A UE no fio da navalha

Daniel Vaz de Carvalho - 22 Feb 2024

Com a desindustrialização, o grande capital pensava ter ganho o seu “jogo democrático”, mas eis que o descontentamento se alarga por toda a UE aos agricultores. Os protestos têm que ver com aumento dos combustíveis e fertilizantes, corte de subsídios (a austeridade), políticas ambientais inconsistentes ditadas pela burocracia, importação de cereais ucranianos, pagamentos irrisórios face às despesas, que se refletem nos lucros dos oligopólios da distribuição

1 – A UE segue o seu destino

 E segue-o sem honra nem glória num inevitável declínio da economia à cultura. Nem algo diferente era de esperar. Aquilo a que se chama UE é apenas a entidade encarregada da gestão económica e (anti)social da área UE/NATO europeia. Segue uma doutrina económica totalmente errada, mais que evidenciado na teoria e na prática: o neoliberalismo. Em termos geopolíticos identifica-se como os interesses de uma potência a 10 000 km de distância, funcionando como um espaço colonizado ou um protetorado.

 Fez da democracia uma farsa dominada por burocracias federalistas, meros agentes da finança e do poder hegemónico. Uma burocracia desligada dos interesses das populações, que alojada na CE e no BCE controla as políticas dos Estados com poder de aplicar sanções. Contudo nada mais produz que medidas desadequadas, agindo atrás dos acontecimentos e crises na tentativa de remediar os erros das suas decisões, mas sem alterar os procedimentos. Quanto ao PE é um espaço de poder virtual, bom para os respetivos membros obterem prebendas.

 Nos Estados apenas são governantes os que aceitam o poder hegemónico transatlântico e o da burocracia. Uma ou outra exceção é sujeita a constantes pressões, ameaça de sanções ou equivalente, discriminação e descredibilização mediática.

 Outro aspeto fundamental da UE é a incompetência dos seus principais dirigentes. É difícil encontrar algo no mínimo com bom senso, dito pela sra. von der Leyen. O mesmo se aplica genericamente aos demais elementos da burocracia europeia. O Stoltenberg da NATO é incapaz de articular uma frase consequente. Fica-se a duvidar da sua lucidez militar e geopolítica. Os governos acabam nas mãos de trafulhas como Macron ou Scholtz. A incompetência geral é disfarçada com propaganda e alardear de ilusões sem qualquer sentido realista. A extrema-direita aproveita este contexto para desacreditar e vir a liquidar o que resta de democracia e direitos sociais.

 Os debates centram-se na mediocridade de se falar de pessoas ou relatos dos media, sempre dentro dos dogmas instituídos. É o resultado do combate à cultura, ao sindicalismo de classe, à formação integral dos indivíduos. O proletariado levado por estas políticas, prosseguidas por décadas, foi colocado ao nível de lumpen e levado a aceitar a demagogia que reforça este sistema destrutivo. É um círculo vicioso.

 Para garantir a “unidade” do complexo divergente de Estados que é a UE/NATO, foram instituídos inimigos: a Rússia, a China, etc. Todos para os quais os neocons de Washington apontarem. Azar – o nosso, claro – o tal país que é suposto defender em nome da “democracia e valores do ocidente”, é um reduto de neonazis em que Stepan Bandera e outros criminosos nazis, responsáveis pelo assassinato de milhares de judeus, russos e polacos, foram transformados em heróis nacionais, com estátuas e ruas em sua homenagem. Um regime em que militantes realizam desfiles neonazis, glorificam criminosos da 2ª Guerra Mundial, usam insígnias e emblemas da divisão SS ucraniana e colocam símbolos da Wehrmacht em equipamento militar fornecido pela NATO. Um regime assim, nascido de um golpe, organizado pelos EUA em 2014, tinha obviamente ser apoiado pela UE/NATO.

