Agressão à Jugoslávia, 1999: afirmação do poder planetário dos EUA

Gustavo Carneiro - 29 Mar 2019

A agressão à Jugoslávia iniciou-se muito antes de começarem a cair as bombas sobre Belgrado. Desde o início da década de 90 que a Alemanha, os EUA e outras potências ocidentais se empenhavam a fundo nas guerras que dilaceravam a federação socialista construída na luta contra o nazi-fascismo

 A agressão da NATO à Jugoslávia, no final do século XX, é exemplar por muito motivos, desde logo porque inaugurou, juntamente com a Guerra do Golfo, o «mundo unipolar» pós-«Guerra Fria», desenhando-o a fogo e a sangue. Mas também porque foi aí que muitas das estratégias hoje recorrentes na acção do imperialismo contra os povos – na Venezuela, Síria, Líbia, Iraque ou Afeganistão – foram aplicadas pela primeira vez, pelo menos de forma cabal.

 Nos Balcãs, como nos restantes exemplos, a agressão militar (aberta ou encapotada) enquadrou-se num plano mais largo de ingerência, chantagem, desestabilização interna, bloqueio económico, pressão diplomática, instrumentalização de organizações internacionais e provocação. Também aí o papel das campanhas de sistemática manipulação e mentira dos grandes meios de comunicação social – dominados pelo imperialismo e, como tal, ao seu serviço – jogaram um papel de primeiro plano na «justificação» da guerra com a «defesa dos direitos humanos», como a seguir faria com a «luta contra o terrorismo» ou a «protecção contra armas de destruição massiva». No livro Princípios Elementares da Propaganda de Guerra (publicado em português pelas Edições Avante!), Anne Morelli denuncia o papel dos media na promoção da guerra e apresenta precisamente a Jugoslávia como caso exemplar.

 Tal como sucede hoje na Venezuela, a agressão à Jugoslávia foi «justificada» com pretextos «humanitários». Quanto aos bombardeamentos da NATO, diziam-nos, eram «cirúrgicos». A verdade, porém, é que ao longo de 78 dias de ataques aéreos (de 24 de Março a 10 de Junho), quatro mil pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas; bairros residenciais, vias de comunicação e equipamentos sociais, como escolas e hospitais, foram destruídos, assim como o edifício da televisão estatal jugoslava e a embaixada chinesa.

Massacres silenciosos

 A mortandade, porém, prosseguiu para lá do calar das armas. Muitos sérvios, montenegrinos e kosovares adoeceram com patologias do foro oncológico graças à utilização em larga escala, pelas forças da NATO, de munições com urânio empobrecido, cujos efeitos no ambiente – e, por acréscimo, na saúde das populações – se poderão fazer sentir por séculos (AAVV, Armas de Urânio – Destruição sem Regresso, Edições Avante!, 2001).

 Mas o urânio empobrecido – utilizado não só na Jugoslávia, mas também no Iraque, no Afeganistão e na Líbia – vitimou igualmente efectivos das forças dos EUA e da NATO (idem, ibidem; Bob Nichols, 11,000 US soldiers dead from DU poisoning, Global Research, 25.02.2005). Os resultados da autópsia ao soldado português Hugo Paulino, falecido em 2000 depois de servir nos Balcãs, sustentam a hipótese de relação entre a morte e a contaminação radioactiva (Público, 5.1.2001). As autoridades portugueses, muito embora nunca tenham admitido formalmente qualquer ligação, acabaram por indemnizar a família admitindo que o falecimento do militar resultou de uma «doença adquirida em serviço» (Avante!, 5.8.2004).

Verdades e narrativas

 Reza a história oficial que foi a recusa do presidente Slobodan Milosevic em assinar o célebre Acordo de Rambouillet que fechou a porta a qualquer saída política e diplomática para o conflito que opunha as autoridades jugoslavas aos terroristas do Exército de Libertação do Kosovo (UÇK), tornando assim «inevitável» a opção militar. Na verdade, o que as autoridades jugoslavas não aceitaram foi o famigerado Anexo B do acordo, que não constou das negociações nem foi colocado à discussão.

 O seu articulado era propositadamente inaceitável, pois a intenção norte-americana não era negociar, mas atacar militarmente a República Federal da Jugoslávia. Isso mesmo reconheceu o próprio Henry Kissinger, sinistro Secretário de Estado de Nixon: «O documento de Rambouillet estava formulado de tal maneira que nenhum sérvio podia aceitá-lo» (Daily Telegraph, 27.06.99).

 À semelhança do que hoje acontece relativamente à Venezuela, a narrativa em torno do Kosovo foi desde o início apresentada de forma tendenciosa e truncada pelo imperialismo e os media ao seu serviço. O «massacre» de Racak, que constituiu a gota de água para a intervenção da NATO, não existiu, como confirmou a coordenadora da autópsia às vítimas, Helena Ranta, e o general alemão Heinz Loquai (ver Armas de Urânio…). Também as «contas» às baixas do conflito eram apresentadas de forma unilateral e consideravelmente exageradas, sempre numa perspectiva anti-jugoslava.

 O jornal britânico The Guardian, por exemplo, muito embora nunca tenha abandonado a linha pró-intervencionista, reconheceu por mais de uma vez essas dissonâncias. O próprio Tribunal Internacional Penal para a Ex-Jugoslávia, criação do imperialismo para impor a sua «justiça», acabou por ilibar postumamente das acusações de «crimes contra a Humanidade»- o antigo presidente jugoslavo Slobodan Milosevic, que acabaria por morrer nas prisão do TPIJ lentamente assassinado (Avante!, 18.1.18).

