Itália: uma ofensiva neoliberal de décadas

Stefano Palombarini - 01 Mar 2023

A hegemonia não é conquistada no convencimento da audiência da TV, mas em ir construindo um conhecimento compartilhado do conflito de classe. E é pela vida da luta de classes —em escolas, universidades, fábricas, e hospitais— que a Itália deveria partir, se for para romper com a armadilha na qual se encontra

 Nos últimos trinta anos, cidadãos italianos foram, por nove vezes, convocados às urnas para eleger um novo Parlamento e, por nove vezes seguidas, os partidos que apoiavam o último governo sofreram derrota. A vitória de Fratelli d’Italia, a única força da oposição ao governo tecnocrata de Mario Draghi, não foi de maneira alguma imprevisível.

 Da mesma maneira, não foi nenhuma surpresa que na eleição geral de setembro de 2022, a participação eleitoral, que já vinha em declínio constante, atingisse a maior baixa histórica do pós-guerra: pouco mais de três em cinco italianos agora votam (quase nove em dez votaram em 1992). Estes números nos revelam que a crise, que começou com a dissolução dos principais partidos da “Primeira República”, a ordem política que governou de 1946 a 1992, permaneceu e aprofundou-se.

 Porém, o resultado eleitoral de setembro pode ser interpretado, talvez, como uma etapa decisiva para a reconstrução do panorama político italiano. O retrato atual consiste no predomínio absoluto da ideologia neoliberal, que se afirmou no país entre 1980 e 1990, e produziu boa parte da crise política italiana que dura trinta anos.

 Uma distinção essencial deve ser feita entre as alianças sociais produzidas pela iniciativa política e as relações de poder nas esferas ideológica e cultural. E é a partir da última esfera que se deve começar, para compreender as especificidades da situação italiana, na qual o neoliberalismo figura, atualmente, como quase o único ponto de referência não somente para os líderes políticos mas também para a vasta maioria dos cidadãos.

Depois da esquerda

 Como é possível que um país no qual a esquerda — comunista e progressista — que provou ser detentora de destacado vigor intelectual, tenha se submetido totalmente à hegemonia neoliberal durante o curto período iniciado na década de 1980 até o início da década de 1990?

 Esse é um assunto que exige uma pesquisa aprofundada. O cenário midiático, inteiramente controlado por magnatas do setor financeiro e industrial, certamente desempenhou um papel fundamental. Mas a trajetória do ex-PCI (Partido Comunista Italiano) e do Partido Democrático da Esquerda, que herdou sua liderança de quadros políticos e eleitorado, realocando-os para a criação de um novo Partido Democrático, foi certamente decisiva.

 Ao longo de sua história, o partido de Antonio Gramsci tinha pacientemente construído importantes “fortalezas” em escolas, universidades, editoras e nos meios de comunicação. Na década de 90, o abandono dos “pós-comunistas” a toda e qualquer referência ao marxismo e o alinhamento com os princípios a “Terceira Via” de Tony Blair no Reino Unido — uma expressão direta da ideologia neoliberal — arrastou consigo uma parte fundamental da produção cultural “de esquerda”.

 Nesses anos, a direita tomou nota da irreversível crise nas antigas práticas de mediação da Democracia Cristã. Sob o império da Lega e da Forza Italia de Silvio Berlusconi, esta direita trabalhou para propagar os princípios fundamentais do liberalismo econômico entre seu eleitorado.

 Agora, passados trinta anos do intenso trabalho político e cultural feito pela mídia e pelas classes dominantes, tais princípios guiam a visão sobre a economia e as relações de produção de muitos italianos.

 Nesse sentido, assume-se que a dívida pública é um fardo que as gerações de hoje deixarão para as gerações futuras; que a prosperidade do país depende da possibilidade de seus negócios; que a competitividade é vinculada a rebaixar os custos de produção e ao trabalho “flexível”; que as taxas corporativas devem ser reduzidas; que o único caminho razoável para alcançar o crescimento do poder de compra na classe trabalhadora é diminuir os impostos; e por aí vai.

 As reformas nas áreas do trabalho, pensões, sanitária e das universidades, tem sido fundamental em intensificar esta virada, remodelando interesses sociais numa direção comprometida com o modelo neoliberal do capitalismo.

