Itália: por que a ultradireita venceu
Tanto na Itália quanto na Suécia, na Espanha, na França ou na Alemanha, a volta do fascismo não tem nada de inevitável. É o resultado das políticas que os neoliberais impuseram à Europa, e da recusa da esquerda a se apresentar como alternativa
Depois da Suécia, a Itália. No intervalo de apenas duas semanas, dois partidos de extrema direita alcançaram resultados eleitorais expressivos e estão próximos de governar seus países. Em Estocolmo, os (mal-chamados) Democratas Suecos foram a segunda força política mais votada, e a mais forte na coalizão de direita que tende a se instalar no poder. Em Roma, o resultado é ainda mais chocante. Originário do Movimento Social Italiano (MSI), assumidamente fascista, o partido Irmãos da Itália (Fratelli d’Italia) foi o grande vencedor das eleiçẽos parlamentares de ontem. Saltou de 4% dos votos, no pleito passado (em 2018) para 26% agora. Junto com a Liga, do ex-ministro do Interior Matteo Salvini (9%) e com a Forza Italia, do ex-premiê Silvio Berlusconi (8%), formou cômoda maioria no Parlamento e pode aproximar-se dos 2/3 necessários para mudar a Constituição.
Mas Itália e Suécia não são casos isolados. A extrema direita disputou o segundo turno das eleições presidenciais na França (com Marine Le Pen), cresceu de modo expressivo na Espanha (com o Vox, 15,1%) e mantém-se forte na Alemanha (onde o Alternatif für Deutschland, Afd, conquistou 10,1%). Quais as razões deste crescimento? De que forma ele se relaciona com a crise do capitalismo iniciada em 2008 e até hoje não aplacada? Como a esquerda tem reagido? Sem pretensão de responder a essas questões intricadas, este texto sustenta quatro hipóteses provisórias. Ei-las:
- Os neoliberais normalizam o fascismo:
“A Europa precisa aceitar calmamente a decisão democrática da Itália, de eleger Georgia Meloni, e ajudá-la a ser bem-sucedida”, escreveu The Economist, em editorial, às vésperas do pleito italiano. Conhecida como porta-voz esclarecida das posições neoliberais, a revista fez a recomendação consciente daquilo que a líder dos Fratelli d’Italia, hoje com 45 anos, defendeu historicamente e sustentou há muito pouco tempo.
Desde sua adolescência, ela aderiu ao MSI, num tempo em que a ultradireita estava muito distante de ser moda. Integrante da Ação Estudantil, braço jovem do partido, comprazia-se em fazer, em entrevistas, elogios a Benito Mussolini. Foi eleita parlamentar em 2008 e nomeada ministra da Juventude por Berlusconi. Mas em 2012, afastou-se do ex-premiê, derrotado, para co-fundar os Fratelli, cujo nome evoca o hino italiano. O partido posicionou-se contra a imigração e o multiculturalismo, e em favor do supremacismo branco (concretizado na forma de benefícios fiscais aos italianos de origem que optassem por ter filhos). Em 2014, adotou como símbolo a chama tricolor, com as cores da bandeira, que havia caracterizado o MSI.
Extravagâncias do passado? Há apenas trẽs meses, num encontro do Vox espanhol, Meloni afirmou: “Não pode haver mediação possível. Sim à família natural. Não ao lobby LGBT. Sim à identidade sexual. Não à imigração maciça. Sim aos empregos para nossos compatriotas”. Tudo isso foi relevado não apenas por Economist mas pelo secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken. Horas depois de anunciado o resultado das eleições italianas, ele saudou o resultado das eleições e se disse “ansioso” para trabalhar com Meloni,
Duas posições cruciais da provável primeira-ministra permitiram esta aproximação. Ao contrário de seus parceiros na coalizão de ultradireita, ela defende as políticas de “austeridade fiscal” impostas aos países-membros da União Europeia pelo Banco Central Europeu (BCE). Não propõe questionar as regras que restringem a capacidade do Estado italiano de financiar políticas públicas e muito menos as que impedem o país de emitir moeda ou dívida. E, igualmente importante, é desde o início partidária convicta da intervenção da Europa na guerra da Ucrânia, nos moldes propostos por Washington.
A normalização da ultradireita italiana faz lembrar os tempos em que, no Brasil, os neoliberais apoiaram a eleição de Bolsonaro e, em especial, suas contrarreformas previdenciária e trabalhista. Quando havia identidade nos projetos econômicos e o atual presidente era eleitoralmente viável, quem se importava, na mídia, com as hordas que molestavam João Pedro Stedile ou Judith Butler?
- A esquerda abdica de ser alternativa antissistema:
“Perdemos. O Partido Democrático perde desde 2008”, lamentou-se, após conhecer os primeiros resultados da eleição de ontem, Antonio Decaro, prefeito da cidade de Bari e um expoente do PD. Suas palavras expõem um pesaroso paradoxo. Nos últimos dez anos, a agremiação – fundada a partir do desmantelamento do Partido Comunista Italiano, em 1991, permaneceu no governo por nada menos de oito – e em seis destes, como força majoritária. Neste período, a União Europeia perdeu seu protagonismo e sua coesão. Em seu interior, a Itália foi especialmente golpeada. A partir da crise financeira global de 2008, seu PIB per capita despencou de US$ 40,8 mil para US$ 31,7 mil (veja o gráfico acima). As políticas de “ajuste fiscal” e “austeridade” continuaram a desconstruir o Estado de Bem-estar Social. Mas, ao jamais insurgir-se contra elas, ou sequer contestá-las o partido deixou aberta uma avenida para o crescimento da ultradireita.