 Uma das características do fascismo e dos regimes de extrema-direita é além do terrorismo de Estado, a corrupção, por muito que se apresentem como “regeneradores” quer raciais quer da moral pública. O regime de Kiev está neste caso, é considerado um mundo de corrupção e os exemplos vêm dos chefes: são os desvios de dezenas de milhões que vêm UE/NATO para munições. São as mansões de Zelensky, a última registada no Dubai por 16 milhões de dólares em 22 de dezembro. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 07/02)

 Em conformidade com o que exibem, nos serviços de segurança (SBU) a prática de prisões arbitrárias e tortura é corrente desde o início do regime, tudo abafado na censura mediática e negação. O que poderia ser um escândalo ou rebate de consciência dos defensores dos “valores do ocidente”, ocorreu recentemente com o jornalista cidadão dos EUA, Gonzalo Lira, morto em janeiro de 2024 depois de torturado nas masmorras do regime de Kiev por publicar textos críticos sobre Zelensky.

 Outro aspeto negro do que a UE/NATO apoia intransigentemente é o site Mirotvorets (onde Gonzalo Lira estava listado como “propagandista anti-ucraniano”). O Mirotvorets, fundado em março de 2014 é um banco de dados na internet, com extensas informações sobre pessoas classificadas como "inimigos da Ucrânia", chefiado por Roman Zaitsev, ex-funcionário da SBU, e supostamente controlado pelo SBU. Contém imagens de cadáveres e mutilados e apelos ao massacre dos russos e de outros “inimigos” da Ucrânia, inclui jornalistas ucranianos e estrangeiros, políticos, figuras da oposição, bloguistas e nada menos que 327 menores de idade, conforme relatado pela Foundation to Battle Injustice. Entre os indivíduos assassinados que estavam na "lista de mortes" constam o publicitário ucraniano Oles Buzina, o legislador Oleg Kalashnikov, jornalistas russos como Zemfira Suleimanova, Anton Voloshin, Andrey Stenin, Vladlen Tatarsky e a jovem Daria Dugina. A foto-jornalista italiana Andrea Rocchelli também foi alvejada e morta. Entre os numerosos cidadãos americanos na “lista de morte” do regime de Kiev estão Tucker Carlson, Scott Ritter, Tulsi Gabbard, Oliver Stone, Douglas McGregor, Ray McGovern, Roger Waters (dos Pink Floyd), etc. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 08/02)

2 - Um sistema em colapso

 As “regras” do Pacto de Estabilidade e Crescimento, não trouxeram nem estabilidade nem crescimento sendo retomadas com ligeiras “adaptações”: os excedentes orçamentais terão de ser utilizados para reduzir a dívida pública até 60% do PIB, com uma fase mais rigorosa até a 90% do PIB. A austeridade é o lema e os trabalhadores e seus direitos continuam a ser a variável de ajustamento económico, enquanto o império impõe mais despesas militares. Compete aos políticos do sistema e aos media irem mantendo ilusões e “jogo democrático”, de acordo com decisões tomadas longe da plebe, como nas reuniões semestrais do Institut International d'Etudes Bancaires, com dirigentes dos principais bancos europeus. Trata-se de uma organização cujo secretismo é de norma, não mantém um site nem divulga os seus membros.

Ao “país excecional” não se aplicam as mesmas regras que aos vassalos. Nos EUA a dívida federal é de 122,7% do PIB e incluindo a dos Estados e locais 136%, tendo crescido nos últimos quatro anos, 1,6 milhões de milhões de dólares ao ano, embora aumente a pobreza, as desigualdades e a insegurança e prossigam a queda do nível de vida, a degradação das infraestruturas, a par das guerras sem solução.

 O BCE não consegue controlar a inflação, 6,2% em 2023, muito acima da meta nunca explicada de 2%, persistindo em taxas de juro que levam a economia para a estagnação ou mesmo em alguns países à recessão. Mas a banca agradece.

