Entrevista a José Luís Fiori: “O BRICS não se propõe a ser uma OTAN nem tampouco uma União Europeia”

Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena - 29 Out 2024

O documento final da 16ª Reunião anual do Brics é um projeto completo de reorganização do sistema de segurança e do desenvolvimento econômico mundial. Agora é óbvio que o documento também condena veementemente o extermínio feito por Israel da população palestina da Faixa de Gaza e defende negociações de paz, com relação à Guerra na Ucrânia

– Qual o significado da reunião do Brics que aconteceu em Kazan?

 Acho que existe neste momento um consenso entre analistas internacionais de todas as latitudes: a 16ª Reunião Anual do Brics, realizada na cidade russa de Kazan entre os dias 22 e 24 de outubro, foi um dos principais acontecimentos políticos internacionais do ano de 2024, e foi, ao mesmo tempo, uma grande vitória diplomática da Rússia, e em particular, do seu presidente, Vladimir Putin.

 Pelo espetáculo em si mesmo, muito bem montado; pela quantidade e importância dos 35 governantes reunidos em Kazan, e mais seis representantes de organismos internacionais; pelo excelente trabalho diplomático da Rússia no exercício da sua presidência do Brics, e pela forma como Vladimir Putin coordenou os trabalhos e assumiu a liderança pessoal do projeto de construção de uma nova ordem mundial multipolar, esboçada no documento final aprovado pelos países presentes.

 Além disso, a Reunião de Kazan propiciou encontros e negociações diplomáticas diretas, pessoais e alguns casos surpreendentes, como a que ocorreu entre o Presidente da China, Xi Jinping, e o Primeiro-Ministro Narendra Modi, da Índia, ou entre o Presidente da Rússia e todos os demais governantes presentes, incluindo a Turquia, que faz parte da Otan. Mas sobretudo se destaca entre todas essas reuniões paralelas, a que ocorreu entre o presidente russo Vladimir Putin e o Secretário Geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, que foi a Kazan participar da reunião e discutir os caminhos para uma negociação de paz na Guerra da Ucrânia. Uma reunião que provocou fortes críticas e reações de algumas autoridades ocidentais, mas que foi muito bem recebida pela grande maioria da comunidade internacional.

– Como senhor avalia a ampliação do grupo do BRICS?

 No início eram quatro, depois entrou a África do Sul e passaram a ser cinco, no ano passado o grupo aumentou para 10, e agora serão 23. Chama a atenção a quantidade e diversidade dos novos países que seguem batendo à porta e solicitando para serem incorporados ao Brics. Agora bem, mesmo tendo em conta o perigo de que uma expansão excessiva e descontrolada aumente a heterogeneidade e diminua a capacidade de ação conjunta do grupo, chama a atenção o extremo equilíbrio geopolítico e econômico das novas incorporações, com três novos países africanos (Argélia, Nigéria e Uganda), três países do Leste Asiático (Vietnã, Malásia e Tailândia), três da Ásia Central (Uzbequistão, Cazaquistão e Turquia), a Bielorrússia, da Europa Central, e Cuba e Bolívia, da América Latina. Esses 13 países têm em conjunto uma população de quase 1 bilhão de habitantes. Além disso, com a provável incorporação desses 13 novos membros, o PIB do Brics sobe para 43% do PIB Global, transformando-se numa potência energética e alimentar que concentra 50% das reservas mundiais de petróleo e 60% das reservas mundiais de gás; além de 74% da produção mundial de arroz, 44% de milho, 48% de soja e cerca de 56% de trigo. A Nigéria já é hoje a maior economia africana, e a Indonésia deverá ser a quinta maior economia do mundo em 2030, segundo o FMI.

 Do ponto de vista geopolítico, a Turquia é sem dúvida nenhuma a maior aquisição do Brics. Não apenas por ser membro nato da Otan, mas também por ser mais uma potência islâmica, econômica e militar formando bloco com o Irã e a Arábia Saudita, capaz de redesenhar a ordem geopolítica do Oriente Médio, colocando Israel no seu devido tamanho e proporções. Se Guterres quebrou a unidade do bloco europeu indo até Kazan, a Turquia quebrou a unidade da Otan solicitando sua entrada no Brics.