A queda do apoio popular fica clara no gráfico ao lado (em 2022, os resultados foram ainda mais baicos que os de 2019). Nos últimos dois anos, o processo de amortecimento chegou ao ápice. O PD compôs um governo de “unidade nacional”. Chefiado pelo banqueiro Mario Draghi, este incluía também Forza Italia e Liga, além do Movimento Cinco Estrelas (MVS), populista sem programa. O PD perdeu então o fiapo que lhe restava de ímpeto crítico. Tornou-se o principal defensor de um establishment cada vez mais desprezado pela população, que o associa ao empobrecimento e à desigualdade crescentes, e à arrogãncia da chamada “classe política”. Ao assumir esta condição abriu espaço para que a ultradireita representasse o papel de antissistema. Em julho último veio o golpe de misericórdia. Tanto o MVS quanto Liga e Forza Italia recusaram-se a um voto de confiança em favor do governo Draghi. O PD tentou salvá-lo, em vão. Convocadas novas eleições, assistiria a sua maior derrota.
- Giorgia Meloni vence por afastar-se do poder… que agora comandará:
As três forças que compõem a ultradireita vitoriosa ontem na Itália executaram, nos últimos quatro anos, uma interessante dança de cadeiras. A Forza Italia, do bufão Silvio Berlusconi foi a que, paradoxalmente, manteve-se mais estável. Passou de pouco mais de 12% dos votos, em 2018, para 8% agora. Liga e Fratelli d’Italia, por outro lado, inverteram posições.
Mais xenófoba e supremacista dos três, a Liga obteve nas eleições de 2018 cerca de 20% dos votos. Mas seu líder, Matteo Salvini, dominou rapidamente, por astúcia, a coalizão de governo que então formou com o ingênuo MVS, dirigido por lideranças neófitas e carente de qualquer projeto que fosse além da crítica ao sistema político. Ministro do Interior, Salvini lançou uma campanha sem tréguas contra a imigração, que incluía deixar sem socorro os barcos repletos de imigrantes africanos que naufragavam nas águas territoriais italianas. A popularidade da Liga beirou os 40% em 2019, quando o sucesso desnorteou Salvini, que deixou o governo procurando forçar eleições antecipadas. Imaginou que nenhuma outra coalizão fosse capaz de obter apoio no Parlamento, mas foi surpreendido por um acordo entre o MVS e o PD — que então voltou a compor o gabinete de ministros.
Também este governo naufragou pouco mais de um ano depois, para ser substituído pela “unidade nacional” comandada pelo banqueiro Draghi a partir de fevereiro de 2021. Aí estavam PD, MVS, Forza Italia e Liga. Mas faltava um partido: exatamente os Fratelli d’Italia, que se ecusaram a compor a esdrúxula frente. Esta escolha fê-los deslanchar, como mostra o gráfico abaixo.
A ascensão do partido de Georgia Meloni é avassaladora e demonstra, pelo avesso, o absurdo da opção eternamente governista e pró-sistema do PD. Os Fratelli (linha azul escura) passam de quase zero em 2018 a pouco mais de 5% em 2019 (quando fracassa a tentativa de Salvini de tomar o poder). Em 2021, ao se formar o “governo de unidade”, são apenas a terceira maior força eleitoral, atrás da Liga e do PD. Mas atropelam ambos os partidos em menos de dois anos e vencem com 26% as eleições do último domingo. É o suficiente, diante do declínio da esquerda. Meloni, Salvini e Berlusconi têm tudo para formar a nova coalizão no poder. E no interior da ultradireita, a supremacia dos Fratelli é nítida.
- O futuro pode ser mais incerto que nunca:
Estar ausente do governo foi o fator essencial que permitiu o crescimento do partido de Georgia Meloni. Mas e agora, quando ela prepara-se para tornar-se, ao contrário, a principal responsável pela condução do país?
Num texto mais reflexivo, também publicado às vésperas das eleições, a própria Economist mostra-se insegura. A situação da Itália, reconhece a revista, é frágil. Endividada e sem moeda própria, ela terá dificuldades financeiras e fiscais se, como se espera, o Banco Central Europeu elevar as taxas de juros. O aparto econômico e social certamente provocará descontentamento e erodirá a popularidade da provável primeira-ministra.
Que fará ela, então? Continuará submissa às políticas de “austeridade” do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, mesmo que provoquem forte desgaste política? Manterá o apoio às sanções contra a Rússia, sabendo que estas provocam inflação – e em especial aumento dos gastos com energia, em pleno inverno europeu? Poderá adotar as duas atitudes, mesmo sabendo que Forza Italia e Liga, seus parceiros na coalizão direitista, defendem o afrouxamento da “disciplina fiscal” e têm laços políticos com Vladimir Putin?
Para analistas como Igor Gielow, da Folha, a vitória da direita nas eleições italianas é uma reedição da Marcha sobre Roma perpetrada por Mussolini há exatos cem anos. A tendência ao fascismo estaria quase inscrita no DNA da Itália. Mas nada parece indicar a fatalidade deste argumento. Tanto na Itália quanto na Suécia, na Espanha, na França ou na Alemanha, a volta do fascismo não tem nada de inevitável. É o resultado das políticas que os neoliberais impuseram à Europa, e da recusa da esquerda a se apresentar como alternativa.
Basta que qualquer uma destas condições se desfaça para que a sombra do fascismo desapareça tão rapidamente quanto se insinuou.
[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 26 de setembro de 2022]