 Não se trata de uma conjuntura: a estagnação económica é persistente. De 2000 a 2023, o crescimento anual em valores constantes foi na UE de 1,4%, Zona Euro 1,15%, Alemanha 1,2%, França 1,12%, Portugal 0,8%, na Itália e Grécia ainda menos. As perspetivas são sombrias, sem energia abundante e barata não será possível reverter o processo de desindustrialização nem garantir a competitividade dos seus produtos, mesmo os agrícolas dependentes de combustíveis e fertilizantes encarecidos pelo clima de guerra e sanções, além da sabotagem do Nord Stream que garantiu aos EUA a exportação de gás natural liquefeito, com preços 30-40% mais elevados que o gás natural russo.

 O RU, o mais assanhado militarista do bloco UE/NATO encaminha-se para a recessão. A Alemanha – considerada economia líder da UE – tenta sair da recessão, com a produção industrial a cair meses consecutivos, como a do importante sector químico alemão que entrou em crise em 2023, atingido pela crise energética na sequência das sanções. Segundo a Bloomberg: “Os dias da Alemanha como superpotência industrial estão a chegar ao fim”. Industriais e responsáveis económicos partilharam esta perspetiva sombria. “Já não somos competitivos”, admitiu o ministro das Finanças alemão. Muitas empresas fecham ou mudam-se para o estrangeiro”. Mas a Alemanha continua a pagar quantias absurdas pelo gás natural liquefeito americano, ao mesmo tempo que mantém as sanções ao gás russo. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 10/02).

 Numa coisa os políticos do sistema e burocratas são férteis: na prosápia. Como vão obter fundos para as despesas militares impostas pelo império, onde está a fanfarronada da economia digital iludindo a desindustrialização, quando a UE produz apenas 10%, dos semicondutores a nível mundial; produzia 40% há trinta anos.

 Mas há mais problemas que a burocracia dirigente é incapaz de resolver, agravando-os todos. Não existe uma real estratégia de desenvolvimento, além de palavreado inconsequente face a concorrentes como a China ou a Índia. Que solução têm para resolver os problemas energéticos ou de matérias-primas e componentes para equipamentos eletrónicos necessários para praticamente todas as atividades, ou lítio para baterias de viaturas elétricas? O bloco UE/NATO tem ainda de enfrentar o problema do tráfego de navios no Mar Vermelho que caiu para metade. Com isto as indústrias enfrentam interrupções nos fornecimentos, cortes na produção, aumentos de preço. Até agora as prioridades políticas reduzem-se a apoiar guerras, favorecer a finança ou os oligopólios da grande distribuição e que os governos não incomodem o grande capital.

 Segundo o vice-ministro russo das Relações Exteriores, as perdas totais da UE devido às sanções à Rússia atingiram 1,5 milhão de milhões (trillion) de dólares. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 03/11/2023). A partir dos dados do Eurostat, os países da UE tiveram de pagar cerca de 185 mil milhões de euros adicionais em gás natural nos últimos 20 meses, ao cortarem o acesso ao gás russo. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 02/01)

 As sanções criaram pelo contrário um dinamismo económico na Rússia e na China que atraiu países de todos os continentes estabelecendo com eles relações preferenciais, em detrimento do ocidente. A Rússia apresentou recordes de exportações estratégicas, como combustíveis e cereais, tornando-se um país fundamental na oferta mundial destes bens. Em 2023 o orçamento russo apresentava um excedente equivalente a 2 300 milhões de dólares. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 08/09/2023)

 Expulsa da plataforma de trocas financeiras SWIFT, fundamental para o comércio internacional, a Rússia criou um sistema alternativo, à qual cerca de 159 participantes estrangeiros de 20 países tinham aderido em 2023, estando em curso o alargamento da adesão à plataforma financeira russa.

3 – O agravamento da degradação social

 Agrava-se a situação social na UE e aumentam as lutas económicas em praticamente todos os setores, mas também protestos contra a hipocrisia do conluio em relação aos crimes de Israel contra os palestinos, exigindo um cessar-fogo na Faixa de Gaza.

