
A UE diz que tem valores e um plano

Todo o plano belicista baseia-se em que a Rússia vai invadir a “Europa”. Há alguma declaração de Putin ou Lavrov que o fundamente? Documentos que o comprovem? Ou foi antes o ocidente que recusou as propostas de paz da Rússia e sabotou os acordos de Minsk? Mas para que quererá a Rússia invadir a UE, com reduzida disponibilidade de matérias-primas e de onerosa extração?
1 – Valores e interesses
Dizia De Gaulle, parece que parafraseando o cardeal Richelieu, que em política externa não há ideologias, há interesses. Esta questão altera-se no mundo unipolar, em que os interesses do hegemónico se sobrepõem aos dos demais. O "atlantismo" é – mais propriamente, era – uma vertente do mundo unipolar, significando a subordinação de políticos e burocratas da UE aos "interesses" dos EUA, esperando com isso participar da exploração global.
Neste contexto, as ações procuram ser justificadas por "valores", numa ética dual e conjuntural, como máscara para os interesses resultantes do mundo unipolar poderem ser apresentados com legitimidade. Desligada das realidades, esta ficção exacerbou as contradições próprias do sistema capitalista, arrastando a "Europa" para situações que apenas a degradaram.
Como responderão à pergunta de Tucker Carlson: qual é exatamente o interesse europeu em estar em guerra com a Rússia? A Jugoslávia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão – quando se encaminhava para o socialismo – ameaçavam a Europa? Intervieram em nome de "direitos humanos" nas relações com as ditaduras da América Latina, os tiranos de África, os crimes de Israel, etc? Que valores defendiam nestes casos ou quando promoviam golpes de Estado, matavam ou tentavam matar líderes progressistas? Dizem que que destruir infraestruturas civis é crime de guerra, mas o critério não é aplicado às ações dos EUA e NATO, ainda menos a Israel.
Em relação à Ucrânia, a justificação procura ser: "O que está em jogo devido à agressão russa são nossos próprios valores". “A Ucrânia é um país europeu... cujos valores democráticos são os nossos”. Mas que “democracia”, é a de Kiev dominada por gente corrupta, que erigiu criminosos de guerra colaboracionistas dos nazis em "heróis nacionais" e destruiu os monumentos aos que libertaram a Europa daquela praga?
David Sacks, consultor financeiro da Casa Branca, disse recentemente que “precisamos auditar a Ucrânia. Definitivamente houve autoridades ucranianas que foram apanhadas a deixar o país com malas cheias de dinheiro." (Geopolítica ao vivo, Telegram, 04/03). Nessas malas iriam alguns "valores europeus", outros jazem nos campos de batalha ou nas prisões da polícia política de Kiev.
Por certo seria legitimo mobilizar as pessoas para aceitarem sacrifícios inerentes a uma causa e valores justos. Mas o que a UE apresenta como "valores" é que decorre do poder oligárquico, o neoliberalismo, travestido de "democracia liberal". Quanto à guerra na Ucrânia, iniciada com o golpe de 2014, foi um passo para a submissão da Rússia aos valores da "ordem internacional baseada em regras", ou seja, aos interesses do mundo unipolar. Mas por muito que a propaganda ficcione, com esta guerra o mundo unipolar acabou: o que resta saber é a profundidade à qual a “ordem internacional baseada em regras” será enterrada". (Pepe Escobar)
Agora os "valores" da UE vão ao ponto de definir a militarização como fator de desenvolvimento económico, ignorando custos sociais e a eventualidade de custos em vidas humanas. Na submissão aos neocons de Washington e acéfala propaganda, políticos e burocratas da UE foram incapazes de avaliar o potencial humano e material da Rússia, capaz de superar as sanções e a guerra que a expansão da NATO pressagiava cercando a Rússia, além de tentativas de separatismo e revoluções coloridas.
A incompetência – ou falta de caráter – de políticos e burocratas da UE/NATO, para definirem e defenderem os reais interesses dos seus países, levou-os ao desvairo da russofobia, perdendo a capacidade de definir e estabelecer um futuro digno para os seus cidadãos.
2 – Verdades proibidas
As regiões do Donbass tiveram razão em não aceitar os golpistas de Kiev, primeiro quiseram a autonomia para manter a sua língua e defenderem as suas convicções e liberdade, depois, ao serem brutalmente atacadas, constituíram-se como Repúblicas Populares, acabando por se integrarem na Federação Russa através de referendo. O clã de Kiev tinha criado um regime opressor das minorias e combatia tudo o que era progressista ou meramente democrata.