 Se os salários são fruto de acordos individuais ou acordos estritos de categoria trabalhista, enfraquece-se a solidariedade de classe; se as pensões não são mais vinculadas a redistribuição, mas sim a capitalização, uma base central para a solidariedade entre gerações é perdida; se a educação se torna um investimento em capital humano que deve ser monetizado, qualquer conhecimento que não tenha um valor direto de mercado é desmerecido.

 O poder de qualquer ideologia se expressa por sua habilidade em apontar como ilusória qualquer proposta política que divirja da sua visão da realidade. O cenário da eleição de setembro para a Unione Popolare, que trouxe conjuntamente três diferentes partidos da esquerda radical, revelou que, no esquema da hegemonia italiana, aqueles que se afastam do universo neoliberal tendem a apresentarem quedas eleitorais.

 Entretanto, o resultado da última eleição — na continuidade da série de perdas sistemáticas de cada governo anterior — também reflete a dificuldade de estabelecer, no universo neoliberal, um bloco social que apoie políticas que estejam realmente alinhadas aos seus interesses. Esta é a contradição na origem da longa e complicada crise da Itália, e é de onde devemos começar se quisermos compreender a reestruturação em curso do cenário político deste país.

 Nesse escopo, três alianças sociais distintas — todas conformes à ideologia dominante, mas circunscritas por elementos de fragilidade —, estão, pouco a pouco, emergindo, como resultado de diferentes mediações estratégicas.

O bloco burguês

 A primeira destas alianças corresponde a isto que eu e Bruno Amable temos chamado de “bloco burguês”. Este conceito representa a reunião das classes convocadas diretamente em favor da transição para o modelo neoliberal de capitalismo e para o processo de integração europeia que tem sido empurrada exatamente nesta direção pelo menos nos últimos quarenta anos.

 Nessas últimas eleições, os partidos ultra-liberais Azione e Italia Viva representam mais claramente este projeto político. Mas, na realidade, essa estratégica iniciativa da época do princípio da conformação do bloco burguês tem vindo do Partido Democrático, nos recentes anos do protagonismo central dos governos de Mario Monti, Enrico Letta, Matteo Renzi, Paolo Gentiloni e Draghi, todos os quais envolvidos na supostamente “necessária” modernização (neoliberal) do capitalismo italiano.

 Essa perspectiva implica superar os axiomas esquerda/direita e reposicioná-los na oposição entre pró-União Europeia e nacionalistas, ou entre cosmopolitas e identitaristas.

 Existe uma ala interna da esquerda que não abraça este posicionamento e teria preferido fortalecer conexões com o M5S — Movimento 5 Stelle. Mas ela é, de fato, uma minoria, como foi evidenciado não apenas pela quebra do acordo de “centro-esquerda” dos democratas com o M5S de Giuseppe Conte, mas sobretudo pela escolha em adotar a agenda do ex-banqueiro central Draghi como seu único programa eleitoral.

 Essa agenda não é nada mais que uma longa lista de reformas estruturais inspiradas no neoliberalismo a serem implementadas no intuito de progressivamente liberar fundos para o Plano Nacional de Recuperação e Resiliência da Itália. A promoção acrítica da agenda de Draghi também corresponde a uma asserção da absoluta continuidade no que diz respeito aos atos do governo na última década, que já havia produzido a dura derrota dos democratas nas eleições de 2018.

 Desde a ótica das demandas expressas pelos seus componentes de classes – centrado na continuação das reformas institucionais e no apoio à unificação europeia – o bloco burguês é de fato coerente. Sua fraqueza reside na exclusão das classes populares, que sofreram os efeitos das reformas neoliberais, e o resultado de que este bloco é minoria na sociedade italiana.

 Em setembro, o Partido Democrático (PD), Azione, e Italia Viva ganharam com o apoio de aproximadamente 30% de empresários, profissionais, e executivos sêniores, mas com apenas 18% de pequenos comerciantes, artesãos e trabalhadores autônomos e 15% de trabalhadores operários.

 Entre as classes que desfrutam de uma posição de privilégio econômico, os três partidos alcançaram resultados consideráveis: 34% daqueles de maior renda do grupo votaram por eles, bem como 36% daqueles da camada médio superior. Mas entre as classes média e classe média baixa, esse resultado combinado cai para 20% e apenas 13% entre os mais pobres.

