Entrevista a Boaventura de Sousa Santos: “A União Européia assumiu uma ideologia totalmente neoliberal”
Em Portugal, nos disseram que se não fosse feita uma liberalização total do mercado de trabalho e a privatização da Previdência, a economia não cresceria e o déficit público aumentaria. Aconteceu exatamente o contrário. Esse acordo de esquerda impediu a privatização da Previdência
- O senhor participou, semana passada, de um debate em Porto Alegre que teve como tema “democratizar a democracia”. Em que medida a democracia precisa ser democratizada hoje no mundo? Em outro debate realizado recentemente aqui em Porto Alegre, um economista disse que o namoro do capitalismo com a democracia acabou com o desmonte do Estado de Bem Estar Social. Concorda com essa avaliação?
Escrevi um livro, publicado recentemente aqui no Brasil pela editora Boitempo (A Difícil Democracia), onde apresento o argumento de que a socialdemocracia europeia foi um produto histórico que se desenvolveu em um determinado momento e em uma pequena parte do mundo (a Europa depois da Segunda Guerra Mundial). Foi um momento em que o capitalismo fez algumas concessões à democracia para garantir que os trabalhadores não se revoltassem e não se deixassem seduzir pela opção socialista que havia do outro lado do Muro de Berlim. Isso ocorreu depois de muita destruição. Cerca de 108 milhões de pessoas morreram nas duas guerras mundiais. Há uma contradição evidente entre democracia e capitalismo, na medida em que a primeira se assenta na ideia de soberania popular e tem uma pulsão no sentido da redistribuição de renda, enquanto a pulsão original do capitalismo é a acumulação infinita, sem qualquer preocupação social.
Os mercados financeiros estão sempre muito sensíveis a todas as alterações que afetem os seus lucros. Perdas de vidas humanas, em qualquer guerra, não os afeta ou só as afeta na medida em que afetar os lucros. O pós-guerra foi um momento em que o capital cedeu de muitas maneiras, aceitando uma tributação altíssima que chegou a atingir 80% dos rendimentos dos mais ricos em alguns casos, a negociação coletiva e até, como ocorreu na Alemanha, um sistema de gestão tripartite envolvendo trabalhadores, empresários e o Estado nas empresas. A crise da socialdemocracia começou no dia em que caiu o Muro de Berlim. A partir daí, tem vivido em um processo de crise, mas eu não considero que ela tenha terminado, até porque não há uma alternativa a ela hoje. Neste momento, em Portugal, nós vemos talvez a única prova de vida da socialdemocracia na Europa.
- O que está acontecendo em Portugal?
Os portugueses viveram um período de muito sofrimento, no período entre 2011 e 2015, quando o país foi governador por um governo de direita muito conservador que quis aplicar as mesmas reformas que estão em pauta agora no Brasil, com a privatização da Previdência, da Saúde e a destruição dos direitos trabalhistas. As receitas do neoliberalismo são globais, não variam muita coisa. Muita gente anunciou neste período o fim da socialdemocracia. O presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, disse recentemente que a socialdemocracia européia tinha terminado.
O que acontece é que há contradições na sociedade e o capitalismo sempre esteve em contradição com a democracia. Em alguns momentos, como disse, fez algumas concessões, mas, desde a década de 80, procura eliminar qualquer concessão e vem fazendo isso com muita consistência. Obviamente, esse tipo de comportamento cria resistência e luta social, bem como sistemas de desenvolvimento assimétricos.
Por exemplo, em 2003, vimos um governo dizendo que ia fazer uma socialdemocracia à latinoamericana. O presidente Lula disse que estava construindo uma socialdemocracia e lamentou que os europeus estivessem abandonando o projeto no momento em que ele estava sendo retomado no Brasil. Na Europa hoje há uma disputa muito grande. A União Européia assumiu uma ideologia totalmente neoliberal. Os estados estão sujeitos à pressão democrática de seus cidadãos, mas a Comissão Européia está livre dessa pressão. Por isso, foi muito mais fácil para o neoliberalismo penetrar nas instituições europeias do que nos estados nacionais.
Surgiram dois tipos de reações a essa política na Europa. Por um lado, estamos assistindo ao surgimento de um populismo de extrema-direita, que diz que o mal vem da União Européia ou dos refugiados, colocando vítimas contra vítimas. Isso está ocorrendo em quase todos os países da Europa, com exceção de Portugal e Espanha, que estiveram sujeitos a ditaduras durante 48 anos. Foi essa pulsão de direita que levou ao Brexit e que faz com que hoje toda a Europa festeje a eleição de Macron como se fosse um grande líder de esquerda quando, na verdade, estamos festejando apenas que não foi eleita a extrema-direita. Foi a isso que chegou a União Européia.
Por outro lado, tivemos tentativas de se opor a essas políticas neoliberais. A primeira ocorreu na Grécia, a partir de um partido de extrema-esquerda, o Siryza. Essa tentativa fracassou totalmente e o Siryza foi humilhado, sendo obrigado a aplicar uma política de austeridade completamente estranha ao seu programa.
No final de 2015, início de 2016, surgiu uma possibilidade de Portugal ter também uma tentativa de recuperar elementos da socialdemocracia a partir de uma união inédita em Portugal e com muito poucos antecedentes na Europa entre a esquerda moderada do Partido Socialista e a esquerda mais radical do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Foi uma solução extraordinária que tem mostrado uma consistência muito grande. Ninguém acreditava que ela durasse mais do que um ou dois meses. Já está durando um ano e todo mundo diz que ela vai durar quatro anos.