Em fevereiro de 2021, o regime de Zelensky bloqueou ilegalmente a transmissão de canais de oposição, impôs sanções a Viktor Medvedchuk, político da oposição e deputado, acusou-o de traição – quando a sua popularidade aumentava em sondagens – e colocou-o em prisão domiciliar em maio de 2021. Foi preso em 12 de abril de 2022, pelo serviço secreto ucraniano, libertado em setembro numa troca de prisioneiros. O que – entre outros casos – mostra bem o conceito de democracia de Kiev.
Em setembro de 2024, Medvedchuk, em declarações ao EA Daily afirmou: "A Ucrânia de Zelensky simplesmente não pode existir sem financiamento do ocidente: não pode pagar pensões, salários e manter a infraestrutura pública. Os negócios foram destruídos, os laços económicos foram cortados. Por que os ucranianos precisam de uma guerra eterna com os russos? Durante 30 anos, o ocidente atirou milhares de milhões de dólares na propaganda da histeria anti-russa, ajudaram a reescrever a história, facilitaram a ascensão do nazismo na Ucrânia. O Instituto Internacional de Sociologia de Kiev publicou dados (2024) em que 57% consideravam que a Ucrânia devia entrar em negociações com a Rússia para alcançar a paz. São dados oficiais, na realidade existem mais pessoas".
A Ucrânia de Kiev, empurrada pelos EUA e UE/NATO tornou-se o país mais pobre da Europa, com metade da população de quando era república soviética. É um país falido, além do que lhe é dado, desde 2022 endividou-se em mais 156 mil milhões de dólares. Kiev gasta quase o dobro do que recebe em impostos e outras receitas. Em 2023, o défice orçamental atingiu 20,5% do PIB, os gastos com defesa cresceram para 52,3% do OE, as despesas sociais reduziram-se de 15,8% para 11,7%. O PIB real não excede 60 mil milhões de dólares, contudo o PIB declarado passa para 180 mil milhões de dólares, ao incluir empréstimos e o que é dado. OE para 2025 previa um défice de 38,68 mil milhões de dólares, enquanto aumenta impostos e reduz prestações sociais. Em 1991, a dívida era zero, absorvida pela Rússia, em 2024 cerca de 102% do PIB declarado.
O sector agrícola da Ucrânia está devastado, áreas de terra arável tornaram-se inacessíveis pelo risco de engenhos não detonados e falta de trabalhadores, registando-se um declínio na produção de cereais. Mais de 17 milhões de hectares de terras agrícolas são agora propriedade de grandes empresas dos EUA, os principais beneficiários das exportações de cereais.
As sanções às matérias-primas russas, incluindo petróleo e gás, prejudicaram as economias da UE. As "elites" habituadas à manipulação ignoraram as consequências de prescindir de gás e petróleo de alta qualidade e barato da Rússia. Talvez pensassem que a "bomba atómica das sanções" era um bom investimento: demitiam Putin, instauravam uma democracia liberal e tomavam conta "daquilo tudo". Acabaram a importar petróleo e gás da Rússia, através de países terceiros muito mais caro, e com uma guerra perdida.
Para Pepe Escobar, que não poupa nas palavras, "as 'elites' que nomeiam espécimes acéfalos como a 'Medusa von der Lying' e a 'estoniana maluca' (Kaja Kallas) como representantes máximos da UE; que iniciam uma guerra contra o seu fornecedor de energia mais importante; que apoiam totalmente um genocídio; que falam apenas da boca para fora sobre democracia e liberdade de expressão, essas 'elites' merecem chafurdar na imundície".
Apesar da desinformação mediática, há considerável instabilidade e lutas internas no regime de Kiev saído do golpe de 2014, uma coligação de forças oligárquicas, nacionalistas, ultranacionalistas, neofascistas, liberais e centristas. A esquerda foi posta fora da lei, sofrendo em muitos casos prisões e tortura pelos neonazis. Os ultranacionalistas e neofascistas constituem-se também em grupos armados. É mais um caso de defesa dos valores do "liberalismo e democracia" da UE/NATO. Porém, na UE/NATO o tema dos neonazis ucranianos é outra verdade proibida. A alegação que os ultranacionalistas e "nazistas" têm poder em Kiev é invetivado como propaganda russa.
A derrota da Ucrânia irá facilitar a ascensão dos ultranacionalistas neofascistas. Falam numa "segunda fase da revolução nacionalista" de 2014. Os neofascistas ucranianos toleram a ajuda militar e financeira ocidental e a influência que a acompanha, porque não têm outra escolha. Propõem a proibição de todos os partidos políticos, organizações, associações e grupos ideológicos. A elite do grupo étnico nação ucraniana (!?) terá plenos poderes: "O poder político pertence inteiramente à nação ucraniana por meio de seus representantes nacionais mais talentosos, idealistas e altruístas, capazes de garantir o desenvolvimento adequado da nação e sua competitividade. A democracia deve ser "eliminada". Todas as ações que não cumprirem "as obrigações para com a nação e o Estado resultarão na restrição dos direitos civis ou na privação da cidadania".
