América Latina, a luta continua

Luís Carapinha - 04 Xul 2019

A ofensiva oligárquica na América Latina não fez esmorecer a luta popular. Aliás, por muito que persiga os seus créditos, a tese geral capitulacionista do «fim de ciclo» para as forças progressistas acaba por se chocar com a realidade. Em situações diferenciadas, a resistência de Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua aí estão para o comprovar

 Contrariando a onda reaccionária, no México tomou as rédeas o governo mais à esquerda em muitas décadas. Ninguém nega, é certo, os efeitos profundamente adversos da alteração da correlação de forças no subcontinente nos anos mais recentes, após um período de enormes avanços democráticos e libertadores que conduziram a um nível sem precedentes a cooperação latino-americana e caribenha, moldada nas dinâmicas da ALBA, UNASUL e CELAC.

 Foi reagindo ao desafio anti-imperialista que o então secretário de Estado dos EUA, Kerry, proclamou, em 2015, o fim da Doutrina Monroe ou que uns anos antes a OEA revogou, simbolicamente, a resolução de 1962 que expulsou Cuba. Mas o grande capital nunca cessou as hostilidades para reverter o avanço progressista. Inebriado com a viragem à direita na Argentina, a vitória presidencial ainda mais à direita na Colômbia e o sucesso angular do golpe de estado fascistóide no Brasil que transportou Bolsonaro ao Planalto, Washington foi célere em voltar a puxar os galões à famigerada doutrina de estado que secularmente sustentou a sua hegemonia sobre a extensa região, tratada como pátio das traseiras.

 E, acto contínuo, a administração Trump desatou os demónios da cruzada ideológica contra a designada troika da tirania, englobando Cuba, Venezuela e Nicarágua.

 Desde então, a ingerência e pressões da potência imperialista dominante incrementaram-se a um ritmo desenfreado. O governo sandinista de Manágua enfrentou no ano passado uma inaudita onda de violência orquestrada. O golpe foi derrotado com grande mobilização das bases populares. Em resposta à eleição da Assembleia Nacional Constituinte na Venezuela, os EUA instituíram em 2017 o Grupo de Lima, colocando a reboque os governos satélite da região. Com o fantoche Almagro no posto de comando, a OEA reassumiu o papel de ministério das colónias.

 O cerco e guerra não convencional à Venezuela prosseguiu com o boicote às presidenciais de Maio de 2018, o atentado frustrado contra Maduro e o alto-comando das forças armadas no verão passado e o recrudescimento das sanções e bloqueio económico e financeiro, culminando com a farsa da autoproclamação de Guaidó e a intentona golpista de 30 de Abril.

 Multiplicaram-se as pressões e ameaças contra Cuba socialista. Ao fim de quase 60 anos do início do infame bloqueio à ilha da liberdade, a Casa Branca procura ampliar o seu escopo afrontoso do direito internacional e da esmagadora vontade dos países da ONU, com a aplicação do capítulo III da Lei Helms-Burton.

Efeitos calamitosos da restauração neoliberal

 A restauração neoliberal não se repercutiu apenas no quadro geral da correlação de forças. Nos países em que as forças do arco reaccionário retomaram o poder político, os seus efeitos revelam-se calamitosos. Será elevado o preço a pagar pelos trabalhadores e os povos para retomar a senda da afirmação da soberania nacional e do progresso social, em alguns casos, para recuperar direitos democráticos degradados e sob crescente ameaça, face à ferocidade do ajuste de contas das classes dominantes e do imperialismo.

 Veja-se, por exemplo, a profundidade e violência da recuperação neoliberal na Argentina, o regresso em força dos dogmas do consenso de Washington, dos fundos abutre e endividamento externo, fazendo tábua rasa da política de reestruturação da dívida e viragem para a integração latino-americana imposta durante o kirchnerismo. Com a situação económica em constante degradação e a moeda nacional em queda livre, o FMI veio em socorro do governo de Macri, concedendo o maior empréstimo da sua história. A contestação social no país dos Pampas é muito ampla, e não é certa a reeleição de Macri nas presidenciais de Outubro, apesar do processo judicial movido contra a ex-presidente Cristina Kirchner, agora candidata a vice-presidente.

 Ou a situação na Colômbia, em que o governo uribista de extrema-direita de Duque e o estado profundo narco-militar acentuaram as políticas de concentração da riqueza e agravaram a repressão que se salda em muitas centenas de dirigentes sociais assassinados nos últimos anos, a que se juntam mais de uma centena de ex-combatentes, desmobilizados, das FARC. Com o histórico acordo de Paz de Havana preso por um fio, Bogotá continua embrenhada até ao tutano na operação de desestabilização da vizinha Venezuela.

 Refira-se, ainda, o exemplo, também esquecido pela comunicação social dominante, das Honduras, sede do primeiro golpe de estado com sucesso no âmbito da contra-ofensiva imperialista (levando à expulsão do presidente Zelaya e à retirada de Tegucigalpa da ALBA). Hoje reconvertida em paraíso da exploração capitalista, lugar de pobreza massiva de onde partem colunas de emigrantes em busca do futuro. Mas também, sobretudo, palco de um amplo movimento de protesto popular exigindo a renúncia do presidente inconstitucional Juan Hernández, apesar da forte repressão.

