Entrevista a Noam Chomsky: “As instituições financeiras divorciaram-se da verdadeira economia para dedicarem-se à especulação”
Há uma combinação com políticas que são explicitamente projetadas para tornar os empregos precários, o trabalho, alternativo, temporário, sem compromissos do empregador, e os sindicatos, a única forma de defesa da força de trabalho da opressão capitalista, têm sido atacado tanto pelas empresas estatais quanto privadas
- Considerando o seminário “Ameaças à Democracia e a Ordem Multipolar”, do qual participou, como essas ameaças se fazem presentes?
O seminário abordou muitas questões que são cruciais para a era contemporânea. Há dois focos primários, um deles é o sério declínio no modo como a democracia está funcionando em grande parte do mundo, o que inclui o Brasil. O outro é uma série de problemas que estão surgindo dentro da ordem múltipla construída após a Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do nacionalismo xenófobo que também é uma ameaça ao funcionamento democrático.
Não discutimos muito sobre quais poderiam ser as esmagadoras crises que realmente ameaçam a sobrevivência da vida humana organizada. Uma delas, é claro, é a era nuclear, à qual, por milagre, sobrevivemos até agora, o que não deve acontecer por muito mais tempo, porque milagres não são permanentes. Outra, entendida como ameaça severa na maioria dos países, infelizmente não nos Estados Unidos, é o aquecimento global, crise de extensão que também será desastrosa. Outro tipo de crise que discutimos é que há talvez 60 milhões de refugiados no mundo, mas, em poucos anos, se os padrões atuais persistirem, deverão haver centenas de milhões. Esse é um problema qualitativamente bastante diferente.
- Qual o papel dos EUA nesse contexto?
Os EUA estão desempenhando papel de Estado pária internacional, algo que não é novidade. Há 20 anos, o presidente da Associação Americana de Ciência Política, Robert Jervis, advertiu a entidade de que os Estados Unidos era considerado um Estado pária pelo mundo. Seu comentário foi endossado pelo notável cientista político Samuel Huntington. Há poucos anos, em 2013, a principal agência internacional de pesquisas, a Gallup, incluiu pela primeira vez em pesquisa internacional a seguinte pergunta: “Qual país é a maior ameaça à paz mundial?” As respostas nos Estados Unidos citavam Irã e Coreia do Norte, mas, no mundo, onde não se mencionavam o Irã e a Coreia do Norte em pesquisa espontânea, foram os Estados Unidos o país mais citado. Nenhum outro se aproximou nessa votação. O Paquistão ficou em segundo lugar, inflado pela votação indiana.
Curiosamente, a pesquisa não foi divulgada nos Estados Unidos, e, também curiosamente, o Gallup nunca mais refez pesquisa com a pergunta. Hoje tenho certeza de que o número de respostas elegendo os EUA seria muito maior.
No caso da verdadeira crise do aquecimento global, a administração Trump saiu imediatamente do tratado que começa a tentar lidar com a questão – as negociações de Paris, em 15 de dezembro, objetivavam produzir um tratado no qual os países seriam obrigados a reduzir as emissões globais. Isso porque o Partido Republicano, nos Estados Unidos, não aceita o tratado, já que não considera real a ameaça do aquecimento global. Então, houve um simples acordo, uma adesão voluntária, que não significa muito.
Em 2016, houve uma conferência que deu seguimento ao assunto em Marraquexe, no Marrocos. A conferência começou em 8 de novembro, com a Organização Meteorológica Mundial fazendo uma avaliação da situação climática global, que era terrível, e nesse ponto a reunião parou, as conversas pararam. A discussão das eleições começaram e naquele momento a pergunta era: “Podemos continuar com isso quando o Estado mais poderoso da história mundial está dizendo que não participará?” Não é que o presidente Trump não acredite realmente no aquecimento global. Recentemente, por exemplo, ele solicitou ao governo da Irlanda uma licença para construir um muro para proteger um campo de golfe seu da elevação do nível do mar, uma das ameaças do aquecimento global. Ele sabe o que está acontecendo.
