Acerca de mudar de sistema
Mudar este sistema é mais que uma exigência económica e social: decorre da própria lógica da vida corrente. Diziam os antigos que a natureza não dá saltos. A economia também não. A mudança é portanto um processo em que a lei fundamental existente vai sendo progressivamente substituída, tendo em conta as condições iniciais e a alteração das condições limite
1 – Sobre sistemas
Dizia um psicólogo que “problemas de dinheiro, não se resolvem com dinheiro, mas mudando de sistema”. Entendemos que se referia a “problemas crónicos”. De qualquer forma, a questão de mudar de sistema está colocada quando se enfrentam os tais “problemas crónicos” no endividamento, na estagnação económica, na incapacidade de melhorar as condições de vida dos cidadãos, no retrocesso social, no esbater do coletivo. Também podemos dizer que “problemas militares não se resolvem com mais guerra, mas mudando de sistema”.
Mudar de sistema, é do que tratamos: do sistema de desenvolvimento económico e social ou seja, de economia política. Há entre as pessoas, embora não consigam expressar coerentemente soluções, um sentido geral de que é necessário uma mudança social, um futuro estável e que a insegurança não se torne uma normalidade.
Se falamos em mudar de sistema é preciso que se saiba o que isso significa. Um sistema é um conjunto de elementos interdependentes de modo a formar um todo organizado, definido por leis que lhe são próprias, embora algumas possam não ser exclusivas. Na física, os sistemas são definidos pelas suas equações, por regra diferenciais, que determinam o seu comportamento no espaço e no tempo. São equações gerais que se aplicam a todos os casos desse sistema. Quando se pretende particularizar uma entidade que integra esse sistema, é necessário determinar as condições iniciais e as condições limite. As condições iniciais definem t=0, as condições limite, normalmente criticidades, são condições a partir das quais o sistema tomaria valores indeterminados, infinitos ou (matematicamente) imaginários[1].
O neoliberalismo é o sistema económico e social que vigora no “ocidente”. Podemos considerar que as condições sem as quais o sistema passaria a ser outro, são as seguintes: auto-regulação dos mercados; criação de dinheiro pela finança privada através do crédito; Bancos Centrais independentes do poder político.
Um sistema baseado nestas condições é, como os dados empíricos evidenciam, um sistema incapaz de equilíbrio estável, dito caótico, isto é, que as suas grandezas características evoluem segundo um atrator - um atrator de crise - que independentemente das situações específicas de cada elemento atinge todos os que se regem pelo mesmo sistema.
Este sistema deu origem a uma economia dominada pela finança especuladora e por oligopólios, dado que a livre concorrência gera uma progressiva concentração de capital. Os Bancos Centrais, como o BCE, fornecem dinheiro às instituições financeiras privadas, para emprestarem aos Estados. O Estado não interfere diretamente na economia produtiva, a livre circulação de bens e capitais origina a concorrência fiscal e a impossibilidade do controlo estatal sobre os preços. As consequências são bem conhecidas e vividas: obscenas desigualdades, estagnação económica, endividamento do Estado, empresas e famílias, elevados défices comerciais.
O falhanço em termos teóricos e práticos do sistema atual têm sido descrito pelos mais importantes economistas atuais neste site, embora os media e as principais editoras os ignorem. Mencionamos Michael Hudson, Prabhat Patnaik, também Remy Herrera e recentemente “Crise mundial e reprodução do capital”, sobre um livro de Stavros Tombazos, e muitos outros textos.
2 - A economia rentista financeirizada
Conforme Michael Hudson expõe: “A ameaça à sociedade pelos interesses rentistas é o grande desafio de cada nação hoje: o governo pode restringir a dinâmica do capitalismo financeiro e impedir que uma oligarquia domine o Estado e se enriqueça, impondo austeridade ao trabalho e à indústria. Até agora, o ocidente não enfrentou esse desafio”.
O capitalismo rentista tomou o lugar do investimento produtivo, aniquila a procura agregada, esmaga as MPME. O facto é que quanto mais medidas de incentivos à "iniciativa privada" e privatizações houve, mais o investimento se reduziu e o endividamento cresceu.
Uma das bases do sistema vigente é da regulação económica (e social!) automática pelas forças do mercado, um dogma que ignora o poder de mercado dos diferentes agentes (oligopólios), não sendo suportado por nenhuma evidência prática. Até a presunção que os bancos se poderiam "autorregular" de forma responsável e “eficiente” provou ser totalmente errada.