 Muitos exemplos similares poderiam ser acrescentados.

 Em campos diametralmente opostos, a evolução da situação em dois países afigura-se de crucial importância no plano continental: Brasil e Venezuela.

Situação grave e perigosa no Brasil

 O gigante sul-americano enfrenta a mais grave e perigosa crise desde a instauração da ditadura militar, em 1964. O governo de extrema-direita de Bolsonaro é sinónimo do poder cruzado da grande burguesia e dos sectores mais retrógrados da sociedade brasileira. Nasce do afã e caudal revanchistas que confluem no ominoso processo golpista que destitui a presidente constitucional Dilma Rousseff, digno de figurar nos manuais da perversão.

 Tomando como pretexto e veículo a operação Lava Jato e a instrumentalização da justiça, a trama golpista culmina com a prisão de Lula e impedimento da sua candidatura – de longe a favorita – às presidenciais de 2018, e a eleição de Bolsonaro, cenário quase inimaginável apenas uns meses antes. É isto que as «revelações» da Vaza Jato vêm comprovar. Ou seja, aquilo que no fundamental já se sabia, expondo os vários elos da cadeia abjecta do golpe de estado e a teia de cumplicidades envolvendo as diversas instâncias do sistema judicial, os poderosos interesses económicos e corporativos instalados nos partidos políticos sistémicos e as agências do imperialismo.

 As «estarrecedoras revelações», nas palavras da defesa de Lula, reforçam as suspeitas em torno das circunstâncias da morte do juiz do Supremo Tribunal, Zavascki, confirmando que o relator da Lava Jato se tornara um entrave à conspiração em marcha. Desvela elementos suplementares que apontam para as obscuras ligações do juiz inquisidor-mor e actual ministro da Justiça ao Departamento de Justiça dos EUA, FBI e CIA. Perante as denúncias do The Intercept, é patente o nervosismo de Moro e do executivo de Bolsonaro, pretendendo descredibilizar a informação revelada e criminalizar a investigação jornalística.

 Os primeiros seis meses de Bolsonaro colocam a nu a existência de sérias fissuras na equipa governativa, levando já à demissão de vários ministros. Enquanto o ‘mito’ Bolsonaro se desvanece, no meio da atmosfera inquinada de intrigas e guerras intestinas envolvendo o Planalto e os partidos que dão corpo à maioria no Congresso, o Brasil continua a afundar-se na recessão e crise social, com o desemprego a aproximar-se dos 14 milhões e a precariedade a atingir muitos mais.

 A luta contra a gravosa reforma da Previdência Social e a greve geral de 14 de Junho, com a participação estimada de 45 milhões de trabalhadores, mostram a determinação popular em resistir ao assalto reaccionário. Mobilização social que será fundamental ampliar e reforçar, impedindo a concretização da agenda antidemocrática em curso e a possibilidade, não subestimável, de mais graves retrocessos.

 O golpe de estado no Brasil foi um dos factores relevantes que permitiu a intensificação da campanha que há 20 anos persegue o objectivo de destruir o processo bolivariano na Venezuela.

Ofensiva e resistência na Venezuela

 Após o fracasso da vaga de violência de 2017, os EUA prepararam o terreno, visando declarar a ilegitimidade do governo constitucional de Nicolás Maduro, reeleito em 2018. A ingerência golpista ascendeu a um novo patamar com a autoproclamação, em Janeiro, de Guaidó e a tentativa de conformar um poder paralelo. Ao fim de meses de uma campanha política e mediática infernal, acompanhada por uma escalada sem precedentes da guerra económica – recorde-se que pela primeira vez os EUA aplicaram inclusive um boicote às compras de crude venezuelano – todos os intentos e operações desestabilizadoras fracassaram estrepitosamente – da operação de «ajuda humanitária» de 23 de Fevereiro à miserável intentona de 30 de Abril.

 Esta é a verdade amarga com que Trump e os falcões do imperialismo norte-americano têm que lidar. Que faz corar de vergonha todos aqueles, como Santos Silva e o governo do PS, que se apressaram a alinhar na impostura de reconhecimento de Guaidó e no roubo dos fundos soberanos venezuelanos, como é o caso do Novo Banco.

 Perante o assédio permanente, a Venezuela tem contado com a substancial solidariedade e apoio internacionais, em particular de Cuba, China e Rússia. Sublinhe-se a extraordinária capacidade de mobilização popular, o fortalecimento da união cívico-militar e a manutenção da postura de unidade das forças armadas bolivarianas, mostrando que o legado de Chávez permanece bem vivo, apesar dos graves efeitos da crise económica e social, resultante, em primeiro lugar, da guerra económica imposta à Venezuela.

 O imperialismo não vai desistir dos propósitos de derrotar a revolução bolivariana e voltar a apoderar-se das vastíssimas riquezas naturais do país. Na Venezuela trava-se um combate decisivo para o destino próximo do subcontinente. A bravura do povo que ofereceu um contributo decisivo para a saga da conquista da independência há 200 anos é a garantia de que a chama da libertação e emancipação permanecem vivas e de que a luta dos povos conseguirá um dia lacrar, definitivamente, as veias abertas da América Latina.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Avante, do 27 de xuño de 2019]