checa, na Dinamarca, na Irlanda, na Polónia e... em Portugal (onde PS/PSD/CDS sempre bloquearam a realização de qualquer referendo sobre questões europeias)! Regressemos ao Tratado de Lisboa – a versão recauchutada da derrotada «Constituição europeia», então impedido de ser sujeito a referendos nos estados membros, excepção feita à República da Irlanda onde, por disposição constitucional, se realizou um referendo em que o Não venceu, apenas para ser repetido num processo de chantagens, ingerências e pressões que levaria, à força, à vitória do Sim.
Seja qual for o desfecho deste referendo, há dois aspectos que importa sublinhar. O primeiro é que após este processo cai o mito da irreversibilidade do processo de integração, do carácter «intocável» dos tratados e da impossibilidade das excepções e derrogações aos tratados em função das especificidades nacionais. O segundo é que às teorias do medo e dos catastrofismos que se desenvolverão responderemos com essa ideia, tão simples como forte, de que a vontade dos povos, o seu direito soberano de decidir e a sua luta conseguem romper qualquer beco sem saída para onde os queiram empurrar. São os povos que fazem a História!
[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Avante’, núm. 2.221, do 23 de xuño de 2016]