 Mas não há dúvida de que, com o veto brasileiro à entrada da Venezuela, junto com o desinteresse do México e da Colômbia, o continente menos representado no Brics é o latino-americano. Deve-se sublinhar, assim mesmo, o caráter simbólico da incorporação da Bolívia (pelas dimensões de sua população originária) e de Cuba, pela importância de sua resistência histórica ao cerco econômico norte-americano que já dura mais de 60 anos.

 – E qual sua avaliação sobre o documento de conclusão do encontro?

O que primeiro chama a atenção no documento final da 16ª Reunião anual do Brics é sua extensão: são 134 tópicos e mais de 30 páginas cobrindo absolutamente todos os temas e problemas da agenda mundial nesta terceira década do século XXI. A extensão do documento fala de certa forma por si mesma: não se trata de um manifesto nem de uma carta de reivindicações ou intenções. Trata-se de uma visão completa do mundo e do como ele deveria se organizar e funcionar política e economicamente, segundo a vontade dos países associados ao BRICS.

 Assim mesmo, chama a atenção que, em cerca de 80% ou 90% de seus tópicos, o documento defenda posições, valores e reformas institucionais que também aparecem na “agenda” dos países do Atlantico Norte. Por exemplo, sua defesa incondicional das Nações Unidas, da globalização econômica, dos direitos humanos e da paz. Ao mesmo tempo, o documento defende um “mundo multipolar” mais justo e equitativo, combate as sanções econômicas como forma de relacionamento entre os países, incentiva a criação de um sistema de pagamentos alternativo ao Swift e o uso das moedas nacionais dos países do grupo nas suas relações comerciais. Na verdade, o documento final da 16ª Reunião anual do Brics é um projeto completo de reorganização do sistema de segurança e do desenvolvimento econômico mundial. Agora é óbvio que o documento também condena veementemente o extermínio feito por Israel da população palestina da Faixa de Gaza e a extensão atual da agressão israelense contra o Líbano, propondo o imediato cessar-fogo nos dois casos, e defende negociações de paz, com relação à Guerra na Ucrânia

 Mas o ponto mais importante a destacar é que não se trata de um manifesto contra o Ocidente, nem tampouco e apenas de uma “pauta de reivindicações. Pelo contrário, trata-se de um projeto e de uma proposta positiva de reconstrução do sistema mundial, e de um convite ao Ocidente para que se junte a este projeto de pacificação da humanidade.

– O grupo tem uma série de diferenças e contradições entre seus participantes (China/Índia, Egito/Etiópia, Irã/Arábia Saudita etc.). Isso é claramente utilizado pelos EUA, Otan e países associados para atacar a associação. Como essas questões devem ser encaminhadas?

 Isto será sempre assim. Sempre existirão diferenças e divergências entre países, sobretudo dentro de um bloco que não se propõe a ser uma seita ideológica nem uma aliança militar. Muito pelo contrário, uma de suas regras básicas é o respeito e a aceitação da diversidade política, ideológica, religiosa e civilizacional. O que os une é sua defesa comum da mudança da atual ordem internacional hegemonizada pelos europeus e seus descendentes. Não existe uma autoridade central, nem o grupo tem nenhuma ideia missionária de conversão dos povos à alguma ideologia ou regime político ou econômico em particular. O BRICS não se propõe a ser uma OTAN, nem tampouco uma União Europeia; quer ser apenas uma plataforma de diálogo e de aproximação entre os povos, um facilitador de acordos e negociações em prol da paz e da “desdolarização” da economia mundial, contra “impérios globais” e a favor de um novo modelo de desenvolvimento econômico mundial, mais igualitário e compartido.

– Qual deve ser a reação dos EUA e da Otan ao crescimento do grupo definido agora em Kazan?

