Estados Unidos: Um país obcecado pelo domínio global

Daniel Vaz de Carvalho - 29 Xan 2024

Quem semeia ventos colhe tempestades. Agora os EUA têm mais uma pela frente, a segurança no Mar Vermelho, dado que o Iémen desencadeou ações contra navios ligados a Israel, até que a entrega de ajuda humanitária a Gaza seja estabelecida. Os estrategas do ocidente continuam a guiar-se pela sua propaganda e pelos filmes de Hollywood, em vez de pensarem nas consequências das decisões que tomam e fazem os outros seguir

1 – Um país excecional

 Os EUA tiveram de facto condições excecionais para se desenvolverem e expandirem. A excecionalidade de sair incólume tanto da 1ª como da 2ª Guerra Mundial, permitiu aos EUA constituírem-se como um império. Um continente inexplorado e emigrantes qualificados nas suas profissões, que lhes chegavam sem prévios custos sociais nem direitos adquiridos, foram a base de um rápido e eficiente desenvolvimento. Daqui consideraram que seria senão legítimo, pelo menos lógico, substituírem os decadentes impérios coloniais europeus e expandirem o seu sistema, associado à procura do lucro máximo para as suas empresas.

 Esse sistema era desde o início um capitalismo predador que não hesitou no genocídio das comunidades existentes – ditos “peles vermelhas” – e a agressão e domínio dos povos vizinhos, várias vezes a coberto de anticolonialismo e liberdade.

 Ao tornar-se um império com uma constelação de vassalos pelos vários continentes, o objetivo prioritário passou a ser a sua conservação e expansão. Funções garantidas por um lado impondo uma ideologia, ou antes, uma mística, da superioridade do seu modelo capitalista, que todos deviam replicar, por outro combatendo tudo e todos que se opusessem a essa mística e ao seu domínio. Foi assim que guerras, golpes de Estado, apoio a ditaduras e movimentos de extrema-direita, foram a vivência imperial desde 1945 – começando por eliminar com o RU os resistentes antinazis na Grécia – até à atualidade. A propaganda orquestrada pela CIA, suas ONG e as oligarquias dominantes, transformaram tudo isto em “lutas pela liberdade e democracia”, mesmo que se tivessem servido de organizações neonazis como a Gládio, os Azov ucranianos, a al-Qaeda, ISIS, etc.

 Sendo um império, os EUA permitiram-se realizar uma espécie de sonho alquímico transformando papel (ou bytes informáticos) em ouro. Um conjunto de instituições internacionais, como o FMI, BM, OMC, foram criadas funcionando como elementos da gestão imperial. Este contexto permitiu que entre as 20 maiores fortunas privadas mundiais encontrarmos não mais que 2 ou 3 fora dos EUA. A nível de maiores empresas transnacionais o registo era semelhante.

 O fim do “inimigo principal”, a União Soviética, em 1991, permitiu-lhes admitir com toda a naturalidade e arrogância que o mundo lhes era devido. Eram o país excecional. A partir daí podiam criar as as leis económicas que decidissem aplicar e mesmo mudá-las conforme o que lhes conviesse. Os seus vassalos também acham que sim, mas estão errados, tanto na prática como na teoria. Na prática, é o que a realidade mostra. Na teoria, o marxismo evidencia-o.

2 - A economia de um país excecional

 O “país excecional” partiu do princípio que podia criar as leis económicas e as “regras” pelas quais os países deviam ser governados. Não as respeitar significaria uma ameaça ou agressão não apenas ao seu sistema, mas ao próprio país – o império. Eram heresias, entendidas no mesmo sentido que o papado medieval lhes dava: objeto de inquisições e cruzadas. O sistema económico assim imposto foi o neoliberalismo e a respetiva globalização, mascarados como “democracia liberal”.

