O ataque que pode incendiar o mundo

Patrick Cockburn - 17 Out 2024

Apesar de todos os riscos e advertências, Israel mantém planos de agredir o Irã. Arrogância, fanatismo religioso e aposta no apoio dos EUA alimentam a insensatez. Um Biden alienado e confuso e uma mídia cúmplice compõem o quadro

 Depois que o “gabinete de segurança” de Israel autorizou ataques aéreos contra o Irã, os objetivos de guerra ampliaram-se e incluem o risco de uma guerra regional contra o Irã, que teria o objetivo de remodelar radicalmente o cenário político do Oriente Médio a favor de Tel Aviv.

 Essa meta ambiciosa, até mesmo fantasiosa, está repleta de perigos para a região e para o mundo. Israel não pode alcançá-la sem o apoio total e indisfarçável dos EUA. Apesar de a alegação do presidente Joe Biden, de que teria insistido infrutiferamente com Benjamin Netanyahu para um cessar-fogo, ele sempre endossou todas as escaladas israelenses. É razoável que Israel conclua que pode atacar o Irã com impunidade, pois, se algo der errado, terá o apoio das forças armadas estadunidenses.

 Os historiadores podem um dia chegar a uma conclusão sobre até que ponto a cauda israelense está abanando o cachorro americano, aproveitando a fraqueza de Biden para atrair os EUA a outra aventura militar imprudente no Oriente Médio. É muito fácil atribuir a culpa pela diplomacia displicente e ineficaz dos Estados Unidos ao declínio cognitivo de Biden nos últimos três anos. Mas, se não for Biden, não está claro quem são os verdadeiros responsáveis por tomar as decisões na Casa Branca e nos escalões superiores do governo.

 Julgando a Casa Branca por suas ações e não por suas palavras, ela vê uma vantagem geopolítica em derrotar o Irã – um aliado da Rússia e da China, embora distante – e seus aliados.

 O pensamento positivo provavelmente desempenha um papel importante. Israel tem sido muito mais bem-sucedido em matar os líderes e comandantes de nível médio do Hezbollah do que se esperava. Será que um ataque agressivo ao Irã e ao seu “Eixo de Resistência” não poderia produzir vitórias semelhantes?

 Essa é uma perspectiva atraente, embora as intervenções militares dos EUA –da Somália em 1992/93 ao Afeganistão em 2001 e ao Iraque em 2003– tenham fracassado em grande parte devido à arrogância e à subestimação do inimigo.

Um perigo inédito

 O histórico de Israel é semelhante. Tel Aviv forçou a mão de forma arrogante na Cisjordânia, após derrotar o Egito e a Síria em 1967 e invadir o Líbano em 1982. No entanto, décadas depois, o exército de Israel (que se intitula Forças de Defesa — ou IDF, em inglês) ainda está lutando em ambos os lugares.

 Essas analogias históricas são frequentemente citadas por comentaristas ocidentais como avisos sinistros sobre o que pode dar terrivelmente errado para os EUA e Israel quando dependem exclusivamente da força. No entanto, as comparações são um pouco enganosas, pois o cenário político, tanto na política interna israelense quanto na região como um todo, foi transformado nos últimos 20 anos. São essas mudanças que tornam a crise atual muito mais perigosa do que as anteriores.

 O governo israelense formado por Netanyahu após vencer as eleições gerais em novembro de 2021 foi imediatamente reconhecido como o mais fanaticamente de direita e ultranacionalista da história de Israel. Para citar apenas um exemplo, Itamar Ben-Gvir, líder do partido Poder Judaico, tornou-se ministro da segurança nacional –um cargo recém-criado que o coloca no comando da força policial nacional. Colono religioso de Kiryat Arba, próximo à cidade de Hebron, na Cisjordânia, ele já havia sido condenado no passado sob a acusação de incitar o racismo e apoiar o terror. Ameaçou o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ao vivo pela televisão e tinha pendurada em sua casa uma fotografia de Baruch Goldstein, que assassinou 29 palestinos enquanto rezavam na mesquita de Hebron em 1994.

 Considerando a composição ideológica do gabinete israelense, não é de surpreender que os objetivos de Israel em Gaza e na Cisjordânia pareçam ter se alargado, a ponto de incluir agora o fim de toda a vida normal para os cinco milhões de palestinos que vivem lá. Um ataque aéreo a uma escola no centro de Gaza na quinta-feira (10/10) matou 28 pessoas, muitas das quais, segundo a Unicef, eram mulheres e crianças que faziam fila para receber tratamento contra a desnutrição.