 A mesma de sempre, ou seja, de desqualificação e acusação de tratar-se de uma iniciativa russa e chinesa para impor sua hegemonia e construir seu poder global. Eles costumam julgar os outros por si mesmos, e neste momento estão embalados pela sua convicção belicista de que precisam se armar para se defender de uma “invasão russa”, quando na verdade foram sempre os países europeus ocidentais que invadiram a Rússia e não o contrário.

 A Europa e os Estados Unidos estão vivendo uma nova “era macartista”, com a demonização da Rússia e do seu presidente, e por isso seus governantes e a maioria dos seus intelectuais, sobretudo os social-democratas, não têm a menor disposição e capacidade de olhar para o BRICS como um fenômeno novo e construtivo, dentro de um cenário mundial de grande destruição e caos.  A escalada ideológica e emocional é de tal ordem que hoje Putin já foi transformado numa espécie de “bicho-papão” que os europeus utilizam para assustar até suas criancinhas e velhinhos.

 Em algum momento, faz alguns anos, escrevi sobre o que eu chamei de “síndrome de Babel”, para me referir exatamente a essa reação dos “deuses ocidentais”, que descem do seu Olimpo quando percebem que o “resto da humanidade” está construindo uma torre que acabará afetando seu poder, e se põem a dividir e atacar e destruir a “torre” e dividir os povos, jogando uns contra os outros, para manter seu “poder divino”, como no famoso mito bíblico da Torre de Babel. E é exatamente isto que seguiremos assistindo nos próximos anos, independente de que seja Kamala Harris ou Donald Trump quem venha a governar os  Estados Unidos. A partir de 2025.

– A presença de 30 países na reunião foi uma bofetada nas sanções impostas pelos EUA e aliados à Rússia. O chamado Ocidente perdeu sua batalha para isolar a Rússia dentro da Comunidade Internacional ?

 Perdeu. A batalha para isolar a Rússia, econômica e diplomaticamente, fracassou inteiramente. O bloco do G7/Otan/EUA/EU não só não conseguiu isolar os russos como sofreu um efeito bumerangue que vem destruindo a sua própria capacidade econômica.

– Qual a perspectiva da ideia de criação de uma moeda do grupo e de um sistema de compensação alternativo ao Swift?

Creio que não haverá uma moeda do grupo, nem que exista tal objetivo. Mas, com certeza, aos poucos o Brics logrará construir um sistema de compensação alternativo ao Swift. Este sistema já está em construção, mas é um processo extremamente complexo e demorado. Não nasce do dia para a noite, nem por um ato de vontade política apenas. Não há dúvida que esta ideia tomou um novo e grande alento nessa reunião de Kazan, e creio que, se Donald Trump ganhar as eleições americanas e tentar punir os países que não usam o dólar, como já prometeu fazê-lo, dará com “os burros n’água”, porque, nesse caso, a “Torre de Babel” já avançou muito para que possa ser destruída.

– Entre as propostas do documento final da reunião está a criação de mecanismos conjuntos para atuação no mercado de commodities agrícolas e minerais, o que poderia esboçar a ideia de uma Opep das commodities. Como senhor avalia essa possibilidade?

 A ideia geral inscreve-se no mesmo espírito que vem marcando este grande movimento de ascensão da nova “maioria global”: assumir o controle de práticas e instituições ligadas diretamente aos seus interesses, mas que se mantêm ainda sob a tutela das potências euro-atlânticas. A ideia é ainda muito nova, e vem sendo ventilada pelo presidente Putin, que em algum momento comentou sobre a importância crescente dos países do Brics na produção mundial de grãos, alimentos e também de minerais, e que não faz sentido, neste novo quadro mundial, que os preços dessas commodities produzidas pelos países do BRICS sigam sendo definidos pela Bolsa de Chicago. O objetivo central dessa proposta é que os países produtores do Brics passem ter uma influência maior na formação dos preços internacionais dessas commodities.