Stephen Whitkoff, enviado especial de Trump para o Médio Oriente, deu numa entrevista a Tucker Carlson, mostrando o que se pensa em Washington, deixando comentadores sem fôlego. Relativamente a Donetsk, Lugansk, Zaporozhye, Kherson e Crimeia, salientou que nessas regiões o russo era a língua falada, foram realizados referendos e a maioria dos moradores disse que queria ficar com a Rússia. Whitkoff, proferiu mais uma verdade proibida: esses territórios não querem voltar para a Ucrânia e não podemos permitir-nos ser arrastados para um terceira guerra mundial". Quanto à questão dos russos avançarem pela Europa, a resposta foi: "100% NÃO" (Ukraine Watch, 22/03)
3 – O Plano
A pergunta que logicamente deveria ser colocada relativamente à Ucrânia, é: o que pretende a UE? Seria bom que na UE se guiassem pela realidade, já que não têm nem dinheiro nem potencial para o que vão propalando, desmentido pelos factos.
Acostumados a impor-se a países do chamado "terceiro mundo", a ilusão de ser uma grande potência levou as "elites" a acharem que com as sanções a economia russa iria sufocar. Em 2023, os mais desvairados achavam que a Crimeia poderia ser tomada "em breve", se "nós" ajudarmos. E não haveria necessidade de solução diplomática, a Rússia seria levada a uma humilhante derrota. O Wall Street Journal escrevia que "a Rússia perdeu quase 90% de seu exército pré-guerra e milhares de tanques".
Alguns meses e muitos milhares de milhões de dólares depois, os mesmos que tinham falado sobre "fraqueza do exército russo" começaram a incutir pânico: a Rússia podia vencer na Ucrânia e invadir a "Europa", eram precisas "medidas duras". A Time admitia que a Ucrânia não poderia vencer. De facto, os "famosos" Leopard, Challenger, Abrams, eram sistematicamente transformados em sucata, os HIMARS e Patriot destruídos. Em que estariam a pensar quando em abril de 2022, prometeram assistência militar à Ucrânia "pelo tempo que for necessário", para Kiev abandonar o iminente tratado de paz com Moscovo?
Na senda dos neocons, mesmo em julho de 2024, uma resolução do PE encorajava o uso de armas ocidentais contra território russo e considerava a adesão da Ucrânia à NATO como "irreversível". Negociações só deveriam ocorrer se a Rússia capitulasse e se retirasse de todos os territórios ocupados, incondicionalmente. (!)
O problema desta inconsciência, além de ignorar as origens do conflito, é que a UE não tem poder nem influência para impor nenhum dos objetivos que defende. Para isso teriam de intervir militarmente em grande escala na Ucrânia, não tendo nem os recursos económicos e militares nem apoio da opinião pública para o fazer. Os que votaram contra aquele desconchavo, mesmo em nome do simples bom senso, foram apontados como "putinistas".
Os belicistas ainda deliram querendo que as negociações sejam usadas para "rearmar a Ucrânia" e pressionar a Rússia. Como? Não dizem. Na bolha mediática a resposta que a Rússia dará não faz parte da equação. Assim vai a UE...
Por fim, chegaram à conclusão que precisavam de um "plano" para o rearmamento: a propaganda, ao contrário do que pareciam pensar, não tinha alterado a realidade. O "plano" de planeamento nada tem, é apenas uma intenção de despejar dinheiro (dívida) para a "Europa" se rearmar, já que a guerra que iam vencer com as suas "armas maravilha" através dos soldados ucranianos, mercenários e conselheiros NATO, esgotou os seus stocks militares.
Fundamentalmente o que o "plano" estabelece é: endividem-se, nós (a dra. Ursula) não lhes aplicaremos sanções por défice excessivo... mas só se for para fins militares, sendo 80% dos 800 mil milhões de euros enunciados de responsabilidades dos países.
Com o falhanço absoluto das sanções, a UE perde mercados, competitividade e a pobreza aumenta para 22% da população. O que existe na UE/NATO é a total ausência de coerência e capacidade de pensamento estratégico, após anos de desindustrialização, incompetência, decisões desastrosas e servilismo.
Querem que os países se preparem para um cenário de tempo de guerra. Embora a preparação para o "cenário" possa levar uma década, dada as notórias insuficiências da generalidade dos seus equipamentos e dependência dos EUA, não tendo sido elaboradas especificações, quantidades, cronogramas de produção e financiamento, nem quem produz o quê.