 Como seria lógico, o império tomou como inimigo principal o marxismo, procurando desacreditá-lo tanto do de vista da prática como da teoria. Mas Marx não esteve nem está desatualizado e se, em particular noutro modelo económico, algumas análises poderão não se aplicar, nem por isso o materialismo-dialético deixa de ser válido.

 Embora se trate de um autor pouco conhecido, vale a pena lembrar a perspetiva marxista sobre leis económicas: “O marxismo entende as leis da ciência – quer as das ciências naturais, quer as da economia política – como o reflexo de processos objetivos que ocorrem independentemente da vontade das pessoas. As pessoas podem descobrir, conhecer, estudar, ter em conta as leis (da ciência) nos seus atos, utilizá-las no interesse da sociedade, mas não podem modificá-las nem aboli-las. Muito menos podem criar novas leis da ciência".

 “A violação das leis da natureza, provoca o fracasso do procedimento. O mesmo se deve dizer a respeito das leis do desenvolvimento económico, das leis da economia política, tanto faz tratar-se do período do capitalismo ou do período do socialismo". "Pode limitar-se a esfera de ação destas ou daquelas leis económicas, pode prevenir-se a sua ação destruidora, caso exista, mas não podem ser "transformadas" ou "eliminadas".

 A estruturação imperialista, baseando-se na violação das leis económicas objetivas, de que o neoliberalismo é um aspeto, teve como resultado sucessivas crises económicas, sociais e militares como se sabe. O neoliberalismo é apenas mais uma tentativa de salvar o capitalismo das suas contradições: deitou fora o valor-trabalho, considerou que dinheiro é riqueza e que riqueza real pode ser criada pela especulação financeira ou imobiliária.

 As teses de Marx sobre capital fictício (O Capital, Livro III, tomo VII, Ed. Avante), são a base fundamental para a compreensão dos processos capitalistas atuais e neste particular as políticas dos EUA e do dólar. Uma classe dominante de oligarcas, a “finança”, lucra com o sistema e o seu capital fictício. Esta classe consegue lucrar com as crises que a sua ação origina, levando porém o sistema económico do ocidente global à falência, que tentam ultrapassar com o aumento da exploração sobre o seu e os povos dependentes.

 O prof. Gerald Epstein designa como “clube dos banqueiros” a coleção de políticos, administradores de empresas, reguladores como o FED, etc, que fornecem a estrutura política, aconselhamento jurídico e argumentos para legitimar a desregulamentação, sustentar os lucros e o poder financeiro. Este "clube" constitui também uma ameaça sobre as nossas vidas, ameaçando restringir o crédito, aumentar as taxas de juro ou mesmo criar instabilidade financeira se não forem tratados como entendem. O liberalismo colocou valores económicos superficiais – individualismo e riqueza – que subsumiram todos os outros valores, sejam eles o bem da comunidade, crescimento económico de longo prazo ou preocupações éticas como honestidade, justiça, generosidade. A ganância domina todas as considerações afastando as sociedades da construção de um futuro de progresso, minando-o.

 Novas regulamentações financeiras não são suficientes, os bancos privados concentram-se exclusivamente numa única coisa: os seus lucros. São necessárias instituições financeiras públicas, bancos dedicados ao desenvolvimento económico e social, apoiando os setores mais necessários ao conjunto da sociedade de acordo com um adequado planeamento.

 O PIB dos países da “democracia liberal” está, assim, profundamente inflacionado pelo capital fictício resultante da especulação financeira, desindustrialização, endividamento, despesas militares, etc. Os "quantitative easing" do FED e do BCE, entregando durante anos, milhares de milhões à finança após a crise de 2008, consequência dos danos das políticas neoliberais, são capital fictício, visando reforçar a finança especuladora e a usura à custa do endividamento dos Estados.