 O UÇK assumiu nesse cenário o papel que os «rebeldes» sírios ou a «oposição democrática» venezuelana desempenhariam mais tarde. «Limpo» da sua verdadeira natureza terrorista e fascista, foi apresentado à opinião pública mundial como exército libertador. É ainda o The Guardian (14.12.2010) a denunciar que no seu currículo se contam, para além de terrorismo contra populações civis, crimes como tráfico de órgãos humanos, envolvendo o próprio Hashim Thaçi, chefe do movimento e actual «presidente» do Kosovo. Tal como os seus congéneres de outras latitudes, também o UÇK foi armado, treinado e financiado a partir do exterior (Avante!, 27.05.1999).

Objectivos políticos, económicos e geo-estratégicos

 Com o fim da União Soviética e do campo socialista na Europa, os EUA pretendiam afirmar-se perante o mundo como única e incontestada «superpotência» (Gerard Baudson, The New World Order and Yugoslavia, 1996). O desmembramento da Jugoslávia foi, desde o início, o principal objectivo do imperialismo para a região, de modo a incluir uns fragilizados Balcãs na sua zona de influência, alargada até às fronteiras da Rússia.

 À distância de duas décadas, isto é claramente visível: a maioria dos países que resultaram da fragmentação da Jugoslávia integram hoje a NATO e a União Europeia e muitos deles acolhem no seu território bases e instalações militares norte-americanas. A base Bondsteel, no Kosovo, é uma das maiores entre as centenas que os EUA possuem fora do seu território.

 A agressão à República Federal da Jugoslávia deu cobertura a uma operação de grande fôlego que há muito se preparava: a revisão do conceito estratégico da NATO num sentido abertamente agressivo e global, consumada no início de Abril desse ano de 1999 numa cimeira em Washington.

 Reveladora dos propósitos geo-estratégicos da guerra é a «confissão» de Willy Wimmer, deputado alemão que em 2000 assumia a vice-presidência da Assembleia Parlamentar da OSCE. Numa mensagem enviada ao primeiro-ministro Gerard Shroeder, afirmava que aquela foi desencadeada para permitir o estacionamento de soldados norte-americanos na região, corrigindo o que via como um erro cometido meio século antes pelo general Eisenhower (www.voltairenet.org/article178251.html).

 Já sobre as motivações económicas, atente-se na confissão do comandante das forças da NATO na região, Mike Jackson: «Vamo-nos manter aqui [nos Balcãs] durante muito tempo para garantirmos a segurança dos corredores energéticos que atravessam a Macedónia» (citado em: Michel Collon, Monopoly, L’OTAN à la conquête du monde, 2000).

A face real do imperialismo

 A agressão à Jugoslávia iniciou-se muito antes de começarem a cair as bombas sobre Belgrado. Desde o início da década de 90 que a Alemanha, os EUA e outras potências ocidentais se empenhavam a fundo nas guerras que dilaceravam a federação socialista construída na luta contra o nazi-fascismo. Muito embora tenham raízes históricas e culturais, os conflitos balcânicos foram atiçados a partir do exterior para servir objectivos alheios aos povos da Jugoslávia. Para os alcançar, o imperialismo tinha de vergar os sérvios, principais defensores do estado federal.

 A demonização mediática deste povo e dos seus dirigentes atingiu proporções poucas vezes vistas (Diana Johnstone, Cruzada de Cegos, 2006) e no terreno a actuação das potências ocidentais ia no mesmo sentido. Em 1994, o CPPC denunciava bombardeamentos aéreos da NATO contra posições sérvias na Bósnia e na Croácia e a «vergonhosa cobertura» do Conselho de Segurança da ONU (CPPC, Décadas de Luta pela Paz, 2017). Três anos antes, condenara o reconhecimento alemão da independência da Eslovénia e da Croácia, sem que estivessem sequer negociados ou garantidos os direitos das minorias nacionais (idem, ibidem).

 No afã de vergar os sérvios e desmantelar a Jugoslávia, o imperialismo recorreu a todo o tipo de aliados. O UÇK, sendo paradigmático, está longe de ser o único. O major-general Carlos Branco, autor de A Guerra dos Balcãs – Jihadismo, Geopolítica e Desinformação (Colibri, 2016), lembra que a liderança do partido bósnio, encabeçada por Alija Izetbegovic, era «extremista e defendia a instauração de um Estado islâmico teocrático», recorrendo ao «apoio da Al-Qaeda e dos países que defendiam o proselitismo religioso radical» (Diário de Notícias, 23.11.2016). Não será por acaso que, do lado dos vários grupos terroristas islâmicos, nenhum país europeu tenha tido proporcionalmente mais combatentes na Síria do que a Bósnia (www.bbc.com/news/world-europe-33345618).

 Na Croácia de Franjo Tudjman, as referências eram outras, igualmente reveladoras: da simbologia ao discurso e à prática política, o poder croata sustentava-se no movimento Ustase, que durante a ocupação hitleriana foi responsável pelo massacre de centenas de milhares de sérvios, judeus e ciganos (Carlos Santos Pereira, Da Jugoslávia à Jugoslávia, 1995). Foi nesse território, aliás, que segundo Carlos Branco e Carlos Santos Pereira, se verificou o único caso de genocídio nos conflitos jugoslavos, em Agosto de 1995, contra as populações sérvias da Krajina.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Avante, núm. 2.365, do 28 de marzo de 2019]