A secessão da União Europeia
Dadas as diferenças no seio da zona euro, os pequenos Estados iam tornar-se a presa do maior, a Alemanha. A moeda única que, no momento da sua entrada em circulação, fora ajustada ao dólar transformou-se, progressivamente, numa versão internacionalizada do marco alemão. Incapazes de competir, Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha foram simbolicamente qualificados de PIGS
Os povos dos Estados membros da União Europeia não parecem estar conscientes das nuvens negras que se amontoam sobre as suas cabeças. Identificaram os graves problemas da UE, mas tratam-nos com superficialidade e não compreendem o que se joga com a secessão britânica, o Brexit. Lentamente, eles afundam-se numa crise que poderá não ter outra saída senão a violência.
A origem do problema
Aquando da dissolução da União Soviética, os membros da Comunidade Europeia aceitaram vergar-se às decisões dos Estados Unidos e integrar os Estados da Europa Central, muito embora estes não correspondessem, de forma nenhuma, aos critérios lógicos do processo de adesão. Com base nisto, adoptaram o Tratado de Maastricht que fez bascular o projecto europeu, de uma coordenação económica de Estados Europeus, para um Estado supranacional. Tratava-se de criar um vasto bloco político que, sob a proteção militar dos Estados Unidos, iria avançar, junto com eles, na via da prosperidade.
Este super Estado que nada tem de democrático. Ele é administrado por um colégio de altos funcionários, a Comissão, cujos membros são designados, um a um, por cada um dos Chefes de Estado e de Governo. Jamais na história um Império funcionou dessa maneira. Rapidamente, o modelo paritário da Comissão deu à luz uma gigantesca burocracia comum, na qual certos Estados são «mais iguais do que outros».
O projecto supranacional mostrou-se inadaptado ao mundo unipolar. A Comunidade Europeia é originária da componente civil do Plano Marshall, do qual a OTAN é a componente militar. As burguesias europeias-ocidentais, preocupadas com o modelo soviético, apoiaram-na a partir do Congresso convocado por Winston Churchill, em Haia, em 1948. Mas, elas não tinham já qualquer interesse em prosseguir por esse caminho após o desaparecimento da URSS. Os antigos Estados do Pacto de Varsóvia hesitaram em aderir à União ou em aliar-se directamente aos Estados Unidos. Por exemplo, a Polónia comprou aviões de guerra aos americanos, que ela empregou no Iraque, com os fundos que a União lhe concedeu para modernizar a sua agricultura.
Para além da criação de uma cooperação policial e judicial, o Tratado de Maastricht criou uma moeda e uma política externa únicas. Todos os Estados-Membros tinham que adoptar o euro, assim que a sua economia nacional lhes permitisse. Apenas a Dinamarca e o Reino Unido pressentindo os problemas futuros se mantiveram à parte. A política externa parecia natural num mundo tornado unipolar e dominado pelos Estados Unidos.
Dadas as diferenças no seio da zona euro, os pequenos Estados iam tornar-se a presa do maior, a Alemanha. A moeda única que, no momento da sua entrada em circulação, fora ajustada ao dólar transformou-se, progressivamente, numa versão internacionalizada do marco alemão. Incapazes de competir, Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha foram simbolicamente qualificados de PIGS («porcos») pelos financistas. Enquanto Berlim pilhava as suas economias, propunha a Atenas restaurar a dela se esta lhe cedesse uma parte do seu território.
Constatou-se que a União Europeia, ao mesmo tempo que prosseguia o seu crescimento económico global, era ultrapassada por outros Estados cujo crescimento económico era várias vezes mais rápido.
A adesão à União Europeia, enquanto para os ex-membros do Pacto de Varsóvia era uma vantagem, tornou-se um fardo para os Europeus Ocidentais.
Tirando lições deste fracasso, o Reino Unido decidiu retirar-se deste super Estado (Brexit) para se aliar com os seus parceiros históricos da Commonwealth e, se possível, com a China. A Comissão ficou com medo que o exemplo britânico abra a via a novas retiradas, à manutenção do Mercado Comum mas ao fim da União. Ela decidiu, portanto, fixar condições dissuasórias de saída.
Os problemas internos do Reino Unido
Servindo a União Europeia os interesses dos ricos contra os pobres, os camponeses e os trabalhadores britânicos votaram para sair dela, ao mesmo tempo que o sector terciário desejou permanecer.