 Mas tudo isto tem um custo, as consequências da produção de capital fictício, estão definidas no que o marxismo diz sobre essa questão e sobre a violação da leis económicas objetivas. A oligarquia para sobreviver como classe tem de transformar o capital fictício em valor (sem isto seria o seu colapso económico) o que é feito pela austeridade – a subida dos juros é um aspeto – mas também pelo domínio sobre outros povos (mesmo pela guerra) alargando o campo da exploração do proletariado como criador de valor.

 Quando os mecanismos da austeridade são insuficientes, a inflação associada à estagnação económica dispara. O FMI e o BCE recorrem então ao aumento das taxas de juro, recusando medidas como o controlo do movimento de capitais, designadamente do crédito, financiando empresas económica e socialmente necessárias ou mesmo essenciais, mas sem interesse em termos de lucro.

3 – Os impérios custam caro

 Um dos problemas dos impérios é que custam caro. A partir de certa altura o que o seu domínio pode obter é inferior ao que se gasta para os manter. Sempre foi assim, agora isto está refletido no acentuado declínio económico, social e mesmo militar dos EUA. Concentrados em guerras, propaganda, “revoluções coloridas” e outros custos para o manter o império, acabam por ignorar o que acontece no seu próprio país. Todos têm que se sacrificar, já que manter o império é uma questão existencial. Existencial para quem? Apenas para a oligarquia e camadas sociais associadas, que beneficiam com a exploração.

 Mas quem semeia ventos colhe tempestades. Agora os EUA têm mais uma pela frente, a segurança no Mar Vermelho, dado que o Iémen desencadeou ações contra navios ligados a Israel, até que a entrega de ajuda humanitária a Gaza seja estabelecida. Os estrategas do ocidente continuam a guiar-se pela sua propaganda e pelos filmes de Hollywood, em vez de pensarem nas consequências das decisões que tomam e fazem os outros seguir.

 O bloqueio da rota marítima do Mar Vermelho, em solidariedade com a Palestina, por onde passam cerca de 12% dos bens comerciais globais e 30% de todos os produtos em contentores, estimado pelo Washington Post em cerca de 10 milhões por dia, representa graves custos para a economia global, em particular para a europeia.

 A alternativa a esta rota vital é o Cabo da Boa Esperança, adicionando em média 40% à distância da viagem e ainda mais em despesas. As seguradoras aplicam uma "sobretaxa de risco de guerra" às remessas de e para Israel. A Associação Internacional de Proprietários Independentes de Petroleiros (Intertanko), representando quase 70 por cento de todos navio petroleiros, de gás e de produtos químicos, comunicou aos membros para “ficarem bem longe” do estreito de Bab al Mendeb. (t.me/geopolitics_live/13574, Telegram, 14/01).

 A iniciativa dos EUA de constituir uma frota para combater esta ameaça, conta com navios dos EUA e, até agora, um do RU. Mas esta iniciativa tem custos, além dos Houthis afirmarem que os ataques contra eles não resultaram em danos reais ou graves. De acordo com a Missile Defense Advocacy Alliance em 2022, abater os mísseis e drones dos Houthis custava 1,7 milhão de dólares o Sea Sparrows; 2,1 milhões o SM-2; 4,3 milhões o SM-6. Por exemplo, um drone Houthi, 5 000 dólares, um míssil iraniano como o Kheibar Shekan, 300 mil dólares.

É mais um conflito que o império faz à revelia da ONU. Bombardear o Iémen apenas acrescenta mais vítimas civis sem derrotar a força militar, como se tem visto. Invadir o Iémen? Se tal acontecer, o Mar Vermelho torna-se uma zona de guerra ativa, dada a capacidade dos Houthis de atacar navios dos EUA e aliados no Mar Vermelho e Golfo de Áden, afundando ainda mais a economia da UE/NATO.

 Os EUA têm já a seu cargo suportar Israel, cuja guerra que desencadearam os atira para uma profunda crise. Muitos jovens israelenses mais qualificados deixaram Israel, já antes cerca de um milhão partira para os Estados Unidos, cerca de 470 mil israelenses saíram do país desde 7 de outubro.

