Cinismo sem limites. Biden e a guerra na Ucrânia
O militarismo e a lógica implacável de alargamento da NATO é indissociável da dinâmica hegemónica e expansionista do imperialismo no plano económico, servindo a estratégia do grande capital. A adesão à NATO dos antigos estados europeus do campo socialista precedeu, regra geral, a sua integração na UE
Discursando na 77.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, Joe Biden surgiu no papel de grande Tartufo, num discurso pleno de demagogia, de fio a pavio atravessado pelo cinismo, a hipocrisia e a mentira. Centrando-se na guerra na Ucrânia, o presidente norte-americano adoptou a postura de «gato de fora com o rabo escondido», numa chocante encenação do lobo em pele de cordeiro. Entre outras pérolas, afirmou: [esta é] «uma guerra escolhida por um homem»[Putin]; «ninguém ameaçou a Rússia, e ninguém além da Rússia procurou o conflito».
O presidente russo é retratado como a besta negra que esgrime «ameaças nucleares contra a Europa». Ao invés, transmutado em impoluto paladino da Carta da ONU, Biden asseverou: «rejeito o uso da violência e da guerra para conquistar nações ou expandir fronteiras através do derramamento de sangue».
A afirmação, condensando o tom de toda a intervenção, constitui um rude insulto à verdade. Por muito que (não) pese aos urradores do «mundo livre» e demais servidores encartados do pensamento único, nada é menos consentâneo com a doutrina e a prática continuadas dos EUA, de que a prestação da sua Administração, a meio do mandato, também é prova cabal.
Os EUA são os campeões do espezinhamento do direito internacional e do seu revisionismo arbitrário, propugnando a fórmula ardilosa de «um mundo baseado em regras». A grande potência imperialista encontra-se há décadas em estado de guerra permanente, fora das suas fronteiras. Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, são apenas alguns exemplos mais recentes, de uma lista longa de intervenções dos EUA (e da NATO), que afrontaram o espírito e a letra da Carta das Nações Unidas. Pelo meio, temos Guantánamo e a infame guerra ao terror, a institucionalização das execuções arbitrárias em operações encobertas e à distância (com recurso a drones). Não chegando porém para abalar os pilares da ordem livre e democrática internacional emanada do sistema de poder em Washington.
China avisa EUA que estão a «brincar com o fogo» sobre Taiwan
A CIA e o «estado profundo» continuam a promover as forças terroristas que os EUA invocam combater para desestabilizar estados soberanos, como acontece na Síria, país que os EUA procuram esfacelar e, embora fracassando na tentativa de derrubar o governo legítimo de Damasco, prosseguem a pilhagem organizada do seu petróleo, perante o escandaloso silêncio da «comunidade ocidental». E agora a explosão da tragédia da Ucrânia, sacrificada em prol do objectivo de enfraquecer e golpear a fundo – até onde for possível – a Federação Russa. Um processo começado a desenhar-se com a desintegração da URSS e o triunfo da restauração capitalista, merecendo todo o empenho e apoio dos EUA e potências do G7.
O alvo central da actual estratégia de confrontação no mundo é a China, o grande adversário sistémico à hegemonia, em declínio, das forças do imperialismo. Simultaneamente, é cada vez mais clara a conexão entre o significado da guerra na Ucrânia, em que a Rússia se afigura o elo estratégico mais fraco, e a larga frente dos EUA de desestabilização da China, incluindo a instrumentalização da questão muito sensível de Taiwan, com a política de Washington a testar linhas vermelhas muito grossas.
O discurso de Biden na tribuna da ONU representa um péssimo sinal, no momento em que o conflito na Ucrânia ameaça conduzir a uma escalada de incalculáveis consequências para a Europa e o mundo, e a própria dinâmica da crise capitalista, agravada pela guerra e a bateria draconiana de sanções impostas à Rússia, coloca na ordem do dia o espectro de uma nova recessão económica.
Na guerra a verdade costuma ser a primeira a tombar. Os círculos dominantes nos dois lados do Atlântico, seguidos pelo exército de formatadores da opinião pública dos grandes meios de comunicação, insistem na tecla gasta da demonização da Rússia e fulanização das causas do conflito, centradas basicamente na culpabilização de Pútin. Uma russofobia sem precedentes, activamente cultivada nos últimos anos, inquina a atmosfera internacional.
