O capitalismo tornou-se rentista?
Não, o capitalismo não se tornou rentista; conforme cresceu o volume dos direitos de saque (financeirização), prosperou junto o “jurismo” (se se puder admitir essa provocação) como forma secundária de apropriação do mais-valor. Eis que a forma primária continua sendo o lucro industrial, o que confirma que o capitalismo ainda é capitalismo
Neste artigo, responde-se a essa pergunta com uma negação: não, o capitalismo não se tornou rentista. Veja-se, porém, que essa posição não quer cair numa apreciação vulgar, já que, ao contrário, pretende remontar à crítica da economia política. Que fique, pois, claro desde o início: uma resposta afirmativa à essa indagação conteria já forte censura ao rumo desse modo de produção.
Na verdade, a tese apontada no questionamento contém um fundo de verdade que precisa ser apreendido de outro modo. Por isso mesmo, essa nota se desenvolve por meio de uma crítica ao importante livro de Brett Christophers assim denominado. Em Rentier Capitalism(1), esse autor não apenas afirma, mas também pergunta quem são os donos da economia assim constituída e quem paga por isso.
Nesse livro, esse pesquisador incansável sustenta que a economia britânica – e, por extensão, muitos outros países do mundo – está dominada por um tipo de empresa que ele classifica de rentista porque se dedica exclusivamente à gestão de ativos e, assim, obter ganhos “sem nada produzir”. É importante ver como ele a apresenta:
“Quando se pensa em empresas, tende-se a pensar em termos do modelo clássico que divide economias em três setores de atividade: extração de matérias-primas (setor primário), fabricação de produtos (secundários) e prestação de serviços (terciário). Mas [essa espécie de empresa] não se encaixa realmente em nenhum desses três tipos. Ela não extrai ou faz ou fornece nada. De fato, o ponto crucial de seu modelo de negócios não consiste em fazer (extrair/produzir/fornecer); eis que consiste apenas em ter”.
Mesmo se essa afirmação não é exata já que as gestoras de ativos prestam, sim, um serviço para os fundos financeiros que as contratam, ela parece encerrar, estranhamente, alguma verdade: o que se esconde, pois, por detrás dessa contradição performativa? Para descobri-la é preciso entender bem como esse autor compreende as noções de econômicas de extração de renda (rent(2)) e de rentista (rentier).
“Os ativos detidos pelos rentistas são tão variados quanto os próprios rentistas. Alguns – tais como habitação, infraestrutura de telecomunicações, plataformas digitais etc. – existem como construções físicas, seja em espaços virtuais seja em espaços reais; outros – tais como direitos de propriedade intelectual, contratos de terceirização etc. – existem como formas legais, não como construções físicas; e outros ainda – tais como terra e recursos naturais em geral – não são construídos, pois simplesmente existem como coisas espontâneas. (…) Quaisquer que sejam as qualidades particulares em causa, é certo que deve haver sempre um ativo para que haja extração de renda. Essa renda, e isso é fundamental, provém do controle de um ativo valioso; o rentista, por seu turno, é aquele que recebe essa renda. Sem algum ativo, não há nem extração de renda nem rentista”.
Esse trecho mostra já que Brett Christophers, tal como ele próprio aponta, ampliou uma noção de renda que encontrara nos escritos de David Harvey. Eis que esse autor definira “extração de renda (rent) num sentido amplo como ‘retorno do poder de monopólio que advém, de modo crucial, da propriedade privada de um ativo’”. Porém, se esse autor marxista excluíra os ganhos de ativos financeiros da categoria “extração de renda”, ele os inclui porque segue uma tradição que remonta a John M. Keynes.
Nessa perspectiva, tal como esse autor célebre que misturara, sábia e ecleticamente, a economia clássica com a neoclássica, ele adota, como ele próprio diz, “uma definição hibrida, ortodoxa e heterodoxa, de extração de renda”. Eis que a renda extraída (rent) é “renda derivada da propriedade, posse e controle de um ativo escasso sob a condição de competição limitada ou ausente”.
Assim – pode-se ver claramente –, ele combina a condição de propriedade (economia clássica) e a condição de mercado (economia neoclássica) em sua definição de extração de renda (rent). O que deve, agora, ficar ainda mais claro, é que o seu modo de teorizar emerge da aparência do modo de produção capitalista. Eis que ele compreende as formas da repartição pensando a partir da circulação de mercadorias, ou seja, da prática utilitária nos mercados e das condições jurídicas que permitem essa prática.