 As lutas económicas ainda não têm grande expressão política no sentido de refletirem uma rejeição consciente das políticas discricionárias e dogmas absurdos mantidos por uma burocracia zelosa. O aumento do ativismo da classe trabalhadora é um facto, apesar da desindustrialização, da promoção do individualismo e da propaganda contra tudo o que é coletivo. São programas de que a oligarquia não prescinde e que os defensores do liberalismo apoiam com a vacuidade dos “equilíbrios automáticos do mercado”. Porém, conduzem à desestruturação das sociedades, nas quais também o crime organizado prospera, aproveitando a impotência, a solidão, a fragilidade dos seres humanos – sociais por natureza – reduzidos a formas de isolamento e insegurança.

 Com a desindustrialização, o grande capital pensava ter ganho o seu “jogo democrático”, mas eis que o descontentamento se alarga por toda a UE aos agricultores. Manifestações, bloqueios de estradas e cidades com tratores e camiões na Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Polónia, República Checa, Áustria, Suíça, também em Portugal. Os protestos têm que ver com aumento dos combustíveis e fertilizantes, consequência direta das sanções, corte de subsídios (a austeridade), políticas ambientais inconsistentes ditadas pela burocracia, importação de cereais ucranianos, pagamentos irrisórios face às despesas, que se refletem nos lucros dos oligopólios da distribuição.

 Os governos tentam fazer algumas concessões aos agricultores, mas como habitualmente não tocam no essencial. A CE permite (!?) aos países que fazem fronteira com a Ucrânia restringirem as importações de produtos agrícolas ucranianos, o que mostra o estado de desorientação que reina entre a burocracia. A sra. von der Leyen, fazendo jus à sua irresponsabilidade culpou a Rússia e as alterações climáticas pelos problemas dos agricultores!

 No meio da degradação a todos os níveis da UE, desenvolve-se a extrema-direita como parasita das crises. A extrema-direita sempre foi o recurso do grande capital confrontado com a sua incapacidade de dar solução às contradições e antagonismos que origina. É também, o recurso para impedir que se evidenciem e desenvolvam soluções da esquerda.

 O crescimento da extrema-direita é mais um símbolo da decadência da UE. Os erros, as sucessivas crises, as medidas antissociais são a base da sua promoção aproveitando a despolitização resultante de décadas de desindustrialização, propaganda neoliberal e manipulação mediática.

 Demagogia sem limites, linguagem boçal e arruaceira, a extrema-direita e o extremismo liberal, seu parente snobe, aproveitam a corrupção e disfuncionalidade gerada pelo sistema ao serviço do grande capital. Exibem-se como querendo mudar o sistema, mas apenas para o tornar ainda mais drástico. Procuram impor uma agenda fascizante entre a pura aldrabice e a distorção de factos. Apesar das diferenças, a extrema-direita na UE em certos casos aparentemente contra algumas políticas da CE, alinha no essencial com a burocracia.

 Como afirma Prabhat Patnaik, "a crise produziu regimes fascistas no interior de muitos países; mas está também a produzir uma ordem global extremamente repressiva, em que tanto poderes capitalistas fascistas como não fascistas se combinam para suprimir o povo trabalhador, tanto a nível interno como externo. Não há lugar para qualquer moralidade nesta repressão e as potências capitalistas estão unidas na defesa desta barbárie, independentemente da potência específica que a perpetra".

 O declínio da UE, exacerbado pela russofobia, colocou os países à beira do colapso económico e social, que tentam iludir através da propaganda e do colaboracionismo dos partidos alinhados com o sistema. Assim, na Cimeira da UE, os líderes aprovaram 50 mil milhões de euros de ajuda financeira à Ucrânia. Em conformidade com a lógica capitalista, cabe à classe trabalhadora e aos sectores explorados da pequena burguesia, como os agricultores, suportar os custos da guerra e do militarismo, defender o império e apoiar a oligarquia… liberal. É este o sistema que está em causa e tem de ser mudado.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 22 de febreiro de 2024]