Os expedientes da deturpação massiva e reducionismo máximo procuram amplificar o efeito da propaganda, apelando a reflexos e instintos básicos. A mensagem de fundo debitada pelos média do sistema há meses a fio compara Pútin a Hitler, apresenta o líder russo como um ser maligno tomado pela irracionalidade. Que tem agora a humanidade tomada como refém da chantagem nuclear russa.
Contudo, a substância dos factos mostra-nos outra realidade. Na verdade, os EUA são desde a criação da arma nuclear o grande proliferador. Foram os únicos a usá-la (contra o Japão, em 1945), não o fazendo num contexto defensivo, mas para afirmar a sua superioridade perante a URSS que não possuía esta arma. Era o alvor da Guerra Fria, ainda não terminada a II Guerra Mundial. Washington nunca deixou de procurar a supremacia nuclear.
Nos anos 90, tirando partido da fraqueza e caos imperante na Rússia e no espaço pós-soviético, os EUA tentaram promover o desarmamento unilateral e tomar «controlo» do arsenal nuclear russo, com a monitorização de equipas de «inspectores» no terreno. Restam poucas dúvidas de que sem o arsenal nuclear legado pela URSS, a Federação Russa teria conhecido o destino da Jugoslávia no final do século XX.
Em 2002, durante a presidência de G.W. Bush, os EUA romperam unilateralmente o tratado ABM de defesa antimíssil assinado em 1972 com a URSS, dando início ao projecto de instalação do sistema de escudo antimíssil global, justificado com as ameaças fictícias ou empoladas provenientes da Coreia do Norte e Irão. Como é sabido, os seus alvos reais são as capacidades nucleares da Rússia e China e o que se pretende com este projecto ofensivo é anular o potencial dissuasor estratégico, principalmente da Rússia, o que permitiria aos EUA desferir um primeiro ataque nuclear impune.
É um projecto de subversão do equilíbrio estratégico mundial, sublinhe-se. Raiz da verdadeira chantagem nuclear dos nossos dias. Tanto mais que os EUA adoptaram paralelamente o programa de ataque global imediato, visando atingir qualquer alvo no planeta em menos de uma hora. Os EUA são hoje a única potência nuclear que tem estacionadas armas nucleares em bases militares em outros países, incluindo na Europa. A máquina militar dos EUA e da NATO tem sido incessantemente reforçada nas fronteiras da Rússia, muito antes da escalada de guerra em curso na Ucrânia.
À conta do escudo antimíssil, em países como a Roménia e Polónia, os EUA procedem à instalação de sistemas de lançadores universais, capazes de disparar não só mísseis antimísseis, mas também mísseis cruzeiro de ataque. Com ogivas convencionais ou, no limite, nucleares.
Neste contexto, os EUA, em 2019, durante a Administração Trump, saíram unilateralmente do acordo de eliminação de armas nucleares (terrestres) de curto e médio alcance (armas nucleares tácticas), assinado em 1987 com a União Soviética. Acresce que, nos últimos anos, o Pentágono tem reforçado os programas de modernização de armas nucleares e investido na criação de armas nucleares mais pequenas e leves, aptas para a utilização em contextos tácticos de teatro de guerra. Os EUA estão na vanguarda dos projectos de militarização do espaço cósmico, inclusive com armas ofensivas, e recusam a proposta da Rússia e da China de um tratado para o impedir.
Estas são apenas algumas peças principais de um puzzle que tem de ser tomado no seu conjunto. Os EUA têm actuado de forma consistente para baixar o limiar de emprego da arma nuclear. Trata-se de uma verdadeira chantagem nuclear conduzida pelos EUA contra a Rússia (e a China). Na essência, a guerra na Ucrânia é a consequência desta política belicista e de confrontação levada a cabo pelos EUA e aliados, empurrando completamente Moscovo contra as cordas. Ainda em 2008, Fidel Castro advertira para o empenho da NATO «em promover uma guerra de extermínio contra a Federação Russa».
É à luz desta complexa situação de degradação da segurança internacional, criada ao longo das últimas décadas, que a Federação Russa, e também a China, procedem à modernização do seu arsenal nuclear e à criação de armas hipersónicas, campo em que se encontrarão à frente dos EUA. Para os dois países é vital defender a sua efectiva capacidade dissuasora estratégica perante a intensificação das ameaças militares dos EUA e aliados. Veja-se a recente constituição da aliança militar AUKUS (EUA, Reino Unido e Austrália), para dotar o país da Oceânia de uma frota de submarinos nucleares (um passo em ruptura com o tratado de não proliferação de armas nucleares, TNP), a par das tentativas de estender a NATO para a Ásia ou criar uma NATO asiática (de que o Quad será o protótipo), visando fundamentalmente a China.
