A guerra que o Ocidente quis
O objetivo deste artigo é fornecer, na medida do possível em um espaço tão limitado, elementos contextuais necessários ausentes dos relatos oficiais e da grande mídia do Ocidente. Esses elementos mostram que a OTAN e o governo ucraniano compartilham uma grande responsabilidade, junto com a Rússia, pela guerra
Dois ditados vem à mente quando me sento para escrever sobre a guerra na Ucrânia: “a verdade está no todo” e “a verdade é a primeira vítima da guerra”.
A imagem que recebemos dos governos ocidentais e da grande mídia é a de um ditador russo enlouquecido que deseja conquistar um democrático país vizinho, interessado apenas em fazer parte de uma aliança de Estados amantes da paz. Esta é uma imagem evidentemente falsa que nos impede de desenvolver uma posição melhor informada.
Uma dificuldade particular neste caso, no entanto, é que mesmo a apresentação mais resumida do quadro geral exigiria muito espaço e tempo. Dessa forma, vou me limitar nesse artigo aos elementos mais essenciais necessários para uma posição esclarecida, elementos que estão em grande parte ausentes da narrativa dominante.
Dito isto, começo com a condenação mais forte e incondicional do governo russo por esta guerra. É uma guerra que foi escolhida e, portanto, um empreendimento criminoso. Há evidências de que apenas um círculo restrito da elite política de topo esteve envolvida na decisão de uma invasão em grande escala, que surpreendeu até mesmo pessoas relativamente próximas ao governo. Parece que a mídia estatal russa não fez nada para preparar o público.
Também parece claro que a guerra acabará sendo um grave erro para o regime. Até agora, pelo menos, ela não levou Kiev ou a OTAN a negociar seriamente. Ao mesmo tempo, a “desnazificação” da Ucrânia (a ser explicada a seguir), que é o objetivo declarado de Moscou, exigiria o controle russo efetivo da Ucrânia – o parece pouco possível. Essa invasão poderia resultar num atoleiro do tipo afegão, dada a presença dentro e fora das forças armadas ucranianas de elementos neofascistas altamente motivados.
Assim, o objetivo deste artigo é fornecer, na medida do possível em um espaço tão limitado, elementos contextuais necessários ausentes dos relatos oficiais e da grande mídia do Ocidente. Esses elementos mostram que a OTAN e o governo ucraniano compartilham uma grande responsabilidade, junto com a Rússia, pela guerra.
A OTAN vinha prevendo a guerra há semanas, condenando as concentrações de tropas russas na fronteira com a Ucrânia. No entanto, nem a OTAN, nem Kiev, fizeram a declaração que certamente teria evitado a guerra: a Ucrânia não se tornará membro da OTAN. Ainda hoje, enquanto a guerra se alastra, em vez de pressionar Kiev a negociar com base nessa promessa, a OTAN continua cinicamente decidida a defender a Ucrânia até o último ucraniano, na medida em que despeja armas e facilita a entrada de mercenários de direita. Este é o cúmulo do cinismo.
Em 7 de março a Rússia deixou claro sua condição para encerrar a operação militar: Kiev deve alterar sua Constituição para rejeitar a participação em qualquer bloco militar, reconhecer a Crimeia como parte da Rússia e as regiões de Donetsk e Lugansk como Estados independentes. Pode-se avaliar a oferta como se deseje mas, por mais repugnante e injusta que certamente pareça ao governo da Ucrânia, é um convite para aceitar uma realidade que Kiev não pode mudar e, assim. Isso permitirá parar a guerra. Em troca, o governo terá sobrevivido, salvando muitas vidas e muitas infraestruturas valiosas que um país tão pobre – o mais pobre da Europa – não pode desperdiçar.
É improvável que Kiev, atiçada pela OTAN, aceite. Afinal, nos meses que antecederam a guerra, o país rejeitou uma solução muito razoável que estava aberta a ele: neutralidade do tipo austríaco para a Ucrânia. Pior ainda, apenas alguns dias antes da invasão, o presidente da Ucrânia declarou que, se o país não fosse admitido na OTAN, ele consideraria retirar-se do memorando de Budapeste de 1994, através do qual a Ucrânia desistiu de suas armas nucleares. É difícil imaginar uma declaração melhor projetada para alimentar as já intensas preocupações de segurança de Moscou. E Putin mencionou isso em seu discurso às vésperas da guerra: “Agora eles também reivindicam o direito de possuir armas nucleares. Não vamos permitir que façam isso.”
A guerra da Rússia relaciona-se mais fundamentalmente com essas preocupações sobre segurança, e não sobre a suposta nostalgia de Putin pela URSS ou pelo império russo ou qualquer desejo de defender os direitos linguísticos e culturais da grande população russófona da Ucrânia, direitos que são chocantemente violados pelo regime em Kiev, que é apenas um pouco mais democrática que Moscou. Esse conflito definitivamente não é um confronto entre uma democracia e um regime autoritário, como retratam os políticos da OTAN e a mídia servil.
Já na década de 1990, quando o governo russo estava praticamente (e de boa vontade) sob o domínio colonial dos EUA, atores políticos de todo o espectro manifestavam sua forte oposição ao alargamento da OTAN, que violava o compromisso americano dado a Gorbachev, último líder soviético, sobre a expansão da OTAN, em troca da qual ele concordou com a reunificação alemã e a adesão da Alemanha ao bloco. O bombardeio ilegal da OTAN contra a Sérvia, um tradicional aliado russo, em 1999, apenas intensificou o alarme de Moscou.