Se a sociedade britânica dispõe, tal como outros países europeus, de uma alta burguesia que deve o seu enriquecimento à União Europeia, ela tem também, ao contrário dos grandes países europeus, uma poderosa aristocracia. Esta dispunha, antes da Segunda Guerra Mundial, de todas as vantagens que a União Europeia oferece, mas também de uma prosperidade que já não pode esperar de Bruxelas. A aristocracia votou, portanto, pelo Brexit contra a alta burguesia, abrindo uma crise no seio da classe dirigente.
Em última análise, a escolha de Theresa May como Primeira-ministro era suposta preservar os interesses de uns e de outros («Global Britain»). Mas isto acabou por não ocorrer, de forma alguma, como previsto.
- Primeiro May não conseguiu concluir um acordo preferencial com a China e sente dificuldades com a Commonwealth, cujos laços foram diluídos pelo tempo.
- Em seguida, ela encontra obstáculos com as suas minorias escocesa e irlandesa, tanto mais que a sua maioria parlamentar inclui protestantes irlandeses ancorados nos seus privilégios.
- Por outro lado, ela esbarra na intransigência cega de Berlim e de Bruxelas.
- Por fim, ela tem de fazer face à colocação em causa da «relação especial» que ligava os seu país aos Estados Unidos.
O problema levantado pela implementação do Brexit
Depois de ter tentado em vão vários ajustes nos tratados, o Reino Unido votou democraticamente pelo Brexit, em 23 de Junho de 2016. A alta burguesia, que não acreditava nisso, tentou imediatamente colocar esta escolha em causa.
Falou-se, então, em organizar um segundo referendo, como se tinha feito com a Dinamarca aquando do Tratado de Maastricht. Parecendo a coisa impossível, distinguem agora um «Brexit duro» (sem novos acordos com a UE) de um «Brexit suave» (com a manutenção de diversos compromissos). A imprensa assegura que o Brexit será uma catástrofe económica para os Britânicos. Na realidade, os estudos anteriores ao referendo e, portanto, a este debate, atestam todos que os dois primeiros anos após a saída da União serão recessivos, mas que o Reino Unido não tardará a relançar-se e a dobrar o crescimento da União. A oposição ao resultado do referendo —e, portanto, à vontade popular— tem conseguido arrastar a sua implementação. A notificação da retirada britânica só feita pelo governo à Comissão após nove meses de atraso, a 29 de Março de 2017.
A 14 de Novembro de 2018 —ou seja, dois anos e quatro meses após o referendo— Theresa May capitula e aceita um mau acordo com a Comissão Europeia. No entanto, assim que ela o apresenta ao seu governo, sete dos seus ministros demitem-se, incluindo o encarregado pelo Brexit. Claramente, ele ignorava elementos do texto que a Primeira-ministra lhe atribui.
Este documento inclui uma disposição que é totalmente inaceitável para um Estado soberano, seja ele qual for. Ele institui um período de transição, cuja duração não é fixada, durante o qual o Reino Unido não mais será considerado como membro da União, mas será forçado a vergar-se às suas regras, aí incluídas as que vierem a ser então adoptadas.
Por trás desta manhosice escondem-se a Alemanha e a França.
Logo que o resultado do referendo britânico foi conhecido, a Alemanha tomou consciência que o Brexit provocaria uma queda, de várias dezenas de milhares de milhões de euros, do seu próprio PIB. O governo de Merkel dedicou-se, no entanto, não a adaptar a sua economia, mas, antes a sabotar a saída do Reino Unido da União.
Quanto ao Presidente francês Emmanuel Macron, ele representa a alta burguesia europeia. Ele está, portanto, por natureza, em oposição ao Brexit.
Os homens por trás dos políticos
A Chancelerina Merkel poderá contar com o Presidente da União, o polaco Donald Tusk. Este, com efeito, não está neste posto por ter sido antigo Primeiro-ministro do seu país, mas, sim por duas razões: durante a Guerra Fria, a sua família, pertencente à minoria Cachúbia, escolheu os Estados Unidos contra a União Soviética e, por outro lado, é um amigo de infância de Angela Merkel.
Tusk começou por levantar o problema do compromisso britânico nos programas plurianuais adoptados pela União. Além de Londres ter de começar por pagar o que se comprometera a financiar, não poderia deixar a União sem pagar uma taxa de saída compreendida entre 55 e 60 mil milhões de libras.