Rússia insta países ocidentais a travar avanço para leste
Cabe notar que todas as propostas de Moscovo, ao longo de anos, no sentido de serem adoptadas medidas de fortalecimento da segurança colectiva europeia foram ignoradas. Face ao agravamento sem precedentes da situação na Europa, a Rússia apresentou enfaticamente em Dezembro de 2021 um conjunto de condições com vista a salvaguardar o carácter universal e indivisível da segurança na Europa. Abrangiam medidas de desanuviamento, a reversão da cavalgada para leste da NATO e a garantia efectiva da neutralidade da Ucrânia, estatuto contido na declaração de independência de 1991 e abandonado por Kiev após o golpe de Estado de 2014, dirigido de Washington com recurso decisivo a milícias neonazis. Os EUA e a NATO rejeitaram basicamente as propostas russas, encarando-as como um sinal de fragilidade.
Depois do golpe de 2014, o facto de a Ucrânia não integrar formalmente a Aliança Transatlântica não constituiu uma barreira para a entrada em peso de efectivos e meios da NATO no país. Com a guerra a lavrar no Donbass desde 2014, cerca de uma dezena de bases militares de forças e países da NATO foram criadas sob o biombo de missões militares temporárias, torneando a proibição da existência de bases estrangeiras ainda inscrita na Constituição ucraniana.
Para Moscovo, os riscos colocados assumiam evidente natureza estratégica. A intervenção do presidente ucraniano em Fevereiro na conferência anual de segurança de Munique terá constituído a última gota para o Kremlin. Aplaudido longamente pela fina-flor dos EUA (representados por Harris, Pelosi e Blinken), UE e NATO, com o secretário-geral da ONU também presente, o discurso de Zelensky aludiu à intenção da Ucrânia voltar a dotar-se da arma nuclear e solicitou um calendário claro de adesão à NATO.
Kiev não só confirmava a recusa liminar de implementação dos acordos de Minsk, vertidos na resolução 2202 do Conselho de Segurança da ONU – que garantiam a permanência do Donbass no seio da Ucrânia através de um estatuto de ampla autonomia –, como continuava a rejeitar uma negociação séria com Moscovo que levasse em conta as preocupações de segurança russas. O resultado dramático é conhecido. O reconhecimento por Moscovo das repúblicas autoproclamadas de Donetsk e Lugansk deu-se quase de imediato e logo a seguir tem início a intervenção militar em larga escala da Rússia na Ucrânia.
Depois de 24 de Fevereiro, a situação na Europa e no mundo entrou definitivamente noutro patamar. A guerra na Ucrânia serve os propósitos estratégicos, económicos, comerciais e políticos dos EUA, acima de tudo. Quiçá, a Casa Branca julgou que serviria igualmente os cálculos eleitorais da desgastada administração democrata em ano de importante ida às urnas, num país fracturado e polarizado como nunca em décadas.
Em Março, na Polónia, Biden exortou ao afastamento de Putin e à mudança de poder na Rússia. Os EUA foram céleres na formação de um centro coordenador internacional de apoio militar à [guerra na] Ucrânia, integrado por cerca de 50 países. Com o apoio em peso de uma UE submissa e resignada ao «martírio» em nome da nova e auspiciosa campanha anti-russa, com Ursula von der Leyen e Borrel à cabeça.
A solução do conflito e a defesa da Ucrânia passava pelo terreno de batalha, garantia-se. Foi nesta toada que o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, assumiu em Abril querer ver «a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia».
Não restavam dúvidas, que os EUA através desta guerra pretendem atolar, quebrar económica e politicamente a Rússia e, se possível, desmembrar o país, cumprindo o desígnio deixado incompleto após o fim da URSS. Lloyd tem sido secundado por afirmações incomportáveis de antigos chefes militares do Pentágono e da NATO, de Wesley Clark a Ben Hodges, equivalendo, praticamente, a uma declaração não formal de guerra a uma potência nuclear como é a Rússia.
O imperialismo está claramente a forçar uma escalada perigosíssima e é neste contexto que devem ser apreendidas as repetidas advertências da direcção russa sobre a utilização de todas as armas. As palavras recentes de Pútin a este respeito foram descontextualizadas e adulteradas. Recorde-se que a doutrina nuclear da Federação Russa prevê a utilização da arma nuclear em caso de ameaça vital à segurança e integridade.
