A inflação, os lucros e a crise do custo de vida

Vicente Ferreira - 29 Mar 2023

Embora as empresas se esforcem por fazer os resultados parecer menos positivos, a verdade é que o facto de terem conseguido manter essencialmente as suas margens é revelador do enorme poder de mercado que possuem e que lhes permite proteger os lucros à custa dos consumidores e de muitos pequenos produtores

A última reunião do Banco Central Europeu (BCE) reacendeu o debate sobre a natureza da crise inflacionista que atravessamos. De acordo com economistas presentes, o banco central possui dados que mostram que as pressões inflacionistas estão associadas sobretudo ao aumento das margens de lucro das empresas e não à evolução dos salários.

 Não se pode dizer que a conclusão seja nova: os dados que o BCE tem vindo a publicar nos últimos meses mostram que os lucros e as margens das empresas estão a aumentar de forma mais acentuada do que os salários na maioria dos setores. A análise mais recente do FMI, com dados até ao terceiro trimestre do ano passado, aponta no mesmo sentido: os salários reais caíram substancialmente na maioria dos países e não há risco de estarem a alimentar a inflação.

 Na verdade, ao longo do último ano, houve uma quebra generalizada do poder de compra. Em Portugal, a queda dos salários em termos reais (isto é, tendo em conta a evolução dos preços) atingiu os 5% no ano passado, mas o excedente bruto de exploração das empresas, que traduz margens de lucro no valor acrescentado bruto, registou um aumento de 7% no 3º trimestre de 2022. Enquanto a maioria das pessoas enfrenta dificuldades crescentes para pagar as contas da luz, do gás ou do supermercado, as empresas destes setores têm registado lucros recorde.

 Um estudo publicado recentemente por Isabella Weber e Evan Wasner aponta uma explicação para este fenómeno: com os preços a aumentar de forma transversal em alguns setores, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao subir os seus preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter (ou até aumentar) as margens.

 Em Portugal, depois da atenção dada aos lucros recorde de grandes empresas da energia como a Galp ou a EDP, o foco passou a estar nas principais cadeias de supermercados, como o Continente, detido pela Sonae (que viu os lucros subir 28% no ano passado, depois de já terem subido 45,6% no ano anterior), ou o Pingo Doce, detido pela Jerónimo Martins (cujos lucros já tinham crescido 48% em 2021 e cresceram mais 27,5% em 2022).

 Embora as empresas se esforcem por fazer os resultados parecer menos positivos, a verdade é que o facto de terem conseguido manter essencialmente as suas margens é revelador do enorme poder de mercado que possuem e que lhes permite proteger os lucros à custa dos consumidores e de muitos pequenos produtores. É o que acontece em setores onde o poder está concentrado num pequeno número de grandes empresas, como o da distribuição, onde os principais supermercados têm sido frequentemente multados pelo envolvimento em esquemas de conluio e concertação de preços, sem que isso afete substancialmente o seu modelo de negócio.

 A evolução dos salários e dos lucros traduz a desigualdade que já existia na distribuição do rendimento. É verdade que a subida dos preços poderia ser acompanhada de pressão acrescida por parte dos trabalhadores para tentar garantir que os salários os acompanhavam. Só que, com a sindicalização em mínimos históricos, os trabalhadores têm cada vez menos poder negocial no conflito distributivo inerente à inflação. Tanto nos EUA como na Zona Euro, as taxas de sindicalização caíram a pique nas últimas décadas, o que foi acompanhado pela redução da parte do rendimento produzido que é recebida pelo trabalho (e pelo aumento da parte recebida pelo capital).

 A pressão para aumentos salariais é, por isso, muito menor do que na última grande crise inflacionista na década de 1970. Se a isso se juntar a política monetária recessiva do BCE e as medidas de contenção salarial de governos como o português, o resultado é uma transferência de rendimento da base para o topo. Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários: os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto.

 

[Artigo tirado do sitio web portugués setenta e quatro, do 23 de marzo de 2023]