Essa posição só tende a agravar a situação...
O mesmo vale para outros na administração, o então ex-secretário estadual, Rex Tillerson, era CEO da ExxonMobil. Os cientistas da ExxonMobil nos anos 1970 e 1980 estavam na liderança global na avaliação da natureza extrema da ameaça.
Em 1988, James Hansen, reconhecido cientista de clima, veio a público com uma informação que chamou a atenção para os graves perigos que temíamos. Imediatamente, a Exxon Mobil mudou suas estratégias e começou a financiar a negação do aquecimento global e a investir recursos na extração crescente de combustíveis fósseis.
Agora, os principais bancos, liderados pelo JPMorgan Chase, o mais importante, estão aumentando drasticamente os investimentos em combustíveis fósseis, todos sabendo exatamente o que está acontecendo. Essa é uma patologia de tal monta que é difícil encontrar palavras para descrevê-la. Nunca houve, na história da humanidade, esse tipo de comprometimento dedicado, por parte de um grupo, para minar a perspectiva de vida humana organizada num futuro próximo, sabendo exatamente o que estão fazendo. Isso nos dá a visão da natureza do capital. Se você tiver lucros amanhã, não importa quais serão as consequências. Mesmo que isso signifique a destruição da vida humana organizada. Essa lógica está por trás de muitas coisas sobre as quais falamos.
Se analisarmos acuradamente as razões do declínio da democracia, chegaremos a pessoas iradas e frustradas, ressentidas com o fato de terem sido deixadas de lado pelas políticas econômicas e sociais da última geração, políticas aproximadamente neoliberais, moldadas e projetadas para concentrar a riqueza de forma extrema, muito substancialmente, e à multiplicação de instituições financeiras, que explodiu durante esse período, todas, praticamente, dissociadas da economia real.
E essa raiva, medo, frustração, ressentimento é território explorado por demagogos, que, evidentemente, não apontam o erro dessas políticas, pois na verdade eles mesmos também as seguem, mas desviam a atenção para bodes expiatórios, geralmente pessoas mais vulneráveis que aquelas que se ressentem do fato de terem sido descartados pelo sistema. Então surge o medo de imigrantes, negros e assim por diante. Esse é um fenômeno mundial, está em todos os lugares, em todos os países relativamente ricos.
E por que, na sua opinião, fenômenos como a xenofobia aumentam tanto e diariamente?
Estão aumentando. Há um estudo sobre os suecos, um caso muito interessante em um país tão democrático. Sua última eleição, há poucos dias, seguiu o padrão regular das eleições ocidentais, os partidos de centro entraram em colapso, as instituições centristas entraram em colapso, os radicalismos estão aumentando, o que em parte é esperançoso porque um dos polos é progressista. Mas o que chama a atenção são os grupos de direita na Suécia. Um grupo de economistas suecos mostrou, de forma bastante convincente, que embora se fale da imigração, o apoio àquele que já foi um pequeno partido xenófobo de direita com raízes neonazistas não cresceu com o aumento de imigrantes, iniciou-se antes com o corte nos serviços sociais, com as políticas neoliberais.
O mesmo estudo também investigou a vizinha Finlândia, outro caso interessante porque quase não há imigrantes nesse país, mas aconteceu a mesma coisa. Assim que ocorreu um corte nos serviços sociais, sob as políticas neoliberais, houve um crescimento da xenofobia, embora não haja quase imigrantes no país.
Nos Estados Unidos, há muitos imigrantes, mas você sabe quem são eles? Há grande pluralidade de imigrantes. Há asiáticos ricos e eles não estão tirando empregos de minorias pobres, estão construindo o Vale do Silício. Mas no Arizona, onde eu morava, bem na fronteira, o medo de que os imigrantes de alguma forma tirem tudo de nós é parte de algo mais complexo, que está conectado muito fortemente à ideia de supremacia branca, fenômeno muito mais dos Estados Unidos do que de qualquer outro país do mundo. É fato que, proporcionalmente, a população branca está diminuindo e que dentro de poucas gerações ela provavelmente será minoria. Existe um medo de que os imigrantes estão levando nosso país para longe de nós e que também estão tirando nossos empregos.