Ora, é preciso suspeitar que essa mistura de David Harvey (um divulgador marxista) com Keynes (um economista clássico/neoclássico) não pode produzir uma teoria coerente, ausente de contradições como aquela já apontada. Vale lembrar aqui que é a partir desse tipo de mescla, que economistas mais performáticos, como Yanis Varoufakis, ousam pensar que o capitalismo recriou o feudalismo. Ora, no modo de produção moderno, as relações de produção são indiretas, ou seja, são mediadas pela forma mercadoria. Mas a tese de que ele se transformou em neofeudalismo ou em tecnofeudalismo afirma que regrediu a um modo de produção em que as relações constitutivas são diretas.
Para desatar esses nós é preciso voltar ao rigor do texto de Karl Marx e do seu modo de apreender a realidade por meio de categorias que internalizam as contradições; pois, o mero entendimento dessa realidade por parte da economia política em geral, mesmo aquela que não é vulgar e que examina os nexos internos manifestados nos fenômenos, vale-se de noções “claras e distintas” que não deixam de estar prenhes de contradições vulgares.
Após apresentar os processos da produção e da circulação do capital nos livros I e II, Marx, no livro III, mostra, dentre outros pontos, como tende a evolver o mais-valor e a sua repartição, ou seja, daquela parcela do valor gerado pelo trabalho subordinado que alimenta a acumulação de capital.
Na seção VI do Livro III, Karl Marx trata da transformação do lucro extra em renda fundiária: “A forma de propriedade fundiária que aqui consideramos é uma forma histórica específica, a forma transformada mediante a influência do capital e do modo de produção capitalista, seja da propriedade fundiária feudal, seja da agricultura de pequenos-camponeses voltada à subsistência, na qual a posse da terra constitui um dos pré-requisitos da produção para o produtor direto, e em que sua propriedade aparece como a condição mais vantajosa para a prosperidade de seu modo de produção”.
É por esse tópico que se deve começar o esforço de esclarecimento aqui encetado; deve-se notar, entretanto, que o saber apresentado na seção VI pode ser generalizado como uma teoria geral da renda obtida por meio da propriedade privada de recursos não produzidos em geral e que existem em quantidade limitada. Se Marx pensa a partir da renda fundiária, os resultados obtidos valem também para a renda da pesca, das minas, da extração de petróleo etc.
Para tanto, esta nota se vale de uma brilhante exposição da teoria da renda da terra desse autor clássico, além do seu texto original. Em Análise da renda da renda em Marx(3), o economista indiano radicado nos EUA, Deepankar Basu, para apresentar essa categoria da repartição, começa, como Marx, pela produção agrícola sob determinadas condições históricas, em que a classe dos proprietários fundiários aliena a terra para capitalistas que nela produzem alimentos naturais sob a forma de mercadorias.
Por meio dessa exposição fica claro que a renda da terra não surge da mera propriedade, mas de um modo de repartição do mais-valor, historicamente bem datado. Eis que os donos ociosos da terra, que é um recurso produtivo não produzido, se apropriam do lucro extra gerado pela atividade agrícola efetuada sob o comando de arrendatários capitalistas.
Veja-se que a renda da terra surge e só pode surgir em determinadas condições históricas em que a propriedade e a produção estão sob o domínio de classes opostas entre si; quando o produtor direto é ele próprio o dono da terra, sob outras condições históricas, não há renda da terra, pois ele se apropria do lucro extra gerado na produção agrícola. De qualquer modo, é preciso ver que a terra não tem valor e que o preço da terra se explica pela capitalização da renda da terra.
Ora por que havia lucro extra na agricultura de meados do século XIX? Como a composição orgânica do capital nessa esfera era mais baixa do que na indústria, a produção de mais-valia por unidade capital aí investido era maior do que a média observada na produção social como um todo. Contudo, como a terra agriculturável era limitada e estava monopolizada por uma classe social tradicional, a mais-valia sob a forma de lucro extra não podia entrar na equalização da taxa de lucro; diferentemente, ele era apropriado como renda pelos proprietários da terra.
E essa renda – veja-se bem – não é extraída arbitrariamente, não é arrancada por meio de uma força que vem do direito de propriedade, porque o arrendatário, para investir na produção, precisa ter a expectativa de que vai obter o lucro médio como todos os outros capitalistas em média.
Na concepção de renda da terra de Marx, a rigor, seria necessário distinguir a renda absoluta obtida na terra marginal, a renda diferencial do tipo I obtida devido à qualidade superior da terra em relação à terra marginal e a renda diferencial do tipo II que advém não da terra nua, mas das benfeitorias que o solo recebeu no passado. E aqui surge um ponto importante para a argumentação desse pequeno artigo. Como essas benfeitorias são meios de produção produzidos, provém do investimento de capital na terra, a renda da terra de tipo II tem implicitamente a natureza de juros.