De facto, após o desaparecimento da URSS, apenas China e Índia afirmam na sua doutrina militar o princípio de não usar a arma nuclear em primeiro lugar. Certamente, no pingue-pongue da escalada retórica que precedeu e acompanha os desenvolvimentos no terreno, afirmações levianas de alguns políticos e figuras públicas russas acerca da ameaça de utilização de armas nucleares são totalmente contraproducentes. Expressam não só uma reacção de fragilidade, mas igualmente uma atitude aventureirista de sectores da classe dirigente russa. O que não inverte no fundamental os dados da equação.
Metade do mundo condena a guerra na Ucrânia mas não confia no Ocidente
Os EUA e a NATO travam, com crescente envolvimento, uma guerra de procuração na Ucrânia contra a Rússia, em que a linha de separação entre a guerra híbrida e a guerra directa perde visibilidade. Os falcões da NATO continuam a esgrimir clamorosamente a retórica nuclear. Liz Truss, na qualidade de candidata à liderança do Reino Unido, disse-o claramente quando se afirmou pronta para premir o botão nuclear mesmo que isso significasse a aniquilação global.
O comandante das forças estratégicas do Pentágono, almirante Charles Richard, afirmou nestes dias que um conflito militar directo com a Rússia e a China é possível.
Os repetidos disparos da artilharia ucraniana contra a central nuclear de Zaparojie, a maior da Europa, são motivo de grande inquietação. Estranha-se que a missão da AIEA que visitou as instalações, contando com especialistas em balística, se tenha abstido de revelar a proveniência dos ataques. Tudo isto adensa a suspeita que paira no horizonte: será que a estratégia incendiária dos EUA procura, de alguma forma, um desastre nuclear, sacrificando não só a Ucrânia mas também a Europa?
É pois desonesta e completamente insustentável a afirmação de Biden de que «ninguém ameaçou a Rússia». É o argumento risível, por cá replicado por comentadores e colunistas mais empedernidos, de que a NATO não constitui uma ameaça à Rússia. Como acertadamente referiu o representante bielorrusso em assinalável intervenção na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi o alargamento da NATO que tornou «inevitável» esta guerra. Em grande medida, independentemente dos cálculos, métodos, reais objectivos e contradições da classe dirigente da Rússia capitalista, poder-se-ia acrescentar.
A cavalgada da NATO em direcção às fronteiras russas é o eixo da dinâmica hostil anti-russa (e contra a Bielorrússia, país que desde 1994 se tem destacado pela luta corajosa em defesa da independência e soberania e do direito a decidir sobre o seu caminho de desenvolvimento) que estilhaça a segurança europeia. Desde a dissolução do Pacto da Varsóvia e do colapso da URSS, a NATO já vai no sexto alargamento (com a incorporação em curso da Suécia e Finlândia), quebrando todas as garantias em contrário dadas à última direcção soviética e ao governo da Rússia no início dos anos 90. Os EUA, cujo orçamento de defesa ultrapassa o da Rússia em mais de dez vezes, têm estacionados na Europa mais de 100 mil militares. É uma evidência que são os EUA, a NATO e a UE os principais agentes da corrida armamentista, intensificada nos últimos anos, promovendo a mobilização crescente de meios e a criação de bases militares nos países da Europa Oriental, dentro da estratégia assente desde o final da URSS de assédio permanente sobre a Rússia.
O militarismo e a lógica implacável de alargamento da NATO é indissociável da dinâmica hegemónica e expansionista do imperialismo no plano económico, servindo a estratégia do grande capital. A adesão à NATO dos antigos estados europeus do campo socialista precedeu, regra geral, a sua integração na UE.
Cronologia de uma provocação aterradora
Recorde-se que, em relação à Ucrânia, a cimeira da NATO de Bucareste, em 2008, prometeu a sua adesão (e da Geórgia). Em resultado do golpe de Estado da Maidan(1) de Fevereiro de 2014, a antiga segunda república soviética em termos económicos e demográficos converteu-se em centro avançado da campanha russófoba e da desestabilização e ameaça militar contra a Rússia. Perdeu de facto a sua soberania e independência nacionais. Os destinos do país, a composição do governo, as principais leis, a economia e a gestão das empresas estruturantes passaram a ser em grande medida decididos desde o exterior. Hoje é «carne para canhão» de uma guerra – iniciada não este ano, mas em 2014 – que representa uma tragédia para os povos ucraniano e russo, e cujas responsabilidades o pensamento único dominante necessita totalmente de assacar à Rússia.