Esse é o maior e mais claro desmentido neste momento na Europa à tese de que não há alternativas às políticas neoliberais. Em Portugal, nos disseram que se não fosse feita uma liberalização total do mercado de trabalho e a privatização da Previdência, a economia não cresceria e o déficit público aumentaria. Aconteceu exatamente o contrário. Esse acordo de esquerda impediu a privatização da Previdência. As leis trabalhistas em Portugal já foram muito liberalizadas em governos anteriores do Partido Socialista e não era preciso aprovar novas liberalizações.
Portanto, estancou-se as políticas de austeridade e procurou-se repor o rendimento das classes trabalhadoras, especialmente dos setores em situação mais precária, e das pensões mais baixas também. Além disso, foram feitos alguns ajustes na política fiscal e iniciou-se a recuperação de alguns serviços do Estado. Segundo as previsões das agências de notação de crédito e dos ideólogos do neoliberalismo, essas políticas seriam um desastre para Portugal. Ao contrário dessas previsões, a economia está crescendo e o déficit público diminuiu. Neste momento é um dos mais baixos da Europa, está abaixo de 2%. O desemprego também diminuiu. Desde os anos 90, Portugal não tinha uma taxa de desemprego tão baixa, está abaixo dos 10%. E o índice de consumo dos portugueses é o maior dos últimos 20 anos. Isso mostra um governo de esquerda, moderado é verdade, que aprendeu muito com o caso grego e não foi para uma confrontação total com as instituições europeias, optando por tentar explorar contradições existentes na legislação europeia para por em prática uma alternativa.
Essa solução foi tão bem sucedida que o ministro das Finanças, que presidiu a sua implementação, está sendo cotado para ser o presidente do Eurogrupo, que reúne os ministros de Finança da Europa. Ou seja, Portugal, de bom aluno, passou a bom professor. Isso mostra que o neoliberalismo é uma farsa e também uma tragédia porque causa muito sofrimento às populações, aumenta muito o desemprego e expulsamos do país alguns dos nossos melhores jovens.
- Como foi a construção dessa unidade entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista?
Entre esses partidos há diferenças, mas há convergências. Durante todo o século XX, nós maximizamos as divergências e minimizamos as convergências. Houve um momento em Portugal, depois de uma experiência muito dolorosa de um governo conservador e muito reacionário, em que a esquerda resolveu, ao contrário de sua tradição, maximizar as convergências e minimizar as divergências. Cada um manteve a sua identidade. O Bloco de Esquerda é um partido muito diferente que o Socialista, tem posições diferentes sobre o euro, a OTAN e outros temas. Eles decidiram que esses pontos não fariam parte desse acordo, um acordo limitado para conseguir construir uma governabilidade do país à esquerda e mostrar que as políticas de austeridade da troika não eram a única solução e tampouco a melhor situação. O capitalismo faz essa pressão enquanto sabe que pode fazê-la. No momento em que souber que não é mais possível fazer essa pressão, o capitalismo adapta-se. O capitalismo adapta-se até sentir que é necessário que ele faça isso.
- Como você avalia a situação do Brasil hoje, cerca de oito meses após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff?
Eu penso que o está acontecendo no Brasil hoje é o caso paradigmático de uma intervenção externa. Acho que foi fundamental no que ocorreu o fato de que o Brasil era uma das forças importantes dos Brics, em aliança com China e Rússia, que tentavam construir uma articulação alternativa ao capitalismo global sob dominação dos Estados Unidos. A China é um parceiro no qual não se pode tocar porque é um grande credor da dívida pública norte-americana. Tenta-se neutralizar a Rússia pontualmente quando for necessário. E era preciso eliminar a ameaça vinda do Brasil. Isso foi feito através do golpe institucional. Não estou dizendo que não houve erros internos, mas houve uma pressão externa muito grande em favor das reformas.
Só quem é muito inocente não vê que estava tudo preparado. A esquerda é que foi inocente e muito descuidada. As leis e medidas tomadas no dia seguinte ao golpe, quando Michel Temer assumiu, mostraram que tudo isso estava sendo preparado há muito tempo com a mesma orientação. Certamente, algumas delas nem deve ter sido redigidas aqui no Brasil, mas sim em Washington.
Em certo momento, em razão dos desdobramentos da Operação Lava Jato e de outros acidentes de percurso, começou-se a pensar que Michel Temer não teria força suficiente para aprovar as reformas Trabalhista e da Previdência. Cogita-se a hipótese de outro governo terminar esse serviço. Mas é possível que ele permaneça até 2018. Ninguém pode dizer o que vai acontecer. Neste momento, estão exagerando as notícias sobre uma suposta retomada da economia para mostrar que a crise é política e não econômica. Se ele tiver condições de tocar as reformas naturalmente será usado para isso. Caso contrário, tentarão outra forma. Farão isso a menos que o povo brasileiro através de seus movimentos e partidos acorde e não deixe que isso ocorra.
Será um momento de luta, de luta pacífica espero, mas luta de rua. No próximo período, será preciso defender a democracia no Brasil, mas, devido ao comportamento das instituições, será preciso defendê-la nas ruas. As instituições têm que ser pressionadas a partir da rua. Os partidos de esquerda que estiveram no poder nos últimos 13 anos desabituaram-se da luta de rua, da organização pacífica dos movimentos. Por isso temos esse momento de, digamos, pausa, na reorganização dos movimentos. Penso que o que vamos assistir nos próximos tempos é a reorganização da resistência e a luta política é que vai definir o futuro. O que queremos é que isso se dê dentro dos marcos democráticos, que já estão muito abalados pelo golpe institucional, e que não se chegue a uma confrontação do tipo da que está ocorrendo agora na Venezuela, com luta de rua violenta. Espero que isso não aconteça aqui no Brasil, mas é bom que as forças democráticas estejam atentas.
[Entrevista tirada do sitio web Sul21, do 5 de xuño de 2017]