Nova direita?

 Num sentido oposto, a ala de direita do bloco tinha facilmente a pluralidade dos votos (e a maioria dos assentos) nas eleições de setembro. Sua base de classe cruzada permitiu que a Fratelli d’Italia, a Lega e a Forza Italia ganhassem os votos de 41% dos empresários, profissionais e executivos, 43% dos pequenos comerciantes e dos trabalhadores independentes, e 56% dos trabalhadores de colarinho azul que votaram, 43% dos pequenos comerciantes e dos trabalhadores independentes, e 56% dos trabalhadores que votaram, classe que contou com muitas abstenções.

 A fragilidade da ala de direita do bloco é fundada em motivos opostos a fraqueza do bloco burguês. Sua ampla base social expressa expectativas diversas e contraditórias, que vão desde o apoio às reformas neoliberais até uma forte demanda por proteção, particularmente das classes trabalhadoras, contra os efeitos dessas mesmas reformas.

 Mas, estando na estrutura do neoliberalismo hegemônico na qual a direita italiana é perfeitamente integrada, esta demanda não pode se traduzir numa ruptura com a linha de política econômica dos governos do bloco burguês.

 Eleita recentemente, por conta da sua postura de opor-se ao governo de Draghi, Giorgia Meloni declarou em seu primeiro discurso no Senado que “NRRP é uma oportunidade extraordinária para modernizar a Itália”, tornando claro que seu governo “respeitará as regras atualmente em vigor” na União Europeia.

 A nova primeira- ministra queria “tranquilizar os investidores”, apontando que “alguns fundamentos da nossa economia permanecem sólidos apesar de tudo: estamos entre as poucas nações europeias em superavit primário constante”, que significa que o governo gasta menos do que leva em receitas fiscais, antes dos pagamentos de juros.

 Ela insistiu, para quem ainda tinha dúvidas, que “a riqueza é criada por empresas com seus trabalhadores, não pelo Estado por decreto ou decreto. Então, nosso lema será: não perturbe aqueles que querem fazer alguma coisa.”

 A direita então situou-se em total continuidade com o projeto do bloco burguês nas esferas de trabalho, saúde, escolarização e finanças públicas. Como pode, então, responder à exigência de proteção demandada de uma parte relevante de sua base social, fomentando decisivamente o voto à Fratelli d’Italia, em específico?

 A resposta é a mesma, de extrema- direita por toda a Europa: reivindica que as condições de vida da classe trabalhadora não são como decorrência das reformas e políticas neoliberais, mas por conta de tratados para, as ondas migratórias, o aumento da criminalidade, a importância modelo de família tradicional sendo posta em pauta, etc.

 Nem é preciso dizer que a promessa de proteção contra inimigos engenhosamente criados e amplamente imaginários está fadada a desapontar severamente a fração socialmente mais fraca do bloco de direita; mesmo assim, permitiu-lhes chegar ao poder.

Bloco popular?

 Uma terceira aliança social, competindo com o bloco burguês e o neoliberalismo de direita mais identitário, parece estar a emergir como o resultado da virada no Movimento5 Estrelas. Ele tem gradualmente abandonado suas posições iniciais “anti-sistêmicas” e ocupa agora o espaço que a hegemonia neoliberal capitalista deixou aberta para uma posição que poderia ser nomeada de “ala–esquerda”.

 Diferentemente do Partido Democrático e da Direita, o M5S posiciona-se frente a problemas relacionados ao aumento da pobreza e da precariedade que atinge a maioria do país, principalmente na região sul.

 Isso sinaliza possíveis respostas na consolidação do “rendimento do cidadão” (tendo como efeito, auxílios-desemprego, introduzidos por este partido em 2019) que deveriam ser “aperfeiçoados” pelo fortalecimento de centros de emprego; e em apoiar o poder de compra dos assalariados através dos impostos sobre o trabalho.

 Comparado a 2018, o eleitorado do M5S foi reduzido a mais da metade, mas é agora muito mais consistente no que se refere tanto a sua composição social como às expectativas que expressa.