O poder da oligarquia ucraniana, acolitada aos desígnios determinados em Washington (seguidos por Londres, Bruxelas, Berlim, Paris…), empurrou o país para um caminho sangrento e destrutivo, contrário aos interesses e aspirações fundamentais do povo ucraniano, exacerbando os factores de divisão e discriminação interna e provocando a ruptura da sua integridade. Sim, a estratégia de «revolução colorida» surtiu efeito na Ucrânia; os mais de cinco mil milhões de dólares que Victoria Nuland reconheceu, durante o golpe da Maidan, que os EUA investiram na «promoção da democracia» na Ucrânia desde 1991 conduziram, depois do ensaio da «revolução laranja» de 2004, à efectiva ruptura de 2014.
A partir do golpe armado da Maidan, as forças ultranacionalistas e neonazis assumiram um papel determinante nos destinos da Ucrânia, qualitativamente bem acima da sua representação eleitoral. Facto saliente que a narrativa do combate entre democracia e autocracia no mundo opta, diligentemente, por ignorar e silenciar. Como ofusca a paulatina instauração da ditadura após 2014, passando hoje pela proibição do Partido Comunista da Ucrânia e das forças políticas da oposição ao poder herdado do golpe da Maidan, incluindo partidos representadas no parlamento nacional, o encerramento de órgãos de comunicação social, a perseguição da língua e cultura russas (que Kiev pretende substituir pelo introdução do idioma polaco e a «abertura» geral do país à Polónia...), o aprofundamento do pavoroso assalto à memória e a reescrita da história.
O mito da ucrainização (um país, um povo, uma língua) foi sempre um projecto americano e de sectores minoritários dentro do país. Nunca reflectiu os interesses e a realidade moderna nacional da Ucrânia, a sua história, construção estatal e fronteiras, legadas da era soviética. Um caminho que coloca hoje em causa a continuidade do próprio Estado ucraniano, dificulta uma solução política e contribui para aproximar o cenário de partição do país, que pode estar tenebrosamente a ser negociada debaixo da mesa.
Uma última nota. O curso dos acontecimentos mostra que os EUA, sacrificando a Ucrânia e a segurança na Europa, tiraram partido do agravamento, até a um nível insuportável, do clima de ameaça existencial que efectivamente pende sobre a Rússia, e assim é percepcionado em Moscovo. Objectivamente, a Rússia foi colocada numa situação muito complexa em que todas as opções eram más e o tempo não corria a seu favor. O reconhecimento desta realidade não equivale a caucionar as respostas e decisões da direcção russa, nem tampouco objectivos e acções que decorrem da natureza (de classe) do poder russo. Como não isenta o capitalismo russo, cuja restauração o Ocidente apoiou activamente, e lembre-se que Pútin desempenhou elevados cargos durante o governo de Iéltsin, de grandes responsabilidades na evolução da situação no período pós-soviético, incluindo na Ucrânia. Os EUA conhecem as debilidades e dependências do capitalismo russo e a condição económica semi-periférica da Rússia, apesar dos enormes recursos e potencial, da poderosa capacidade de dissuasão nuclear e do muito relevante papel desempenhado por Moscovo na rearrumação de forças mundial (relações com a China, Organização de Cooperação de Xangai, BRICS, etc.).
Manifestamente, Washington aposta na espiral de ódio e confrontação, de humilhação nacional e imposição arbitrária de sanções para acicatar sentimentos nacionalistas, promover as tendências de emergência do chauvinismo grão-russo, contando aprofundar as clivagens na sociedade e poder russos e exponenciar debilidades de toda a ordem. O curso da guerra na Ucrânia parece estar a demonstrá-lo.
Na presente encruzilhada decidem-se os contornos da ordem mundial de amanhã. A hegemonia dos últimos 30 anos do chamado Consenso de Washington debate-se com a roda da história, num combate feroz e tomado por uma crescente irracionalidade que urge travar. O imperialismo não poderá reverter o curso da história, mas a construção da ansiada nova ordem económica internacional é um processo não linear, sinuoso, com recuos e ziguezagues, parafraseando Lénine. Será, sobretudo, determinado pela dinâmica de emancipação dos povos e dos explorados no nosso século e há que contar com este elemento.
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(1) Sobre o tema ver, por exemplo, Ucrânia – retrato de um golpe de estado – Revanchismo neofascista e agenda imperialista.
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[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 28 de setembro de 2022]