Banca: Os trabalhadores e os povos não se podem dar ao luxo de pagar os bancos que não gerem

Miguel Tiago - 22 Mar 2023

A situação que a banca mundial atravessa não é preocupante para os banqueiros, é preocupante para os povos, para os trabalhadores, porque trata-se de chamar os Estados a pagar as dívidas dos banqueiros

 No dia 8 de março de 2023, a Moody’s – uma das principais agências de notação financeira do mundo – atribuía uma notação de nível de investimento Aaa ao Silicon Valley Bank, oito níveis acima da notação que a mesma agência dava à dívida pública da República Portuguesa na mesma data. Quarenta e oito horas depois, o Tesouro, a Reserva Federal o Fundo de Garantia de Depósitos norte-americanos declaravam a falência e tomavam controlo do banco.

 A segunda maior falência bancária, só superada pela falência, em 2008, do Washington Mutual que sucumbiu à crise do sub-prime, foi acompanhada de dois outros colapsos: o Signature Bank e o Silvergate Bank. Em poucas horas, duas instituições bancárias de dimensão muito significativa foram pulverizadas e uma, o Silvergate, mais pequena, acompanhou esse movimento. O que todas têm em comum são as ligações aos mundos do capital de risco e dos chamados criptoactivos, ou seja, estavam na crista da onda das mais modernas formas de especulação.

 Os fenómenos por detrás da quebra destes bancos não se distinguem substantivamente dos que geram a falência de instituições bancárias por todo o mundo: a canalização de todos os seus recursos para as mãos de um reduzido conjunto de grupos económicos que, através principalmente de créditos, mas não só, conseguem desviar recursos de dentro das instituições, mobilizando-os para as suas aventuras próprias e para a acumulação e especulação. Ao longo dos meses de crise criada pela pandemia, essa acumulação atingiu níveis sem precedentes, tendo uma boa parte ficado nas mãos dos multimilionários que, a um ritmo de 1 por cada 30 horas, ascendia à condição de bilionário. Para satisfazer essa acumulação de capital sob a forma de moeda, muita moeda foi criada no sistema financeiro e desviada para esses grupos e bilionários. A banca foi o pipeline que forneceu os bilionários com os recursos monetários que eram criados a um ritmo nunca antes visto.

 O Silicon Valley Bank (SVB), por exemplo, teve um resultado positivo de 7 mil milhões de euros em 2022. Atingiu 1.5 mil milhões de lucro líquido correspondentes a 2022 e, poucas semanas depois colapsou. Isso expõe com particular crueza a forma como a banca privada funciona no sistema capitalista: a banca já não tem sequer o interesse em manter a sua solvabilidade ou liquidez, mas apenas o desígnio fundamental de angariar capital para o distribuir como bem entender e depois acorrer a solicitar os recursos públicos para colmatar os compromissos que deixa de poder cumprir.

 Apesar de nenhuma das referidas instituições ser considerada com dimensão capaz de afectar sistemicamente o sistema financeiro norte-americano e de uma grande parte dos responsáveis políticos dos EUA e UE acorrerem a explicar que a banca nunca conheceu melhores dias e que todos os impactos das falências do SVB estão contidos e são localizados, um dos maiores bancos do continente europeu (com um activo total de 531 mil milhões de euros, maior  do que os bancos que actuam em Portugal todos juntos), o Credit Suisse esteve em situação de pré-colapso durante todo o dia 15 de Março. Os accionistas e parceiros do banco recusaram-se a comprometer mais capital para garantir a solvabilidade do banco e foi o Banco Nacional da Suíça, o Banco Central, quem disponibilizou 50 mil milhões de euros para viabilizar o gigante financeiro. Muitas outras instituições negociaram as suas acções em perda, especialmente no espaço europeu, por efeito de contágio. O STOXX 600 (índice compósito de valor de 600 instituições financeiras europeias de referência) sofreu uma perda de 5% em 48 horas, perda que só abrandou por força do empréstimo estatal ao Credit Suisse.

 As acções do Credit Suisse caíram 30% após o anúncio do pedido de empréstimo de 54 mil milhões de dólares ao banco central da Suíça, despertando receios de alastramento à Europa da crise bancária iniciada nos EUA.

 O que vemos são os bancos a sentir os impactos conjugados de diversas opções políticas: subida das taxas de juro, emissão de dívida e de moeda, subida dos juros das dívidas soberanas e bolhas especulativas em cripto ou em activos reais, como imobiliários. Não se pode dizer que estes impactos sejam indesejados na banca porque, em última análise, na actual situação quem os pagará até ao último centavo – como infelizmente tem acontecido - serão os trabalhadores de todos os países. Aquilo que vemos neste momento é um sistema financeiro que deveria estar ao serviço das populações e das economias totalmente capturado pelos interesses dos monopólios globais, ao serviço de um cada vez mais reduzido grupo de verdadeiros oligarcas que, sendo donos dos bancos, ou beneficiários dos seus créditos, os assaltam nas barbas de todos os reguladores e supervisores pelo simples motivo de que o podem fazer.