Agora, é preciso pensar a importância desse tipo de renda, na agricultura, na pecuária e para além delas, na economia contemporânea. Como mostra Deepankar Basu por meio de alguns exemplos ela continua tendo importância, especialmente em termos qualitativos. Por exemplo, para estudar a produção de imóveis e a produção petrolífera. Contudo, essa apresentação, mesmo sendo sumária, leva a pensar que a renda obtida por meio da propriedade de recursos não produzidos vem a ser pouco importante em termos quantitativos, seja na economia britânica seja na economia mundial.
Sendo assim, por que um estudioso como Brett Christopher ousa pensar que o capitalismo se tornou rentista e que a extração de renda agora aí predomina? Uma resposta direta diz que ele, por pensar a partir da circulação de mercadorias, confunde a renda como tal (que aqui não é a noção usual da contabilidade nacional) com o juro, ou seja, com o ganho associado ao capital de empréstimo, sem distinguir ademais o capital fictício do portador de juros. É bem certo que dá à noção de aluguel (rent) um tom crítico, concebendo-a como uma forma de extração de renda baseada na propriedade de ativos – e não na atividade produtiva como tal.
Ora, tudo isso suscita a pergunta: o que aconteceu com as formas da distribuição do valor no desenvolvimento secular do capitalismo? Ou, dito de um modo mais específico, o que ocorreu na repartição do mais-valor produzido pelo trabalho conforme evoluiu o sistema econômico baseado na relação de capital?
Para responder essas perguntas é bom começar pela repartição primária. O valor produzido pelo trabalho se reparte em necessário, ou seja, na parte obtida pelo trabalhador e que reproduz a sua força de trabalho, e em excedente, ou seja, na parte restante, chamada de mais-valor, que é apropriada pelo capitalista e que alimenta a acumulação de capital. Ora, essa apresentação da repartição é ainda abstrata. Pois, como disse o próprio Marx, “o capitalista (…) que extrai trabalho não pago diretamente dos trabalhadores (…) é o primeiro apropriador desse mais-valor, mas não o último”. Eis que o mais-valor, por meio de vários circuitos, é repartido em vários componentes: lucro, juro, renda da terra etc.
Na seção IV do livro III de O capital, Marx mostra primeiro como se origina o lucro comercial, ou seja, como o capital de comércio se apropria de parte do mais-valor gerado na produção de mercadoria. Indica, depois, como surge o juro a partir do empréstimo de capital monetário às atividades da produção e da circulação de mercadorias. Note-se, quando o capital monetário é assim emprestado, ele se apresenta como capital portador de juros. Eis que “nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção do lucro, ele se torna mercadoria (…) sui generis, ou seja, o capital como tal torna-se mercadoria”.
É assim, portanto, que se conforma o que se pode denominar de repartição secundária: o mais-valor aparece agora como lucro empresarial, industrial e comercial, juros e renda da terra. Mas ela é ainda mais complexa, mas aqui vale acrescentar o seguinte: uma parte dos lucros e dos salários se transforma em impostos cobrados pelo Estado; conforme este último gasta mais do que coleta em impostos, ele toma dinheiro emprestado, emitindo e vendendo títulos aos capitalistas; ademais, conforme ocorre a socialização do capital, o capital próprio das empresas (agora corporações) passa a ser representado por ações e parte de seus lucros passam a ser transferido aos acionistas na forma dividendos (grosso modo).
Ora, essas duas operações econômicas dão origem ao que Marx denomina de capital fictício, uma forma social que se origina de empréstimo, que segue à lógica D – D’ e que, por isso, parece – apenas parece – ser capital portador de juros. Como se sabe, tal como é apresentado por Marx, capital é a relação social que subordina o trabalho para obter mais-valor e que aparece na circulação de modo reificado como dinheiro, força de trabalho, meios de produção, mercadorias e, assim, como dinheiro aumentado. Ora, o capital fictício opera fora desse circuito e não contribui para a formação do valor. Consiste, pois, em meros direitos de saque sobre o valor gerado ou a ser gerado na economia capitalista.
