Da «uberização» sem Uber ao teletrabalho «uberizado»?

Tiago Vieira - 21 Mai 2021

Vimos assistindo à normalização da ideia que o trabalhador não vai ao local de trabalho, usa os seus meios próprios para trabalhar, e administra o seu horário livremente de acordo com os objectivos traçados (mesmo quando – como se tem visto comummente – estes são impossíveis se cumprindo o horário de trabalho)

 Nos últimos anos, a emergência e rápida expansão do trabalho mediado por plataformas digitais (doravante apenas trabalho por plataformas) tem suscitado um quase infinito rol de reflexões. A esse processo vem-se chamando de uberização.

 Se uma parte do interesse na uberização se deve à relativa novidade que a passagem para uma nova forma de organização de trabalho comporta (como a designação indica, mediado por plataformas digitais), uma não menos importante razão da atenção que lhe é dedicada prende-se com a correlação quase perfeita entre a sua expansão e a delapidação de direitos dos trabalhadores.

 A lista de manifestações deste brutal ataque a conquistas de várias gerações seria demasiado extensa para que aqui a (re)colocássemos toda. Porém, é útil relembrar que uma das imagens de marca do trabalho uberizado reside no recurso ao falso trabalho independente. Ou seja, na ausência de estabelecimento de um vínculo formal com os trabalhadores, que são tratados como meros prestadores de serviços, embora, na verdade, eles sejam totalmente dependentes da entidade patronal – tal como ocorre com os trabalhadores assalariados.

 Não surpreendentemente (ainda que de forma não tão abrangente quanto desejável), um pouco por toda a parte se têm levantado vozes, lutas, decisões de tribunal e – no caso espanhol – até leis que põem esta dimensão do trabalho por plataformas em causa. Deste modo, as empresas a operar por plataformas que gozam de mais visibilidade – as de logística como a Uber, a Glovo, a Lyft, ou a Deliveroo – têm visto o seu espaço de manobra crescentemente limitado, levando a que alguns académicos augurem já que o futuro destas empresas possa passar por um recuo táctico: o recurso a empresas de subcontratação, ou seja, o regresso à forma mais precária de contratação existente antes do aparecimento das famigeradas plataformas.

 Mas se isto é verdade para os casos acima referidos, é útil notar que a conversa não acaba aqui. Como um rio que se divide em vários leitos, tendo alguns deles a encontrar-se com caudais de outros rios, o que sobra do trabalho por plataformas (e que é provavelmente bem mais significativo do que os sectores da logística, apesar de menos visível) está agora cada vez mais perto de desaguar no trabalho que a pandemia fez ser à distância, vulgo, teletrabalho.

 Ainda que se trate de uma realidade longínqua, uma vez que a legislação laboral é (felizmente) muito diferente da nossa, nos EUA o tiro de partida já está dado: em inquérito feito a 800 administradores de empresas, 70% afirmam ter a intenção de recorrer a trabalho independente no futuro.

 Mas o que espoleta esta intenção? Ora, nada mais, nada menos que a percepção das entidades patronais de que é possível atingir níveis de exploração (disfarçada de produtividade) e controlo (pomposamente chamado de monitorização) dos trabalhadores tão altos, ou até maiores, do que os anteriores com a transição para o teletrabalho que a Covid-19 proporcionou.

 Em síntese, vimos assistindo à normalização da ideia que o trabalhador não vai ao local de trabalho, usa os seus meios próprios para trabalhar, e administra o seu horário livremente de acordo com os objectivos traçados (mesmo quando – como se tem visto comummente – estes são impossíveis se cumprindo o horário de trabalho). Tudo isto aproxima cada vez mais o trabalhador assalariado do freelancer – o patronato sabe-o e quer aproveitar a boleia para, a reboque do uso das tecnologias digitais, ir ainda mais longe na banalização da uberização – mesmo que esta seja, pasme-se, sem Uber!

 De tudo isto que escrevi uma conclusão emerge como fundamental: a valorização do Trabalho exige que se ataque todas as formas de precariedade e exploração dos trabalhadores. Isso exige que se olhe para os desafios que temos perante nós– baixos salários, vínculos inseguros, falso trabalho independente, controlo invasivo por parte das entidades patronais, horários desregulados, caducidade da contração colectiva, etc.– como um todo e não de forma segmentada. Naturalmente, não quer isto dizer que não se considerem leis sobre matérias específicas, mas sem que haja um rumo claro, aquilo que se conseguirá na melhor das hipóteses é tapar a cabeça, destapando os pés.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 16 de maio de 2021]