 Enquanto a quem vive do seu trabalho se exige que trabalhe mais para receber menos, aos grandes accionistas e beneficiários dos bancos são entregues os frutos do trabalho confiados aos Estados com o pretexto do carácter sistémico das instituições financeiras. No caso do SVB, tampouco se poderia invocar esse carácter, porque não estava listado como instituição sistémica no quadro do supervisor norte-americano, mas isso não impediu que o Estado, com o dinheiro de trabalhadores estadunidenses e dos que por todo o mundo pilha, de assegurar o pagamento dos depósitos dos magnatas de Silicon Valley, remunerando depósitos cujo valor médio rondava os 5 milhões de dólares muito acima do limite máximo de resgate de 250 mil dólares. Também aqui, as administrações estatais ao serviço do capitalismo não deixam de cumprir o seu papel: os ricos que investiam em negócios assentes em especulação não perderam o dinheiro que haviam depositado no banco da especulação.

 A situação que a banca mundial atravessa não é preocupante para os banqueiros, é preocupante para os povos, para os trabalhadores, porque trata-se de chamar os Estados a pagar as dívidas dos banqueiros usando os recursos dos depositantes.  Os trabalhadores e os povos são, pois, extorquidos e expropriados das mais diversas formas:  seja na exploração laboral, seja nos custos dos depósitos, seja no desvio dos depósitos para negócios a que são alheios, seja ainda no pagamento dos resgates pelos Estados, fazendo uso dos  impostos pagos pela esmagadora maioria da população. Em cada um destes ciclos de exploração existe um acrescento ao anterior, assegurando que, de todo o resultado salarial, apenas sobra o estritamente necessário para sobreviver, enquanto toda a riqueza gerada vai pingando para os especuladores, usando o Estado como cobrador de impostos e a banca como colector e distribuidor.

 O alastramento de situações de instabilidade no pagamento de compromissos financeiros, por contágio ou por aumento das taxas de juro e desvalorização dos activos dos bancos, pode criar novos epicentros de crise financeira que se podem combinar com uma crise económica de escala continental, criando as condições para o aumento da agressividade do imperialismo norte-americano e de quem a eles na Europa se lhe submete e contribuirá certamente para os novos ciclos de «austeridade», de espoliação e de concentração da propriedade privada, produtiva e não produtiva. Aquilo a que chamam «instabilidade», no capitalismo, é o seu estado natural. Enquanto avaliamos a situação dos bancos falidos de dia 13 e do Credit Suisse, já se acrescenta o First Republic à lista dos próximos a cair, enquanto luta para obter 30 mil milhões de euros para se manter à tona.

 Esta prática não é, como sempre gostam de nos fazer querer, um exclusivo deste ou daquele banco, deste ou daquele banqueiro. Antes é característica genética do capitalismo, faz parte do seu funcionamento e está impressa na sua natureza. Por um lado, porque é impossível assegurar um sistema de supervisão capaz de actuar preventivamente, restando uma actuação reactiva; por outro, porque a supervisão, bancos centrais, auditoras, agências de notação, são apenas parte do engenho de extorsão que é hoje o sistema financeiro à escala do mundo capitalista. Tal constatação não pode deixar de colocar na ordem do dia a necessidade de lutar pela superação do capitalismo e pelo socialismo, em suma por uma sociedade que tenha como objectivo fundamental a distribuição da riqueza produzida por entre os que a produzem, onde se inclui a gestão da moeda e do crédito em função das necessidades da população. Mas esse caminho não dispensa que se actue já, na realidade concreta em que vivemos, pelo que é urgente reclamar o controlo público do sistema financeiro.

 Os cinco principais bancos nacionais acabam de lucrar, em 2022, 2 553 milhões de euros. 1 710 milhões de euros se apenas contarmos os quatro maiores bancos privados. Mas essa extracção de valor por parte dos accionistas não deve descansar-nos, antes mobilizar-nos para exigir que a banca deixe de ser um sorvedouro de riqueza que precisa que seja colocada ao serviço do país. Não se pode também colocar de parte o efeito de desvalorização do stock da dívida pública contida na banca (mais de 20% do activo da banca assenta em títulos da dívida) provocado pelo aumento dos juros da dívida e o pretexto que pode daí advir para novas benesses, novas borlas fiscais ou novos resgates do sector financeiro. Não se pode colocar de parte a possibilidade quase certa de que, com governos como o do PS (seguramente acompanhado por PSD, CDS, Chega e IL), recairão sobre os trabalhadores os custos de todas a perdas da especulação e corrupção que graça no sistema financeiro.

 A moeda e o crédito são demasiado importantes para serem deixados nas mãos da gestão e propriedade privada e, não importa quantas voltas o mundo dá, de quantas máscaras o capitalismo se vista, sabemos que a estabilidade do sistema financeiro privado será sempre uma miragem, uma espécie de ilusão para as massas, para fingir que a volatilidade dos mercados capitalistas não afecta o coração desses mercados: a banca.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Abril Abril, do 20 de marzo de 2023]