Destacamos outros dogmas do sistema, que se verifica serem disfuncionais, incapazes de gerar crescimento económico e desenvolvimento social:
- A obrigação moral de cada indivíduo para com a sociedade é alcançada maximizando o ganho pessoal
- Dinheiro é riqueza e ganhar dinheiro aumenta a riqueza da sociedade
- Ganhar dinheiro é o objetivo da iniciativa individual e a medida adequada da prosperidade e desempenho económico de cada país
- Os obstáculos ao mercado livre levam à recessão.
O neoliberalismo expõe a sua pseudo validade através de formulações matemáticas – que até serem comprovadas pela experiência são apenas abstrações – fundamentando-se em que, como axioma, o futuro pode ser fiavelmente previsto a partir duma análise dos dados do passado – os computadores podem fazê-lo na perfeição. Contudo, se os computares contêm lixo, sai lixo… As bolhas financeira liquidam o axioma, dado que os mercados financeiros desregulados reagem de forma determinante ao curto prazo, incapazes de antecipar crescentes incertezas futuras. Quando tal é detetado, é tarde, o capital fictício financeiro tornou-se lixo e não há propensão para investir, mesmo com taxas de juro muito baixas e elevados montantes de “incentivos”. Vejam-se os resultados da “bazuca” da UE…
Todas as falácias sobre eficiência e “mais riqueza para melhor distribuir” soçobram perante as várias crises que o sistema origina: económica e financeira, social, ambiental, militarista. A “eficiência” capitalista é feita à custa de exploração imperialista, troca desigual, insegurança dos trabalhadores e repressão. A charlatanice dos Fisher, Hayek, Friedman, está hoje à vista: os governos assumiram os riscos do lixo especulativo e passaram os custos para os trabalhadores.
A economia liberal provou que não permite um Estado de bem-estar social nem sequer manter progressos civilizacionais obtidos no passado. Para a prática se ajustar à teoria não deveriam existir salários mínimos e direitos laborais que alegadamente impedem a “eficiência do mercado”.
Como as crises provam os mercados nada têm de eficiente:
- a privatização de empresas e serviços públicos deu origem ao controlo monopolístico dos preços (os oligopólios são uma forma mitigada de monopólio) não a uma eficiência socialmente produtiva.
- a incapacidade do capitalismo atual na sua fase senil criar valor com taxas "atrativas" na esfera produtiva deu origem à financeirização
- o comércio livre e a livre transferência de capitais permitiu o domínio das transnacionais, condenando os países à estagnação e atraso social, mas são também prejudiciais ao próprio país, desincentivando o investimento produtivo e promovendo a desindustrialização.
Em 2022 as grandes distribuidoras como Jerónimo Martins e Sonae tiveram lucros de 629 milhões de euros, mais 30% que no ano anterior; a EDP 967 milhões, mais 36%; Galp 608 milhões, mais 86%; a Banca Privada 1 891 milhões, mais 81,7%. Eis a “eficiência” da economia financeirizada e privatizada: lucros que em grande parte saem do país, salários reais a reduzirem-se, a dívida pública cujo montante continua a aumentar, estagnação económica e inflação a manter-se. Um sistema que se mantém sob a pressão imperialista, a ação de lóbis que dominam decisões nos EUA e na UE, e o controlo dos grandes media pela oligarquia em nome da “liberdade de expressão”.
3 – As ilusões dos “salvadores” do capitalismo
A ignorância – seguidista e arrogante - de como o sistema económico funciona leva a erros sistemáticos, como os do FED e BCE insistindo nas mesmas “medidas” à espera que deem resultados diferentes, ou a ilusões, próximas do disparate, de que são exemplo os apelos de protagonistas políticos ou de gurus neoliberais, para os capitalistas aproveitarem o que os governos e a UE têm para lhes oferecer, de que é exemplo a chamada Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2020-2030, aqui analisado em Uma visão, uma estratégia, um plano – As ilusões dos salvadores do capitalismo.
Por muito bem intencionados que sejam Thomas Piketty, Stiglitz ou adeptos da taxa Tobin, pretendendo diminuir as desigualdades e desequilíbrios do capitalismo, mantêm-se no sistema e este não muda com apelos morais, “incentivos” fiscais ou outros: obedece à sua lei fundamental. Qualquer sistema é definido pela sua lei fundamental, mudar de sistema implica mudar a sua lei fundamental. O sistema capitalista tem como lei fundamental a maximização do lucro, não de um lucro qualquer, mas de caráter monopolista.