Então as pessoas estão se voltando para partidos que concordam com essa ideia, de direita. As pessoas se veem parte de uma linhagem: seus avós trabalharam duro, foram bons cristãos americanos, foram à igreja, fizeram todas as coisas certas, seguiram em frente, seus filhos estavam em melhor situação, tudo estava bem. De repente, a linhagem foi estagnada, pessoas indignas que estavam “atrás” eram ajudadas pelo governo a passar à nossa frente por meio dos programas do governo, é claro.
Um absurdo! Na verdade, um problema da política de emprego.
Mas isso não importa. Assim como na Alemanha, nos anos 1930, não era um fato que os judeus estivessem tentando destruir o mundo, eram crenças, não a realidade. Então, a imagem é de que tudo está parado, estamos trabalhando duro e não estamos chegando a lugar nenhum. Os dados mostram que a população apoia os salários reais nos Estados Unidos para trabalhadores não supervisionados. Temos menos trabalhadores reais do que em 1979, o que é surpreendente. Em um período de quarenta anos, tem havido crescimento e produtividade, mas não para a indústria do trabalho. Há uma combinação com políticas que são explicitamente projetadas para tornar os empregos precários, o trabalho, alternativo, temporário, sem compromissos do empregador, e os sindicatos, a única forma de defesa da força de trabalho da opressão capitalista, têm sido atacado tanto pelas empresas estatais quanto privadas.
Na Europa, em muitos aspectos é ainda pior, porque lá há a austeridade, uma variedade europeia de cortes neoliberais, economicamente sem qualquer justificativa.
Houve também várias falhas fundamentais na forma como a União Europeia foi constituída. Uma delas é que as decisões básicas sobre políticas econômicas e sociais foram tiradas dos estados em que as pessoas participavam de alguma forma das decisões e passadas para a burocracia de Bruxelas, que não é eleita mas instituída. Comissão Europeia não eleita, FMI obviamente não eleito, Banco Central independente, então as pessoas reconheceram que não importa o que elas sintam, queiram, porque as decisões são tomadas remotamente, em algum lugar. E então vem o bode expiatório, são os imigrantes sírios, não os bancos do norte que estavam por trás das decisões.
Tudo isso remonta a uma forte reversão das políticas econômicas e sociais globais na década de 1970, período de grande e rápido crescimento organizado na Europa, nos Estados Unidos, da Era de Ouro. Não houve crise financeira porque a regulamentação estava em vigor, os bancos serviam à economia real.
O sistema de Bretton Woods em si era instável, não pôde ser mantido por causa da corrida ao ouro. Os Estados Unidos não conseguiam sustentar. Mas havia maneiras fáceis de modificá-lo. Outra coisa é que a militância na década de 1960 aterrorizava as elites em todo o espectro, liberais, conservadores tiveram que derrotá-la.
Houve uma grande onda de greves nos anos 1960, mulheres, trabalhadores de campo, jovens trabalhadores, muitos deles veteranos do Vietnã que só queriam uma vida diferente, queriam ter o controle da força de trabalho, do local de trabalho, um papel na administração... coisas que eram totalmente inaceitáveis. A taxa de lucro estava diminuindo, o que foi suficiente para causar uma reação.
As políticas liberais de Reagan, por um Estado mínimo, simbolizavam isso. O Estado cresceu sob Reagan, apenas de uma forma diferente. As regras da gestão corporativa foram alteradas, orientadas para os acionistas em vez de orientadas para os realmente interessados, para a comunidade, apenas para os conselhos, parte da governança corporativa. Isso significa, por exemplo, que o CEO da corporação pode escolher as pessoas que determinam seu salário, o financiamento, as compensações, a mudança das opções de ações, o que dá à liderança corporativa um incentivo para buscar jogos de curtíssimo prazo, para que possam, rapidamente, lucrar e partir para outra coisa. Claro que isso significou redução no investimento produtivo.
Houve redução de investimento produtivo e crescimento da especulação?