 O exército de Israel justificou o ataque alegando que a escola abrigava um posto de comando do Hamas. Mesmo supondo que isso seja verdade, em sua tentativa de se justificar, as IDF estão confessando que o Hamas está presente em todos os lugares de Gaza um ano após a invasão israelense.

 Israel alega que a cifra de 42 mil mortos em Gaza é exagerada pelo ministério da Saúde palestino, mas está repetindo exatamente o mesmo padrão de promover ataques aéreos, independentemente de vítimas civis, no Líbano. Um ataque em Beirute, no mesmo dia do ataque em Gaza, matou 22 pessoas, incluindo três crianças de uma família de oito pessoas, que haviam fugido do sul do Líbano.

A nova elite

 O que torna a crise atual duplamente perigosa é o fato de que Israel não tem apenas uma liderança política etnonacionalista. Um desenvolvimento paralelo ocorreu entre a liderança da elite do Estado israelense –serviço civil, polícia, Judiciário e, cada vez mais, o exército– que são oriundos da ala fundamentalista e messiânica da sociedade.

 Essa nova elite é menos sofisticada do que seus antecessores (embora esses também fossem muitas vezes linha-dura), mais propensa a ver os inimigos de Israel como demoníacos e ameaçadores, mas vulneráveis quando confrontados com o uso implacável da força.

 O curso da guerra até agora no Líbano tende a confirmar isso, e há outros argumentos poderosos a seu favor. Os EUA estão dando carta branca a Israel de uma forma sem precedentes e é improvável que oponha resistência a uma estratégia israelense agressiva em relação ao Irã.

Ameaças iminentes

 Os Estados-nações árabes que já foram hostis a Israel, incluindo Síria, Iraque, Líbia e Sudão, estão todos gravemente enfraquecidos por guerras civis nos últimos 20 anos. Os líderes árabes estão mudos ou são ineficazes em relação a Gaza e ao Líbano. O Irã está mais isolado do que nunca desde o fim da guerra Irã-Iraque em 1988.

 No entanto, a vulnerabilidade do Irã e de seus aliados pode ser um pouco enganosa. Um grupo de Estados dominados por muçulmanos xiitas, que se estende pelo norte do Oriente Médio – Irã, Iraque, Síria e Líbano – não vai desaparecer.

 Israel e os EUA podem tentar provocar conflitos religiosos e étnicos em países como o Líbano, que testemunhou uma guerra civil sectária e cruenta entre 1975 e 1990. Já há relatos de muçulmanos xiitas que fogem dos bombardeios israelenses e são vistos com hostilidade quando buscam refúgio em áreas não xiitas.

 Quanto ao Irã, ele pode concluir que não pode deter Israel, que está preparado para arriscar uma guerra regional, mas que seria melhor ampliar o conflito por meio de ataques às rotas de comércio de petróleo, aos aliados ou às bases dos EUA. Seu objetivo seria forçar os EUA a conter Israel – a alegação de Washington de que não pode fazer isso é amplamente desacreditada no Oriente Médio.

 Está se tornando cada vez mais difícil ver como uma guerra regional pode ser evitada – e ainda mais difícil ver como ela pode ser encerrada.

Abaixo do radar

 Na corrida para a eleição presidencial dos EUA, é fascinante ver como a mídia anti-Trump evita qualquer referência às dificuldades cognitivas de Biden. Esta mídia ficou feliz em divulgar isso em julho, quando pressionou o presidente a desistir de sua candidatura à reeleição, mas desde então há poucas referências ao fato de que o homem supostamente responsável por empurrar os Estados Unidos para a guerra no Oriente Médio é incapaz de pensar direito.

 Ocasionalmente, há evidências visíveis disso quando Biden se liberta de seus manipuladores, ao caminhar em direção ao helicóptero presidencial e falar com os repórteres. Quando suas palavras são coerentes, elas tendem a causar medo e pânico, como quando ele murmurou que os EUA estavam conversando com Israel sobre atacar instalações petrolíferas iranianas.

 Na década de 80, os assessores do presidente Ronald Reagan tiveram um problema semelhante com seu chefe, que talvez já estivesse sofrendo do mal de Alzheimer, fato admitido publicamente vários anos depois. Sabendo do risco de Reagan ouvir e responder às perguntas dos repórteres a caminho do helicóptero presidencial –e, ao fazê-lo, revelar sua saúde mental em processo de deterioração–, eles determinaram aos pilotos que ligassem os motores mais cedo, para que todas as palavras fossem abafadas pelo barulho.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 15 de outubro de 2024]