 O Movimento obteve significativa adesão entre os desempregados (24%) e os estudantes (25%), entre a população de baixa renda econômica ou muito próxima a isso (25% e 18%, respectivamente), enquanto tem um apoio muito mais fraco entre empresários, profissionais e executivos (12%) e entre aqueles que desfrutam de poder econômico maior (10%) ou médio-alto (11%).

 No momento, o peso desta aliança social é menor do que o da ala de direita do bloco, tal como o do bloco burguês. Entretanto, ela poderia crescer, por dois motivos: seja pelo conjunto de decepções que o governo de Meloni está fadado a produzir, seja em virtude de uma possível mudança na linha política do Partido Democrático.

 A fragilidade destas alianças reside no fato de ser construída na tentativa de mitigar o sofrimento social produzido pelas políticas neoliberais sem questionar a ideologia que as conforma e as legitima. A “renda cidadã” é certamente melhor que o quadro de zero suporte proposto pela direita.

 Entretanto, a inspiração é explícita da lei de promovida por Gerhard Schröder na Alemanha, a qual visava flexibilizar relações laborais, e acabou custando caro aos sociais democratas alemães em termos de apoio da classe trabalhadora.

 Também perfeitamente compatível com as instituições neoliberais é a introdução do salário — mínimo, uma medida já presente na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos, bem como, é claro, como apoio ao poder de compra via cortes de impostos.

 Além disso, reivindicou fortemente a autoria do plano de reforma estrutural incluído em um NRRP que — conforme mencionado — guiou o plano de ação do governo de Draghi, serviu como um programa eleitoral para o Partido Democrático, e escolhido por Meloni como uma oportunidade extraordinária para modernizar o país.

 Nesse sentido, o MS5 ocupou a “esquerda” da arena neoliberal, mas se formos consultar isto ao governo, ele não estará capaz de responder satisfatoriamente às questões que vem de um bloco com conotações explicitamente populares sem encarar diretamente a questão de romper com os princípios do neoliberalismo.

 Três blocos sociais diferentes sem um espaço hegemônico compartilhado são convocados para produzir uma circularidade metafórica, na qual os integrantes revezam-se para ocupar o poder, mas perseguem uma continuidade significativa para as suas políticas públicas. Isto só pode gerar crise na democracia italiana.

 Para evitar isto, em níveis de política, devemos esperar pelo que está nas possibilidades. Isso significa que o crescimento do bloco popular deve começar a se formar em torno do Movimento Cinco Estrelas — e uma conscientização dos limites com a adesão à ideologia dominante, junto a suas políticas representativas, para o desenvolvimento de uma proposta política clara e efetiva.

 Para sair deste impasse no qual se encontra, a democracia italiana necessita também deslocar o conflito para a arena da hegemonia — certamente uma operação complexa, dada a correlação de poder atual.

 Na Itália, grande parte da esquerda encara diretamente a experiência francesa como uma inspiração. Mas é um equívoco considerar que o impacto da esquerda radical francesa é um mero resultado da iniciativa política Jean-Luc Mélenchon.

 Se Mélenchon, com seu talento inegável, pode atuar para dar concisão a sua estratégia, foi por conta do espaço viável que existia para a esquerda atuar contra o neoliberalismo na França, acendido e estruturado por uma série de políticas e lutas sociais.

 A isto inclui-se o referendo ao Tratado de Maastricht, em 1992 e a votação popular contrária ao projeto da Constituição Europeia de 2005; as greves do período entre 1986–95, que culminou no movimento contra as reformas das pensões do primeiro ministro Alain Juppé; o movimento estudantil, civil e de trabalhadores precarizados nos anos 2000, e logo o movimento contra as reformas legislativas de Dominique de Villepin direcionadas para a juventude francesa; as greves contra as reformas das leis trabalhistas de François Hollande e, mais recentemente, o movimento dos gilets jaunes.

 A hegemonia não é conquistada no convencimento da audiência da TV, mas em ir construindo um conhecimento compartilhado do conflito de classe. E é pela vida da luta de classes — em escolas, universidades, fábricas, e hospitais — que a Itália deveria partir, se for para romper com a armadilha na qual se encontra.

 

[Artigo tirado da edición brasileira de Jacobin, do 28 de febreiro de 2023]