As instituições financeiras divorciaram-se da verdadeira economia, da economia real, para dedicarem-se à especulação maciça, ao risco assumido. Tudo isso é indiretamente subsidiado pelos contribuintes. Existe uma política garantista implícita do governo, um seguro, uma apólice que, se algo der errado, será resgatada, a qual dá acesso a crédito barato, o que incentiva a classificação de transações arriscadas como dignas de crédito.
Isso pode ser bastante rentável, pois, se alguma coisa der errado, os contribuintes pagam por isso.
Assim que essa política começou teve início a crise financeira: logo que Reagan assumiu teve de socorrer o Continental Illinois Bank, um dos grandes do Citigroup, que precisou ser salvo dos efeitos de seus empréstimos excessivos, sob a pressão do grupo, para países do terceiro mundo. Houve inadimplência do México, a América Latina entrou em duas décadas perdidas de ajustes estruturais e assim por diante. Em todo o mundo, coisas semelhantes aconteciam nos países ricos, liderados por Estados Unidos, Grã-Bretanha e a Europa, à sua própria maneira. Houve um ataque feroz à força liberal, ataques de empregadores ilegais aos sindicatos. Mas se você tem um estado criminoso, isso não importa.
Clinton introduziu o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio [Nafta, na sigla inglesa] que foi desenvolvido sob Bush, mas foi executado por Clinton, sem qualquer contribuição do movimento liberal, o que é uma violação da lei dos EUA. O Nafta também avançaria sobre os direitos trabalhistas. Estudos realizados pela Universidade de Cornell sobre os efeitos do Nafta na organização do trabalho revelaram que cerca de 50% dos esforços de organização foram prejudicados por ameaças dos empresários de transferir a empresa para o México. Então haveria uma transferência para o México, o que talvez fosse ilegal, mas, novamente, num estado criminoso isso não importa.
Essas ações reduziram muito drasticamente as possibilidades do movimento trabalhista. Nos Estados Unidos, a primeira coisa que Reagan fez praticamente foi acabar com a greve do controle de tráfego aéreo, furando a greve, o que na maioria dos países é ilegal. Acho que a África do Sul é o único país que permite isso. Assim que Reagan eliminou esse problema, as empresas privadas começaram a fazer a mesma coisa. A Caterpillar “quebrou” uma grande greve de trabalhadores. Nas negociações atuais para revisar o Nafta, uma das exigências canadenses é que o acordo elimine as leis trabalhistas americanas, incluindo as leis de direito ao trabalho. E isso nem é mencionado nos EUA.
Thatcher, por sua vez, descreveu com bastante precisão outra linha de pensamento. Tem uma declaração famosa: “Não há sociedade, há apenas indivíduos”. Que, teoricamente, em alguma imagem abstrata do mundo interagem livremente nos mercados, chamaram-na Visão Libertária. Naturalmente, esses indivíduos são um tanto diferentes em poder. Alguns desses indivíduos são corporações, têm direitos muito além dos direitos do indivíduo comum e acordos comerciais. Por exemplo, uma corporação pode processar um Estado por ele ameaçar seus lucros futuros, um indivíduo não. Segundo uma famosa observação de Anatole France: “em um país livre, ricos e pobres têm o mesmo direito de dormir sob a ponte”. É o chamado territorialismo.
Se não há sociedade, então as pessoas não vão se juntar. Trata-se do que Marx chama de “um saco de batatas”, que os governantes autoritários querem criar. Bem, há esse saco de batatas que essencialmente foi deixado de lado pelas políticas, eles são condenados pelas elites liberais, que os odeiam por serem atrasados, racistas e tal. E a vida dessas pessoas está estática, não avança, então há essa concepção de que o governo federal está ajudando pessoas sem valor que não trabalham para avançar. Enfim, temos todas essas imagens combinadas. A imensa concentração do poder econômico tem um efeito imediato no sistema político.
