As verdadeiras cores do FMI

Prabhat Patnaik - 07 Abr 2021

A insistência na austeridade da parte do FMI mostra duas coisas: primeiro, que ele discrimina claramente entre países, contra os pobres pois distintos dos ricos. Ele pode estar disposto a evitar medidas de austeridade para os países ricos, mas nunca para os subdesenvolvidos. Em segundo lugar, por mais "razoável" que pareça ocasionalmente, pressiona invariavelmente em todas as ocasiões a mesma agenda, de austeridade e privatização, em relação aos países do terceiro mundo

 A crise do Covid-19 provocou uma resposta muito diferenciada entre os países avançados e os países do terceiro mundo. Os primeiros desenvolveram pacotes orçamentais significativos para salvamento e recuperação, ao passo que os segundos ficaram presos à austeridade orçamental. Entre os países do terceiro mundo, o pacote orçamental da Índia talvez tenha sido o mais mesquinho, ascendendo a não mais de um por cento do PIB; mas mesmo outros países do terceiro mundo não se têm saído muito melhor. Em contraste, os EUA sob Trump desenvolveram um pacote de resgate de US$2 milhões de milhões (trillion), o que representa 10% do seu PIB; e Biden anunciou um pacote adicional de US$1,9 milhões de milhões, dos quais pelo menos um milhão de milhões de dólares é transferência orçamental directa para o povo. No seu conjunto, estes dois pacotes atingem cerca de 20% do PIB dos EUA (embora repartidos por mais de um ano). A União Europeia também desenvolveu pacotes orçamentais significativos para o salvamento e recuperação da pandemia.

 O que é digno de nota é que o Fundo Monetário Internacional tem encorajado e apoiado activamente tais pacotes, afastando-se da sua insistência habitual sobre austeridade orçamental. Em relação aos países do terceiro mundo o FMI também se exprimiu a favor de despesas públicas mais amplas no contexto da pandemia. Mas, segundo uma análise da Oxfam, enquanto concedia empréstimos a países do terceiro mundo durante a pandemia, o FMI retractou-se destas piedosas palavras e mais uma vez impôs austeridade orçamental a estes países!

 A análise da Oxfam descobriu que dos 91 empréstimos negociados pelo FMI com 81 países após Março de 2020, 76 encorajam ou exigiam medidas de austeridade. Tais medidas incluíam cortes nas despesas públicas que implicavam níveis reduzidos de despesa com cuidados de saúde pública e pagamentos de pensões. Eles envolviam congelamentos salariais ou cortes salariais que reduziriam os rendimentos de médicos, enfermeiros e outros trabalhadores em instalações públicas de saúde, bem como cortes em benefícios de desemprego e pagamentos por doença.

 A Oxfam dá um certo número de exemplos específicos. No caso do Equador, o FMI recentemente acordou um empréstimo de US$6,5 mil milhões, mas a condição foi o seu "conselho" ao Equador para cortar as despesas de saúde, cortar subsídios do combustível de que as pessoas pobres dependem fortemente, e para parar as transferências de dinheiro para as pessoas que não conseguem encontrar trabalho. Nove países, os quais incluem Angola e a Nigéria, foram convidados a aumentar ou introduzir impostos de valor acrescentado que oneram fortemente os pobres, uma vez que se aplicam a alimentos, vestuário e artigos domésticos. Em 14 países que incluem Barbados, El Salvador, Lesoto e Tunísia, é provável que haja cortes ou congelamentos nos salários e empregos do sector público. Tais cortes significariam menos médicos, enfermeiros e trabalhadores da saúde do governo, e isso também em países que já têm um número extremamente reduzido desse pessoal por habitante.

 Esta insistência na austeridade da parte do FMI mostra duas coisas: primeiro, que ele discrimina claramente entre países, contra os pobres pois distintos dos ricos. Ele pode estar disposto a evitar medidas de austeridade para os países ricos, mas nunca para os subdesenvolvidos. Em segundo lugar, independentemente do que declare, por mais "razoável" que pareça ocasionalmente, pressiona invariavelmente em todas as ocasiões a mesma agenda, de austeridade e privatização, em relação aos países do terceiro mundo. Os seus ocasionais pronunciamentos "sensatos", que contrariam a lógica das suas "condicionalidades", encorajam economistas progressistas a abrigar a crença de que o FMI pode estar a mudar e a tornar-se mais humano. Mas estes pronunciamentos, muitas vezes sob a forma de artigos de investigação do seu pessoal publicados na sua revista, são apenas uma fachada por trás da qual o FMI continua a fazer o que sempre fez.