–  O Brasil vetou a entrada da Venezuela no grupo. Como senhor avalia a posição brasileira nesse momento no Brics?

 Lamentavelmente, o Brasil perdeu uma grande oportunidade e se saiu muito mal, na 16º. Reunião Anual de Kazan. Em primeiro lugar, por causa do acidente que afastou fisicamente o presidente Lula da reunião, num tipo de evento diplomático onde a presença física é fundamental e insubstituível. E mais ainda no caso do presidente Lula, que tem uma enorme capacidade e carisma no relacionamento pessoal. Ele fez uma pequena intervenção on-line, mas isto foi insuficiente.  E em segundo lugar porque o Brasil cometeu um erro –do meu ponto de vista- ao vetar a entrada da Venezuela no BRICS, sem apresentar nenhum argumento e convincente para fazê-lo. Um erro grave e irreparável do ponto de vista da liderança de Lula na América do Sul. Um erro que resultou de outro erro, que foi o Brasil envolver-se nas eleições de um país vizinho, fugindo de uma tradição de longa data da diplomacia brasileira de não interferência nos assuntos internos de outros países. Deixou-se levar pela pressão conservadora interna e pela pressão externa norte-americana, e acabou metendo os pés pelas mãos ao propor refazer as eleições de um país soberano, que não tem nada a ver com a legislação eleitoral brasileira.

 Por esse caminho, o Brasil acabou repetindo –mesmo sem o querer– a prática norte-americana de se utilizar da defesa da democracia para intervir em países que não lhe são do agrado, e num continente onde os próprios EUA promoveram e apoiaram, durante muitos anos e décadas, governos e regimes ditatoriais extremamente repressivos e violentos, como aconteceu no próprio caso brasileiro. Além disto, ao bloquear a entrada da Venezuela no BRICS, promoveu indiretamente uma sanção econômica contra um país que já vive há mais de uma década sob o peso de centenas de sanções norte-americanas. Enfim, o veto do Brasil enterrou definitivamente a ideologia e o projeto político da integração sul-americana.

– O senhor escreveu recentemente que a América do Sul é uma “estrela cadente” no cenário mundial. Acha que foi isso que se viu em Kazan?

 Sim, escrevi, este é um processo que já vem de antes, mas que deve se acelerar depois desta participação brasileira muito ruim, na reunião de Kazan. Independentemente do que se possa pensar do governo do Sr. Nicolás Maduro e do juízo que cada um possa fazer pessoalmente com relação às últimas eleições presidenciais venezuelanas, que já é agora um assunto encerrado.

 Na terceira década do século XXI, frente às guerras da Ucrânia e de Gaza, ao esfacelamento em curso do sistema internacional e ao deslocamento de seu eixo econômico do mundo na direção da Ásia, a América do Sul dividida vem perdendo relevância geopolítica e geoeconômica no sistema internacional. E o mais provável é que esse declínio se acentue na próxima década, na medida em que as economias sul-americanas tenham aceitado sua condição de pequenas unidades “primário-exportadoras”, isoladas e completamente irrelevantes do ponto de vista geopolítico mundial. Com a exceção do Brasil e da Argentina, talvez, e da Venezuela, por possuir isoladamente a maior reserva de petróleo do mundo. E são exatamente esses três países que se separaram neste ano de 2024, com a eleição do Milei na Argentina e com o envolvimento brasileiro nas disputas políticas internas da Venezuela,

 Além disso, na última década, e após a pandemia, aumentou ainda mais a desigualdade socioeconômica na região, e radicalizou-se a polarização política e ideológica em cada um de seus países. Como consequência, a América do Sul não tem hoje nenhuma unidade, nem tampouco propósito ou objetivo estratégico comum. E seguindo por este caminho, seus pequenos países serão cada vez mais irrelevantes dentro do cenário geopolítico mundial do Século XXI.

– O Brasil deveria aderir à Rota da Seda chinesa?

Com certeza, urgentemente.

 

[Entrevista tirada do sitio web brasileiro Tutaméia, do 27 de outubro de 2024]