Capital simbólico de Cuba

Frei Betto - 25 Feb 2016

O que há de original na lógica de desenvolvimento de Cuba é justamente seu capital simbólico fundado em valores espirituais, como o senso de liberdade e independência, de cooperação e solidariedade, que marca a história da ilha, da luta dos escravos à implantação do socialismo

 Cuba vive, atualmente, um momento histórico de grandes transformações. Sua lógica revolucionária de desenvolvimento, centrada nas necessidades e nos direitos da maioria da população, deixa de ser estatizante e se abre às parcerias público-privadas. A construção do porto de Mariel, o mais importante de todo o Caribe, descortina novas possibilidades ao desenvolvimento cubano.

 O setor de turismo, incrementado pela excelência dos serviços - como na área médica, e o alto nível educacional da mão de obra e a proteção ambiental -, se amplia como promissora estratégia de captação de divisas.

 O que há de original na lógica de desenvolvimento de Cuba é justamente seu capital simbólico fundado em valores espirituais, como o senso de liberdade e independência, de cooperação e solidariedade, que marca a história da ilha, da luta dos escravos à implantação do socialismo. Muitos, no exterior, ignoram o quanto essa ética revolucionária é arraigada no povo cubano e apostam que, em breve, Cuba será uma miniChina, politicamente socialista e economicamente capitalista.

 Ora, esse risco existiria se Cuba abandonasse o que possui de mais precioso: seu capital simbólico. O país não possui muitos bens materiais, e o pouco que possui tem sido repartido para assegurar a cada habitante seu direito à dignidade como ser humano.

 Porém, raras nações do mundo são ricas, como Cuba, em capital simbólico, encarnado em figuras como Felix Varela, José Martí, Ernesto Che Guevara, Raúl e Fidel Castro.

 Esse capital simbólico não resulta apenas da Revolução vitoriosa em 1959. A Revolução o potencializou. Mas ele é consequência de séculos de resistência do povo cubano aos dominadores espanhóis e estadunidenses. Resulta desse profundo senso de independência e soberania que caracteriza a cubaneidade, e marca a gloriosa história da ilha caribenha.

 Porém, não sejamos ingênuos. A corrupção não tem ideologia. Ela se imiscui na direita e na esquerda. É um vírus que penetra quando o revolucionário perde a sua imunidade ideológica. E isso ocorre quando ele se despersonaliza encantado pelas funções que ocupa na estrutura de poder. A função o torna mais importante que a pessoa, e esta tudo faz para não perdê-la, como um náufrago que se agarra ao tronco em meio à borrasca marítima.

 O corrupto não é apenas aquele que, em troca de propinas e vantagens, facilita interesses que não são os da coletividade. O corrupto é também aquele que se fecha em sua redoma de vidro, não admite críticas e, muito menos, ser removido de sua suposta posição de general para assumir o posto de simples soldado nas trincheiras do bem comum.

 O corrupto nasce da ambição desmedida, da vaidade exagerada, do autoconvencimento de que se é intocável e insubstituível, e se ampara na certeza de impunidade. E todo corruptor tem suficiente faro para captar, à distância, o cheiro direitoso do corrupto.

 Ora, se a Revolução Cubana tem o propósito de perdurar como “sol do mundo moral”, na feliz expressão de Luz y Caballero que intitula a clássica obra de Cíntio Vitier sobre a eticidade cubana, e se o desafio é aprimorar o socialismo, a questão ética se torna central nos processos de educação ideológica.

 Cada cubano deve se perguntar por que Martí, que viveu quase quinze anos nos EUA, não vendeu a sua alma ao imperialismo ascendente. Por que Fidel e Raúl, filhos de latifundiário, educados nos melhores colégios da alta burguesia cubana, não venderam suas almas ao inimigo? Por que Che Guevara, médico formado na Argentina, revolucionário consagrado em Cuba, ministro de Estado e presidente do Banco Central, ousou franciscanamente abandonar todas as honras políticas e facilidades inerentes ao exercício de suas funções no poder para meter-se anonimamente nas selvas do Congo e da Bolívia, onde a morte o encontrou em estado de completa penúria?

 Eis a resposta: o sentido. A vida de cada ser humano se define pelo sentido que imprime a ela. E este sentido só se transforma em capital simbólico quando está enraizado na ética. Como me disse Fidel, “um revolucionário pode perder tudo, até a vida, menos a moral.”

 O capitalismo, com a sua poderosa máquina publicitária, quer que a humanidade tenha como sentido o ter, e não o ser. Quer formar consumistas e não cidadãos e cidadãs. Quer uma nação de indivíduos, e não uma comunidade nacional de companheiros e companheiras.

 O socialismo ruma na direção contrária. Nele, o pessoal e o social são faces da mesma moeda. Cada ser humano, independentemente de sua saúde, ocupação, cor da pele, condição social, é dotado de ontológica dignidade e, como tal, tem direito à felicidade.

 Esta a ética a ser cultivada para que Cuba, no futuro, não venha a ser uma nação esquizofrênica, como política socialista e economia capitalista. O socialismo de uma nação não se mede pelos discursos de seus governantes. Nem pela ideologia do partido no poder. O socialismo de uma nação se mede pela amplitude democrática de seu sistema político, efetivamente emanado do povo e, sobretudo, de sua economia, de modo que todos, cidadãos e cidadãs, tenham iguais direitos de compartilhar os frutos da natureza e do trabalho humano. Por isso considero o socialismo o nome político do amor.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro ‘Correio da Cidadania’, do 24 de febreiro de 2016]