Por isso, falar em “lucros excessivos”, ainda para mais, numa economia rentista não faz sentido. Privatizar, permitir “engenharia fiscal”, concorrência fiscal entre países na própria UE, constituição de oligopólios através da concentração capitalista e falar em “lucros excessivos”, não faz sentido. Gestores são premiados pelo seu “bom desempenho” com “lucros excessivos”, mesmo apoiados em despedimentos, redução de salários reais e precariedade laboral. “Lucros excessivos” é um eufemismo para não chamar as coisas pelo seu nome: as intocáveis rendas de caráter monopolista e financeiras.
Que o sistema não funciona para a esmagadora maioria (os 99%) é uma evidência. As anémicas recuperações são seguidas de recaídas, a pobreza difunde-se e mesmo os países capitalistas mais ricos são Estados cada vez mais insolventes.
Não há dentro do sistema medidas que possam alterar as situações de crise e as obscenas desigualdades porque se trata de um sistema baseado em pressupostos errados que contrariam as leis objetivas do desenvolvimento económico e social, um sistema baseado na insana procura do máximo lucro, na expansão e no predomínio do capital fictício. Para a oligarquia, a questão é manter o seu poder ficando a cargo do povo pagar as custas das suas arbitrariedades: as suas soluções simplesmente criam novas bolhas financeiras para remendar as anteriores.
A democracia mantém os aspetos formais, com a opinião pública na ilusão que o seu voto, controlado pela intoxicação mediática, vale, dentro do sistema, alguma coisa. Como disse um primeiro-ministro – que queria ir para além da troika – após a aprovação do programa do governo na AR, caem as propostas eleitorais.
A corrupção e disfuncionalidade que o sistema gera, facilitadas pelas instituições do Estado ao serviço do grande capital, tornou-se uma arma da boçalidade da extrema-direita, com os media fazendo por ignorar as contradições e recuos civilizacionais que não são possíveis disfarçar no seu programa. A extrema-direita exibe-se como querendo mudar o sistema, mas apenas para o tornar ainda mais drástico. As experiências de congéneres, mantiveram o sistema neoliberal, aumentaram o poder da oligarquia, tendo como resultado piorar as condições económicas dos países e o nível de vida dos trabalhadores.
A UE afunda-se em contradições, o seu papel é sobretudo de polícia, delegado do imperialismo, via NATO, para manter os países sob a “democracia liberal”, ou seja, o domínio da oligarquia transnacional através do neoliberalismo.
Com o euro, o país ficou sem soberania monetária transformado num misto de colónia e Estado federado, mas apenas com as obrigações decorrentes de cada uma destas situações. As promessas da adesão ao euro mostraram-se falsas, irrealizáveis, e a financeirização económica apenas conduziu ao endividamento, estagnação económica e austeridade, sem a mínima capacidade para reagir positivamente do ponto de vista económico e social, perante condições adversas.
Atrelada ao dólar e às ilusões geopolíticas da NATO, a UE segue o declínio do império. “A maioria dos bancos dos EUA está tecnicamente perto da insolvência e centenas já estão de facto insolventes. Desde que a política e as taxas de juros de curto prazo caíram para quase zero após a crise financeira global de 2008, a sensibilidade dos depósitos às taxas de juros voltou à tona. Uma recessão severa é a única coisa que pode moderar a inflação de preços e salários, mas tornará a crise da dívida mais severa, e isso, por sua vez, retroalimentará uma recessão económica ainda mais profunda. Uma vez que o apoio à liquidez não pode impedir este ciclo de desgraça sistémica, todos devem estar a preparar-se para a próxima crise da dívida estagflacionária.” A espiral da ruína.
O sistema tornou países e povos reféns dos credores (ditos “mercados financeiros) embora seja esta mesma finança cujas crises sistémicas têm de ser resolvidas com dinheiro do Estado, não lhe sendo permitido assumir a propriedade correspondente. Para o justificar é usado o habitual procedimento dos abusadores de culpabilizar as vítimas: as dívidas são originadas porque os trabalhadores ganham de mais e têm excesso de direitos; as MPME endividam-se porque são ineficientes, não competitivas, portanto o “custo da mão de obra” tem de ser reduzido. Enfim, todos (99%) têm de entregar parte dos seus salários e lucros para a oligarquia financeira manter o seu estatuto.
4 – Mudar o sistema
O sistema que vigora na UE, com os seus tratados, destrói a possibilidade de uma economia equilibrada e de progresso social. É necessária uma outra via.