O antigo ministro e Comissário Francês Michel Barnier é nomeado negociador-chefe com o Reino Unido. Barnier tem fortes inimizades na City que ele maltratou durante a crise de 2008. Além disso, os financistas britânicos sonham gerir a convertibilidade do yuan chinês em euros.
Barnier aceita como adjunta a Alemã Sabine Weyand. Na realidade, é esta última quem conduz as negociações com a missão de as fazer falhar.
Simultaneamente, o homem que «fez» a carreira de Emmanuel Macron, o antigo Chefe da Inspecção de Finanças, Jean-Pierre Jouyet, é nomeado embaixador da França em Londres. É um amigo de Barnier com quem geriu a crise monetária de 2008. Para fazer falhar o Brexit, Jouyet apoia-se no líder conservador da oposição a Theresa May, presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros na Câmara dos Comuns, o Coronel Tom Tugendhat.
Jouyet escolheu como adjunta na embaixada francesa em Londres, a esposa de Tugendhat, a enarca francesa Anissia Tugendhat.
A crise cristalizou-se na cimeira do Conselho Europeu de Salzburgo, em Setembro de 2018. Theresa May apresenta aí o consenso que ela conseguira estabelecer em casa e que muitos outros deveriam tomar como exemplo: o plano de Chequers (manter apenas o Mercado Comum entre as duas entidades, e não a livre circulação de cidadãos, de serviços e de capitais, deixando de estar sujeita à justiça administrativa europeia do Luxemburgo). Donald Tusk rejeita-o brutalmente.
Aqui chegados é necessário voltar atrás. Os acordos que puseram fim à revolta do IRA contra o colonialismo inglês não resolveram as causas do conflito. A paz só se instalou porque a União Europeia tornou possível a revogação da fronteira entre as duas Irlandas. Tusk exige que, para prevenir o ressurgir desta guerra de libertação nacional, a Irlanda do Norte seja mantida na União Aduaneira. O que implica a criação de uma fronteira controlada pela União, cortando o Reino Unido em dois, separando a Irlanda do Norte do resto do país.
Durante a segunda sessão do Conselho, diante de todos os Chefes de Estado e de Governo, Tusk mandou fechar a porta na cara de May, deixando-a sozinha do lado de fora. Uma humilhação pública que não poderá deixar de ter consequências.
Reflexões sobre a secessão da União Europeia
Todas estas panelinhas atestam a esperteza dos dirigentes europeus para conceder a mudança. Eles simulam respeitar regras de imparcialidade e decidir colectivamente com o único propósito de servir o interesse geral (mesmo se esta noção é refutada pelos Britânicos). Na realidade, alguns defendem os interesses do seu país em detrimento dos seus parceiros e outros os da sua classe social em detrimento de toda a gente. O pior é, evidentemente, a chantagem exercida contra o Reino Unido: ou ele se submete às condições económicas de Bruxelas ou será reavivada a guerra de independência da Irlanda do Norte.
Este comportamento só pode levar ao despertar dos conflitos intra-europeus que provocaram as duas Guerras mundiais; conflitos que a União mascarou dentro de si, mas que não foram resolvidos e persistem fora da União.
Conscientes de estar a brincar com fogo, Emmanuel Macron e Angela Merkel subitamente evocaram a criação de um exército conjunto incluindo o Reino Unido. Claro, se as três grandes potências europeias se aliassem militarmente o problema seria resolvido. Mas, esta aliança é impossível, porque não se constrói um exército antes de se ter determinado quem será o seu chefe.
O autoritarismo de Estado supranacional tornou-se tal que, durante as negociações sobre o Brexit, ele criou três outras frentes. A Comissão abriu dois processos de sanções contra a Polónia e a Hungria (a pedido do Parlamento Europeu), acusadas de violações sistemáticas dos valores da União; processos cujo objectivo é colocar estes dois Estados na mesma situação que o Reino Unido durante o período de transição: serem forçados a respeitar as regras da União sem poder influenciá-las. Além disso, indisposto pelas reformas em curso na Itália, que vão contra a sua ideologia, o Estado supranacional recusa a Roma o direito de se dotar de um orçamento para executar a sua própria política.
O Mercado Comum da Comunidade Europeia havia permitido estabelecer a paz na Europa Ocidental. O seu sucessor, a União Europeia, destruiu essa herança, e opõe seus próprios membros uns aos outros.
[Artigo tirado do sitio web Rede Voltaire, do 20 de novembro de 2018]