 Outro exemplo de tal duplicidade é quando ele mostra alguma apreciação da necessidade de impor controles de capitais em países do terceiro mudo, o que fez muitos economistas progressistas sentirem que afinal de contas o FMI estava a mudar. Mas no seu comportamento real não houve a mais mínima mudança; a sua insistência em manter as economias do mundo abertas a fluxos livres de capitais, incluindo o financeiro, nunca esmoreceu. Não se pode deixar de concluir que a sua simpatia por opiniões contrárias às suas "condicionalidades", é apenas um artifício de relações públicas por parte do FMI a fim de adquirir maior credibilidade entre economistas progressistas.

 Aqui levanta-se inevitavelmente uma apreensão. As posições divergentes adoptadas pelo FMI face aos países avançados e aos subdesenvolvidos no contexto da pandemia, podem muito bem ser transportadas para além da pandemia, para constituir a base de um novo regime internacional que facilitaria às metrópoles uma recuperação da crise económica desencadeada pelo capitalismo neoliberal. Este regime implicaria um estímulo orçamental empreendido pelos governos dos países avançados para a recuperação das suas respectivas economias da crise; mas para os países do terceiro mundo haveria uma austeridade continuada, de modo a que continuassem a ser afectados pelo desemprego maciço e pela compressão dos rendimentos, o que também tem a "vantagem" de assegurar que a recuperação nos países avançados não seja constrangida pelo aparecimento da inflação.

 Por outras palavras, esta estratégia implicaria um cordão de isolamento entre os países avançados e as economias do terceiro mundo. Isto seria feito através de protecção, como o que Trump havia introduzido nos EUA, mas agora generalizada ao mundo capitalista avançado como um todo, juntamente com um estímulo orçamental cujos efeitos são mantidos confinados às economias domésticas dos países avançados. Por outras palavras, os rendimentos nos países avançados irão aumentar, enquanto os rendimentos nos países do terceiro mundo permanecerão comprimidos através da austeridade orçamental e da falta de acesso aos mercados metropolitanos.

 Uma vez que os preços de todo um conjunto de commodities primárias produzidas no terceiro mundo estão ligados aos rendimentos das pessoas que determinam a procura local de tais commodities, a compressão dos rendimentos no terceiro mundo também assegurará uma compressão da procura a qual libertará tais commodities para as necessidades da metrópole a preços não acrescidos.

 Sob o capitalismo neoliberal houve uma difusão de actividades da metrópole para o terceiro mundo, especialmente para os países asiáticos, mas não só para eles, a qual havia "des-segmentado" a economia mundial. A estratégia que se apreende pode agora ser posta em prática, na qual espécie de política que o FMI está a seguir talvez seja um precursor, o que significará uma "re-segmentação" da economia mundial, com as oligarquias corporativas-financeiras dos países avançados de um lado, fazendo algum "controlo de danos" ao estimular uma recuperação na metrópole que reduz o desemprego e a angústia entre trabalhadores metropolitanos, e os trabalhadores do terceiro mundo do outro lado, com estagnação e recessão contínuas nas economias do terceiro mundo. A grande burguesia nestas últimas economias encontrará muito espaço para se enriquecer, chegando mesmo a investir nas economias metropolitanas.

 Isto significaria uma reconstituição do cenário colonial. Sob o capitalismo neoliberal tal como existia até agora, embora os trabalhadores do terceiro mundo tivessem testemunhado um aumento da pobreza nutricional, tinha havido pelo menos uma deslocalização de actividades da metrópole para o terceiro mundo – a era de tal deslocalização pode muito bem estar a chegar ao fim. E a hostilidade dos EUA à China poderia muito bem fornecer uma cobertura para a adopção de políticas, tanto nos EUA como alhures nas metrópoles, para desencorajar tal deslocalização.

 Os economistas progressistas do Ocidente irão sem dúvida desmascarar tal discriminação flagrante e levantar a sua voz contra ela, mas se ela persistir, então os países do terceiro mundo serão forçados a desvincular-se de uma ordem global tão flagrantemente discriminatória e a encontrar estímulos alternativos para o seu crescimento.

 A ordem global sempre foi discriminatória contra os trabalhadores do terceiro mundo, mas anteriormente isto era camuflado pela experiência do alto crescimento do PIB que a deslocalização das actividades da metrópole havia tornado possível. Mas se tal deslocalização for impedida por uma discriminação flagrante, então haverá inevitavelmente um recrudescimento da resistência do terceiro mundo.

 O sonho da harmonia entre nações, de modo a que as nações ricas ajudem as pobres a recuperar e prosperar, que é entretido por muitos economistas progressistas, é nobre. Mas infelizmente é incapaz de ser realizado dentro da ordem capitalista. A duplicidade de padrões do FMI no contexto da pandemia, que pode muito bem ir além da pandemia, serve apenas para sublinhar este ponto.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 8 de abril de 2021]