Uma opção debatida na crise de 2008-09 foi uma nacionalização real. Como o professor Michael Hudson escreveu em fevereiro de 2009: "A nacionalização real ocorre quando os governos agem no interesse público para assumir a propriedade privada. Nacionalizar os bancos nesse sentido significaria que o governo supriria as necessidades de crédito do país. O Tesouro se tornaria a fonte de dinheiro novo, substituindo o crédito bancário comercial. Presumivelmente, esse crédito seria emprestado para fins económica e socialmente produtivos, não apenas para inflar os preços dos ativos, ao mesmo tempo que sobrecarrega as famílias e as empresas com dívidas, como ocorre sob as políticas atuais de empréstimos bancários comerciais.”
No mercado livre os indivíduos não conseguem ter controlo sobre as suas vidas económicas. A liberalização do mercado laboral implica sindicatos impotentes e limitar as regras de proteção dos direitos dos trabalhadores. Efetivamente, para reverter a baixa da taxa de lucro, o capital necessita de perdas no salário real. O que não pode fazer, contudo, é evitar a generalizada contestação popular.
Mudar este sistema é mais que uma exigência económica e social: decorre da própria lógica da vida corrente. Diziam os antigos que a natureza não dá saltos. A economia também não. A mudança é portanto um processo em que a lei fundamental existente vai sendo progressivamente substituída, tendo em conta as condições iniciais e a alteração das condições limite.
Quanto às condições iniciais, consideramos que os elevados défices da Balança Comercial e endividamento do Estado, determinam o andamento do processo de transformação e a orientação das medidas pontuais. A superação das condições limite, já anteriormente caracterizadas, baseiam-se no planeamento económico democrático, na criação de dinheiro pelo Estado (soberania monetária), no Banco Central ao serviço da economia produtiva, na maximização dos benefícios sociais a curto, médio e longo prazo.
Uma estratégia de desenvolvimento antimonopolista, apoiada no planeamento económico e num forte e dinâmico sector empresarial do Estado na indústria e nos serviços financeiros, é a base fundamental para ultrapassar o intolerável poder discricionário dos oligarcas, fautores de crises e de espoliação das riquezas nacionais, criando as bases de uma real alternativa: transição para uma economia caminhando para o socialismo.
Qualquer economia tem ainda que ter em conta o seu posicionamento nas relações económicas internacionais, não apenas pela sua competitividade, mas estabelecer acordos mutuamente vantajosos de cooperação, não alinhando em imposições unilaterais externas. Para que os raciocínios não caiam na abstração é necessário definir os contextos e Portugal pertence à UE e à NATO, entidades que se opõem a tudo o que represente afastamento em relação aos dogmas neoliberais e a relações externas que não estejam de acordo com os exclusivos interesses da potência hegemónica.
Porém não estamos num beco sem saída e não nos devemos deixar cair em dilemas: o mundo multipolar consolida-se dinamizado pela China e pela Rússia, com o comércio em moedas que não o dólar e a ampliação de organizações de cooperação multilateral. A era da ordem mundial unipolar chegou ao fim, uma nova ordem económica mundial está a consolidar-se, inspirada pelo socialismo, onde o Estado funciona como integrador, unindo os interesses de diversos grupos sociais em torno do objetivo de elevar o bem-estar público.
A liberalização do comércio deixa de ser prioridade, as prioridades nacionais serão respeitadas, cada Estado podendo inserir-se no espaço económico que julgar de maior interesse e, no que for mais conveniente, protegendo o seu mercado interno. É com base nesta realidade que devemos perspetivar o futuro. E se as lições do passado servem para alguma coisa: que se recorde como Álvaro Cunhal o perspetivou no seu Rumo à vitória em 1964.
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[1] Por memória: como os sistemas são definidos por equações ditas diferenciais e sendo a derivada de uma constante igual a zero e a derivada da variável independente uma constante, são as condições iniciais e as condições limite que nos dão os valores dessas constantes e desses coeficientes para cada caso particular. Por exemplo, no movimento de um corpo, no caso mais simples de movimento retilíneo, definido por um vetor, a sua intensidade para cada caso particular é definida pelas condições iniciais (v0) e as “condições limite”, a aceleração (a) que pode ser a=0, a>0, a<0, definindo sistemas de movimento completamente distintos.
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[Artigo tirado do sitio web Resistir.info, do 17 de abril de 2023]