As eleições podem ocorrer de forma bastante desenvolvida, mas você pode muito bem prever, com notável precisão, de fato, o resultado de uma eleição, ou como agirão os representantes eleitos assim que assumirem. Primeiramente apelarão para os doadores, para que consigam vencer a próxima eleição. Isso significa que os lobistas corporativos chegam ao escritório dos representantes, conhecem o pessoal da equipe, escrevem a legislação. Quase não há correlação entre o que as pessoas acreditam e querem e o que a legislação diz. Há exemplos dramáticos disso. Por exemplo, impostos. Há pesquisas extensas. Por 15 anos, a atitude das pessoas em relação aos impostos pode ser traduzida basicamente em duas perguntas: “O que você acha que são seus impostos?” e “O que você acha dos seus impostos?” E as pessoas dizem que são muito altos. “E o que você acha dos impostos dos ricos?” Eles são muito baixos. Essas respostas são consistentes se olharmos para os relatórios. Isso é verdade para pessoas em todo o espectro ideológico, na direita ou na esquerda. E o que acontece com os impostos? Para os ricos, eles caem, para a população em geral, sobem. Não importa o que as pessoas querem.
Uma das coisas mais importantes para as pessoas, naturalmente, é a saúde. Por exemplo, durante os anos Reagan, 70% da população achava que deveria haver uma garantia constitucional para a saúde nacional, 40% da população pensava que já existia. Ninguém sabe o que está na Constituição. Se algo é perfeitamente óbvio, deve estar na Constituição.
Quando o Obama fez o Affordable Care Act (mais conhecido como Obamacare), deveria ter havido uma opção pública, o que significa que as pessoas poderiam escolher o National Health Care, apoiado por quase dois terços da população, mas isso não foi mencionado. É o que as pessoas querem mas é politicamente impossível. Politicamente impossível significa que as companhias de seguro, as instituições financeiras não o aceitarão. Por fim, tem-se um sistema de saúde que é o pior em todo o mundo. Tem o dobro do custo per capita das sociedades desenvolvidas e resultados relativamente fracos. De fato, surpreendentemente, a mortalidade está realmente aumentando nos Estados Unidos. Especialmente na faixa etária do grupo trabalhador, de 25 a 50 anos. A mortalidade está aumentando, isso não acontece em países a menos que haja uma grande guerra, uma grande escassez de comida ou algo assim.
Já na Europa, o Serviço Nacional de Saúde na Inglaterra durante anos foi classificado como o melhor do mundo. Os governos o estão desmantelando, tentando impor o sistema dos EUA, que é o pior sistema do mundo, estimulados por ganância e doutrina. A doutrina de que é preciso colocar as coisas no mercado e, em seguida, extrair seu modelo de negócios. Não importa o quão ineficiente e prejudicial sejam. E isso está acontecendo em tudo.
Em sua opinião a esquerda e a centro-esquerda têm capacidade para enfrentar esses desafios?
Curiosamente, isso está acontecendo, a começar pelos Estados Unidos. Em sua 26ª eleição presidencial, a vitória de Trump foi uma pequena surpresa. Na verdade, não é surpreendente que um bilionário, que tem enorme apoio financeiro de fora, apoio da mídia, da maior emissora de televisão, a Fox News, que não é um canal partidário que funciona apenas para a extrema-direita. No entanto, houve algo bastante espetacular: a campanha de Sanders, que rompeu com toda a História Americana Moderna. É a primeira vez que um candidato sem apoio da mídia, sem apoio da riqueza privada ou do capital privado chegou perto de ganhar uma indicação, provavelmente a eleição de fato se ele tivesse ganho a nomeação, se não tivesse sido impedido pelos gerentes do partido. Ele até usou a palavra socialista. Os Estados Unidos são diferentes dos outros países. Em todos os outros socialismo e comunismo são palavras normais. Nos Estados Unidos é um palavrão, não se pode mencioná-la. Ele se dizia socialista, era desconhecido, sem nenhum apoio, e chegou perto de ganhar. Não houve nada parecido na história política dos EUA. Ao final da campanha, ele era de longe a figura política mais popular no país, e assim permaneceu.