Contudo, além das despesas em investigação e produção de armamento, esqueceram-se de alguns "pormenores". Falta reconverter ou criar empresas, trabalhadores qualificados, resolver problemas na cadeia de fornecimentos dos componentes eletrónicos aos combustíveis. Quem fornece os materiais necessários, designadamente fora da UE/NATO? Que capacidade industrial existe para preparar e manter uma guerra em grande escala? Que estratégia está delineada para mesmo em termos teóricos se defenderem de um ataque da Rússia, quando os EUA recusam uma terceira Guerra Mundial?
Apesar destas questões não figurarem nas "análises" dos comentadores, as intenções da UE/NATO ficam evidenciadas quando o belicista à frente da NATO, Mark Rutte, diz que "devemos reafirmar o nosso compromisso de continuar a guerra e devemos fazer mais do que apenas manter a Ucrânia na luta". (?) Bertrand Toujouse, chefe do comando terrestre da NATO na Europa, afirmava: "Agora há um inimigo designado e estamos treinando pessoas com quem poderíamos realmente fazer a guerra. O exército francês em 2025 irá preparar-se para transferir forças para o flanco Leste da NATO e na guerra contra a Rússia".
Nesta situação, é decisivo o esclarecimento, a luta pela paz e pela democracia, e a crescente contestação àquelas políticas, impedindo que as elites belicistas passem das palavras.
Como pensam sustentar os custos de uma adesão da Ucrânia à UE? Só a reconstrução das infraestruturas custará centenas de milhares de milhões de dólares num Estado falido. Como vai a UE/NATO sustentar a Ucrânia na guerra e no pós-guerra? Um país numa catástrofe económica e demográfica devido ao desaparecimento ou fuga de gente competente, despojado da maioria das regiões industriais. Como pensam manter os seus 700 mil soldados?
A posição dos EUA é que a adesão da Ucrânia à NATO não é realista e quaisquer garantias de segurança dadas à Ucrânia devem ser apoiadas por tropas europeias e não europeias capazes. Para a UE apoiar Kiev na reconstrução do país e reforço das suas defesas, o valor calculado pela Bloomberg Economics, com base em estimativas do Banco Mundial, atingirá cerca de três milhões de milhões de euros durante os próximos 10 anos. Isto não incluindo a expansão das próprias Forças Armadas da UE/NATO.
Como vai ser obtido o apoio ao clã de Kiev? Com cortes nas prestações sociais e endividamento? Imprimindo euros? E depois? O euro não é o dólar e até este recua perante o mundo multipolar.
Em três anos, a UE atribuiu a Kiev cerca de 145 mil milhões de euros em assistência financeira, militar, humanitária e aos refugiados à Ucrânia, segundo os cálculos do Serviço Europeu de Ação Externa, mas aquele valor representa menos de um sexto dos 300 mil milhões que a UE teria de gastar por ano para apoiar a Kiev, no fim da guerra e manutenção da "força de paz" europeia. Não há qualquer evidência que os países da UE estejam preparados para este esforço financeiro, envolvidos em persistente estagnação e endividamento.
Todo o plano belicista baseia-se em que a Rússia vai invadir a “Europa”. Há alguma declaração de Putin ou Lavrov que o fundamente? Documentos que o comprovem? Ou foi antes o ocidente que recusou as propostas de paz da Rússia e sabotou os acordos de Minsk? Mas para que quererá a Rússia invadir a UE, com reduzida disponibilidade de matérias-primas e de onerosa extração?
O partido que desde sempre nestes acontecimentos tem proposto a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, tem sido também o mais silenciado: o PCP. Rejeita a militarização da UE e as políticas de confronto, intervencionismo e guerra. Ao defender a solução pacífica dos conflitos internacionais, tem sido atacado por "ambiguidade" e "putinismo", o que quer que isto seja.
Estamos num momento inadiável para as pessoas se questionarem sobre qual o modelo económico que querem para a nossa economia? Que tipo de acordos comerciais? Que tipo de sistemas financeiros e de crédito? Que políticas que não imponham mais austeridade à força de trabalho? Por incrível que pareça, isto não estará presente nos debates das próximas eleições.
Na verdade, a UE a menos que mude a forma como funciona, não tem soluções para sair do declínio a que foi levada pela irrelevância e incompetência das suas lideranças. Tudo é feito para que as pessoas nem sequer avaliem a viabilidade de uma alternativa de soberania e cooperação global, realizando as necessárias transformações económicas e sociais, baseando-se nos princípios do socialismo.
[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 31 de marzo de 2025]