William Burns, atual diretor da CIA e ex-embaixador na Rússia, escreveu de Moscou em 2008 à secretária de Estado, Condoleeza Rice: “A entrada da Ucrânia na OTAN é a mais evidente de todas as linhas vermelhas para a elite russa (não apenas Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com os principais atores russos, desde as raposas velhas dos sombrios corredores do Kremlin até os mais afiados críticos liberais a Putin, ainda não encontrei ninguém que veja a Ucrânia na OTAN como algo além de um desafio direto aos interesses russos…” As intervenções militares dos EUA na Sérvia 1999, no Afeganistão em 2001 e na Líbia em 2011 foram todas conduzidas sob o artigo 4 da carta da OTAN, embora a aliança afirme ser puramente defensiva.
E não é apenas a expansão da OTAN que alarma Moscou. Ela foi acompanhado pela saída americana dos principais tratados de controle de armas: em 2001, o Tratado de Mísseis Antibalísticos, pedra angular do controle de armas nos vinte anos anteriores; em 2019, o Tratado de Forças Nucleares Intermediárias, acompanhado da instalação na Europa Oriental de baterias de foguetes de curto alcance, capazes de transportar ogivas nucleares (a Ucrânia tem uma fronteira de 1200 km com a Rússia; as ogivas da OTAN podem chegar a Moscou em doze minutos); e, em 2020, o Tratado de Céus Abertos que permitia voos de reconhecimento sobre os territórios dos signatários para verificar o cumprimento e aumentar a confiança mútua. Pode-se ver que Moscou tem muitos motivos para preocupação.
Outro elemento do quadro é a insurgência no leste da Ucrânia, tipicamente reduzida pela mídia ocidental a “agressão russa”. A Rússia de fato apoiou a região separatista. E neste 21 de fevereiro, reconheceu oficialmente a independência das duas províncias. Mas esse conflito de oito anos foi, realmente, uma guerra civil, embora com intervenção estrangeira de ambos os lados. Tudo começou quando os insurgentes em Donbass se recusaram a aceitar a derrubada violenta do governo democraticamente eleito da Ucrânia em fevereiro de 2014. Em resposta, o governo recém-formado em Kiev, apoiado pelos EUA e Canadá, declarou imediatamente uma “operação antiterrorista”, enviando tropas contra os dissidentes, aos quais a Rússia logo interveio para apoiar.
Essas províncias do leste tinham motivos para resistir, pois o golpe havia sido liderado por unidades neofascistas armadas, cuja ideologia – ferozmente antirrussa, incluindo hostilidade à língua e à memória histórica russa – estava bem representada no novo governo. Naquela época, os falantes de russo constituíam quase metade da população da Ucrânia. Os neofascistas, alguns treinados pelo Canadá, desde então têm se destacado nos combates no leste, que ceifaram cerca de 14 mil vidas nos últimos oito anos, principalmente civis do lado insurgente. Em 6 de março, o bombardeio dos vilarejos do Donbass a partir do lado ucraniano da linha de demarcação ainda estava acontecendo.
Os neofascistas infiltraram-se nas forças armadas e na polícia da Ucrânia, culminando em novembro passado com a nomeação de Dmytro Yarosh, uma importante figura neofascista, como conselheiro do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas.
Em 2014-15, Kiev negociou os Acordos de Minsk com os insurgentes do leste do país, sob os auspícios da França e da Alemanha. Os acordos visavam resolver o conflito e, entre outras coisas, concediam às províncias orientais uma certa autonomia. Mas a oposição dos neofascistas impediu sua implementação. Enquanto isso, o governo eliminou o russo como língua de instrução em todos os níveis de ensino, restringiu severamente a mídia em língua russa, proibiu os partidos comunistas da Ucrânia, prendeu figuras proeminentes simpatizantes da Rússia e propagou energicamente a versão neofascista antirrussa da história da Ucrânia.
Em abril de 2019, Zelensky recebeu 73,2% dos votos, concorrendo com uma plataforma de paz. Mas ele imediatamente enfrentou forte oposição, liderada por elementos neofascistas, que incluíam ameaças claras à sua vida. Um mês após as eleições, Yarosh declarou publicamente que “se Zelensky trair a Ucrânia, ele perderá não apenas sua posição, mas sua vida”. Levou apenas alguns breves meses para ele abandonar qualquer esforço para dar vida aos acordos de Minsk e adotar as posições bélicas de seu oponente derrotado.
A eliminação da influência ultranacionalista e neofascista é o que Putin quis dizer em seu discurso às vésperas da guerra, quando pediu a “desnazificação” da Ucrânia. Essa é uma condição para garantir que a Ucrânia permaneça fora da OTAN, bem como para a segurança dos moradores de Donetsk e Lugansk, regiões reconhecidas como Estados independentes pela Rússia em 15 de fevereiro, e para a proteção dos direitos culturais e linguísticos dos população russófona da Ucrânia
A maior parte deste artigo foi dedicada à responsabilidade da OTAN e de Kiev nesta guerra, uma vez que isso foi completamente ofuscado pelo governo de meu país – o Canadá – e pela grande mídia. Mas, por mais que Moscou tenha sido incitada à guerra, os russos tomaram a decisão e, portanto, têm a maior responsabilidade. Isso está bem claro mas o Canadá, ao incitar Kiev em uma guerra que não pode vencer, em vez de pressionar a OTAN a declarar que nunca aceitará a Ucrânia em suas fileiras, carrega um fardo muito pesado de responsabilidade. Como canadenses, compartilhamos isso se permanecermos em silêncio sobre a política de nosso governo.
[Artigo tirado do sitio web brasileiro Outras Palavras, do 10 de marzo de 2022]