Em O capital, Marx dá como exemplos de capital fictício os títulos da dívida pública e as ações: “o movimento independente do valor desses títulos de posse, não só dos títulos da dívida pública, mas também das ações, reforça a ilusão de que eles constituem um capital real”. Mas mostra, em adição, como essa ilusão se estende: (a) quando a terra como tal é apreendida como capital fundiário e (b) quando a força de trabalho, bruta ou aprimorada pelo estudo, é entendida de modo insano como capital humano (mesmo se não usa esse termo). Na verdade, todas as formas de empréstimo de dinheiro e de coisas postas como mercadorias – habitações, veículos, plataformas digitais etc. –, seja para o consumo privado seja o consumo público ou ainda para as atividades especulativas, dão origem a capital fictício.
O que Brett Christophers observa e descreve como característica notável do capitalismo contemporâneo consiste numa explosão das formas indiretas de apropriação do mais-valor – eis que além da renda extraída da cessão do uso de meios de produção não produzidos, além dos juros do capital de empréstimo à produção, elas cresceram extraordinariamente sob a forma de ganhos efetivos e esperados do capital fictício. E essas formas indiretas passaram a se apropriar também de parte valor necessário, isto é, do ganho obtido pelos trabalhadores (salários em geral).
O que ele apreende, pois, é o culminar do processo secular de socialização do capital, o qual adveio por meio da separação entre a propriedade do capital e a gestão dos empreendimentos. Nesse processo, as grandes empresas foram transformadas em corporações; assim também, a propriedade estritamente privada foi amplamente subvertida em propriedade coletiva de grandes, mas também de médios e pequenos capitalistas, e até mesmo de trabalhadores melhor remunerados (diretamente ou por meio de fundos de aposentadoria).
A expressão mais proeminente desse processo é a ascensão recente das empresas gestoras de ativos que, dependendo de sua especialização, operam tanto com os ativos financeiros (títulos, seguros e ações) quantos com os ativos ditos reais (empresas, construções e recursos naturais). Eis que um ativo em geral é, por definição, algo que tem valor monetário e que parece ter a capacidade fetichista de gerar algum ganho no futuro. Na verdade, vem a ser o que permite a existência de direitos de saque seja sobre o valor já produzido seja sobre o valor que ainda vai ser gerado pelo trabalho no futuro.
A enorme acumulação desses direitos – atualmente o seu montante supera em várias vezes o PIB mundial – ocorreu no bojo de uma nova expansão da dominação imperialista centrada nos Estados Unidos, em concomitância com uma mudança interna das próprias economias capitalistas do centro e da periferia. A liberação comercial e financeira então deslanchada produziu uma segunda onda de globalização após o fim da Segunda Guerra Mundial – a primeira ocorreu entre 1945 e 1980 – que durou até a crise de 2008.
As economias foram transformadas pela revolução tecnológica da informática e da comunicação e pela dominância do setor terciário no PIB. Um novo modo de gestão chamado neoliberalismo transformou radicalmente a vida econômica, social, política e psíquica das classes sociais. Se a burguesia acumulou riqueza assimetricamente, massas crescentes de trabalhadores passaram a experimentar a precariedade.
Mesmo se este comentário não endossa a sua noção central, ele reconhece o enorme valor de pesquisa e exposição do livro Capitalismo rentista de Brett Christophers.
Se Marx disse que o capital cria barreiras, supera essas barreiras para criar barreiras ainda mais formidáveis, esse autor contemporâneo mostra bem a enorme magnitude e os perigos para a humanidade desse novo – usando aqui um termo que ele mesmo emprega – “entrincheiramento” do capital.
Não, o capitalismo não se tornou rentista; conforme cresceu o volume dos direitos de saque acima referidos (financeirização), prosperou junto o “jurismo” (se se puder admitir essa provocação) como forma secundária de apropriação do mais-valor. Eis que a forma primária continua sendo o lucro industrial, o que confirma que o capitalismo ainda é capitalismo.
Porém, a evolução do capitalismo produziu um socialismo… não dos trabalhadores, mas do capital (outra provocação), ou seja, um modo de redistribuição do mais-valor (de baixo para cima na hierarquia classista e do Sul para o Norte na hierarquia dos países) que está intimamente conectado com a evolução do imperialismo.
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Notas:
(1) Christophers, Brett – Rentier Capitalism: who owns the economy, and who pays for it? Verso, 2020.
(2) Ao invés de traduzir “rent” simplesmente por “aluguel”, prefere-se fazê-lo nesse contexto por meio da expressão “extração de renda”, a qual parece ser mais condizente com o espírito da coisa.
(3) Basu, Deepankar – Marx’s analysis of ground rent: theory, examples and applications. Texto de discussão do Departamento de Economia da Universidade de Massachusetts, em Amherst, EUA, 2018.
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[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 27 de outubro de 2024]