Na Inglaterra, o Partido Trabalhista se transformou. Tem um líder muito popular, Jeremy Corbyn. É o partido mais popular do país, e está sob severo ataque em todo o espectro. Seus membros estão recebendo acusações de antissemitismo, a pior acusação possível.
A iniciativa de Yanis Varoufakis, o DiEM25 (Movimento Democracia na Europa 2025), é um avanço substancial. Eles estão estudando eleições transnacionais por todo o continente europeu com um programa que tenta manter o que é positivo sobre a União Europeia – e não há muitas coisas positivas – e modificar e eliminar o que é não tem função. Há muita coisa a ser feita.
E há países, partidos e movimentos que apoiam isso. As recentes eleições mexicanas são um bom exemplo. Em todas as eleições há algo acontecendo. Portanto, há respostas. Exatamente onde isso irá acabar não está claro. É um eco reminiscente de comentários rabugentos feitos a partir das celas de prisão de Mussolini. Então o velho mundo está em colapso e o novo mundo ainda não está pronto, e é hora de sintomas mórbidos. A década de 1930 foi muito mórbida. E o que acontecerá agora não sabemos, mas deve ser algo parecido.
- Falando um pouco sobre o que vem acontecendo no Brasil, o senhor acha que o golpe que o país sofreu tem, em alguma medida, participação externa, de outros países, de grandes corporações?
Não tenho dúvidas. Ninguém deve ter. O governo dos EUA estava muito ansioso para ver o PT enfraquecido e ter o Brasil, um grande país da América Latina, nas mãos de um governo conservador e dos negócios. Mas não acho que os Estados Unidos pudessem fazer muito a respeito disso.
Uma das coisas que aconteceram antes do chamado Coup d'État é que os EUA... suas instituições foram expulsas do continente. Foi um acontecimento muito importante. Houve um período de deterioração leve na Argentina, mas por um período o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi eliminado do continente, o que é algo surpreendente. O FMI é, na América Latina, um instrumento do Departamento do Tesouro dos EUA. Portanto, eliminar o FMI da economia é um passo importante. As bases militares dos EUA foram expulsas, e a última grande foi Manta, no Equador. O presidente equatoriano, Rafael Correa, disse: “vocês podem ter uma base militar em Manta, se pudermos ter uma em Miami”. Esse tipo de atitude em relação aos Estados Unidos é novo nos assuntos latino-americanos e teve um efeito importante.
E os EUA não se foram, é claro. Os militares estão lá sob outros disfarces, a diplomacia é a mesma, estão fazendo o que podem, mas acho que o poder dos Estados Unidos de controlar os acontecimentos é muito diferente. Não é como em 1964, quando o governo Kennedy praticamente preparou o terreno para o golpe, que foi realizado com a demanda e o apoio devidos. E, claro, não foi só no Brasil, mas no continente. Em 1962, o governo Kennedy tomou uma grande decisão política, transferiu a missão dos militares latino-americanos da defesa do hemisfério, que era um remanescente da Segunda Guerra Mundial, para a segurança interna. Qualquer um na América Latina sabe que segurança interna significa guerra contra a população. E, claro, os EUA estavam em condições de mudar a missão dos militares latino-americanos. Eles não perguntaram a ninguém, apenas mudaram.
Em 1962, Kennedy enviou a missão para a Colômbia, que na época tinha as piores atrocidades. De fato, durante muito tempo foi liderada pelo general dos boinas verdes, Yarborough, e eles aconselharam os militares colombianos sobre como lidar com os problemas (insurgentes). Aconselharam explicitamente um terror paramilitar contra a herança de comunistas conhecidos. A expressão “herança de comunistas conhecidos” tem um significado muito amplo, definindo ativistas de direitos humanos, organizações de sacerdotes, camponeses etc. Finalmente chegou à América Central, na década de 1980, à Argentina, ao Uruguai, ao Chile e, claro, ao Brasil. Um país após o outro. Talvez esses dias voltem. Mas eles não estão aqui agora e muito foi alcançado durante o período de reação.
[Entrevista tirada do sitio web brasileiro Teoria e Debate, do 24 de setembro de 2018]