 A mobilização deixa a economia israelense desfalcada, o turismo cessou, os aprovisionamentos encareceram e tornam-se difíceis. Israel não tem possibilidade de produzir material de guerra para duas ou três frentes. Este encargo pertence aos EUA e aliados, já desfalcados pela guerra na Ucrânia.

 Após duas décadas de guerras desastrosas no Médio Oriente os EUA apoiam incondicionalmente Israel, fornecendo milhares de milhões de dólares em armas, incluindo 14,3 mil milhões em ajuda militar adicional para complementar os 3,8 mil milhões de ajuda anual, participando no genocídio israelense. Uma guerra contra os palestinos, com o objetivo de matar ou expulsar 2,3 milhões de palestinos de Gaza, a que se seguiria a completa ocupação da Cisjordânia.

 Que esperam os EUA obter nesta guerra que os isolam e desmascaram o seu imperialismo perante o Sul global a começar pelos países muçulmanos? Israel é hoje um Estado condenado globalmente: em 12 de dezembro, na AG da ONU, 153 Estados votaram a favor de um cessar-fogo, com apenas 10 contra (incluindo os EUA e Israel) e 23 abstendo-se. Os EUA colocaram-se também aqui perante uma guerra sem fim à vista, que Israel não poderá vencer nem suportar economicamente.

 Na Ucrânia, o apoio a Kiev transformou-se num “buraco negro” para as economias do ocidente, exibindo as fragilidades económicas e militares da NATO. Comprometidos com uma fraseologia triunfalista a sua desconexão da realidade minou a sua autoridade global.

 A guerra na Ucrânia foi descrita pelos belicistas da NATO como existencial para a Europa e para o mundo. Stoltenberg, dizia de forma ameaçadora que a vitória da Rússia não podia ser admitida. Mas depois de 500 mil baixas de ucranianos e mercenários e mais de 200 mil milhões de dólares, até fanáticos propagandistas não podem esconder que a guerra contra a Rússia está perdida.

 O chefe do comité de chefes militares da NATO alertou que “as placas tectónicas do poder estão mudando, com o domínio contínuo da Rússia na região de Donbass”. “Precisamos de uma transformação da NATO para o combate”, refletindo o objetivo dos EUA de que os Estados membros europeus aumentem os gastos militares. Isto enquanto as sanções destinadas a prejudicar a Rússia, em vez disso, devastaram as economias europeias. É neste sentido que Macron, outro dos mais incompetentes líderes políticos do ocidente, afirma: “Permitir que a Rússia vença significa expor-se ao risco de que as regras estabelecidas da ordem internacional deixem de ser respeitadas”. Da Rússia responde a porta-voz de Lavrov: “Se Macron tiver uma cópia das “regras” mencionadas, por favor envie. Quanto à vitória, não depende da “permissão” de Macron ou de qualquer outra pessoa, a Rússia fará o que disse". ( t.me/geopolitics_live/13803, Telegram, 17/01)

 Mas as guerras não param, há sempre outras em preparação, porque há quem lucre com isso. Esquecem que despesas militares são despesas improdutivas (nos EUA, orçamentado para 2024, 886 mil milhões de dólares, além do que vai para “segurança” e “inteligência”). Se exportadas tornam-se bens transacionáveis, mas para quem as compra são sempre despesas improdutivas mesmo que sejam necessárias à soberania do Estado, porém na NATO dá-se o contrário: quanto mais armas compram aos EUA menos soberania dispõem.

 A questão colocada aos povos, em particular da UE/NATO, é como libertarem-se das “regras” do “clube” oligárquico e imperialista que por todos os meios tenta impedir que a opinião pública tome consciência do que é necessário para garantir a paz e o desenvolvimento económico e social, eliminando as causas das diferentes crises em que nos envolveram.

 

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 22 de xaneiro de 2024]