A Europa sonâmbula caminha em meio aos seus próprios dilemas

Vijay Prashad - 04 Abr 2024

Apesar de toda a fanfarronice europeia sobre a derrota da Rússia, avaliações sóbrias dos exércitos europeus mostram que os Estados europeus simplesmente não têm a capacidade militar terrestre para travar uma guerra agressiva contra a Rússia e muito menos para se defenderem adequadamente

 A 19 de março de 2024, o chefe das forças terrestres francesas, o general Pierre Schill, publicou um artigo no jornal Le Monde, com um título contundente:   "O Exército está pronto". Schill afiou os seus dentes nas aventuras ultramarinas da França na República Centro-Africana, no Chade, na Costa do Marfim e na Somália. Neste artigo, o General Schill escreveu que as suas tropas estão "prontas" para qualquer confronto e que poderia mobilizar 60 000 dos 121 000 soldados franceses no espaço de um mês para qualquer conflito. Citou a velha frase latina – "se queres a paz, prepara-te para a guerra" – e depois escreveu:   "As fontes de crise multiplicam-se e comportam riscos de entrar em espiral ou de se estenderem". O General Schill não mencionou o nome de nenhum país, mas ficou claro que a sua referência era à Ucrânia, uma vez que o artigo foi publicado cerca de duas semanas depois de o Presidente francês Emmanuel Macron ter dito, a 27 de fevereiro, que as tropas da NATO poderiam ter de entrar na Ucrânia.

 Poucas horas depois de Macron ter feito a sua indelicada declaração, o conselheiro de segurança nacional do Presidente dos EUA, John Kirby, afirmou:   "Não haverá tropas americanas no terreno em funções de combate na Ucrânia". Isto foi direto e claro. A visão dos Estados Unidos é sombria, com o apoio à Ucrânia a diminuir muito rapidamente. Desde 2022, os EUA forneceram mais de 75 mil milhões de dólares em ajuda à Ucrânia (47 mil milhões de dólares em ajuda militar), de longe a assistência mais importante ao país durante a sua guerra contra a Rússia. Contudo, nos últimos meses, o financiamento dos EUA – em particular a assistência militar – tem sido travado no Congresso dos EUA por republicanos de direita que se opõem a que mais dinheiro seja dado à Ucrânia (isto é menos uma declaração sobre geopolítica e mais uma afirmação de uma nova atitude dos EUA de que outros, como os europeus, devem suportar o fardo destes conflitos). Enquanto o Senado dos EUA aprovou uma dotação de 60 mil milhões de dólares para a Ucrânia, a Câmara dos Representantes dos EUA permitiu a votação de apenas 300 milhões de dólares. Em Kiev, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, implorou ao governo ucraniano para "acreditar nos Estados Unidos". Temos prestado um enorme apoio e continuaremos a fazê-lo todos os dias e de todas as formas que soubermos", afirmou. Mas este apoio não será necessariamente ao nível do que foi durante o primeiro ano da guerra.

O congelamento da Europa

 Em 1 de fevereiro, os líderes da União Europeia concordaram em conceder à Ucrânia 50 mil milhões de euros em "subvenções e empréstimos altamente concessionais". Este dinheiro destina-se a permitir ao governo ucraniano "pagar salários, pensões e prestar serviços públicos básicos". Não se destinará diretamente ao apoio militar, que começou a falhar em toda a linha e que provocou novos tipos de discussões no mundo da política europeia. Na Alemanha, por exemplo, o líder do Partido Social-Democrata (SDP) no parlamento – Rolf Mützenich – foi criticado pelos partidos de direita por ter utilizado a palavra "congelamento" no que respeita ao apoio militar à Ucrânia. O governo ucraniano estava ansioso por adquirir mísseis de cruzeiro de longo alcance Taurus à Alemanha, mas o governo alemão hesitou em fazê-lo. Esta hesitação e o facto de Mützenich ter utilizado a palavra "congelamento" criaram uma crise política na Alemanha.

 De facto, este debate alemão em torno de novas vendas de armas à Ucrânia reflecte-se em quase todos os países europeus que têm estado a fornecer armas para a guerra contra a Rússia. Até à data, os dados das sondagens em todo o continente mostram grandes maiorias contra a continuação da guerra e, por conseguinte, contra a continuação do armamento da Ucrânia para essa guerra. Uma sondagem realizada em fevereiro para o Conselho Europeu de Relações Externas mostra que "uma média de apenas 10 (por cento) dos europeus em 12 países acredita que a Ucrânia vai ganhar". A opinião prevalecente em alguns países", escrevem os analistas da sondagem, "é que a Europa deveria espelhar um EUA que limita o seu apoio à Ucrânia, fazendo o mesmo, e encorajar Kiev a fazer um acordo de paz com Moscovo". Esta visão está a começar a entrar nas discussões mesmo das forças políticas que continuam a querer armar a Ucrânia. O deputado do SPD, Lars Klingbeil, e o seu líder, Mützenich, afirmam que será necessário iniciar negociações, embora Klingbeil tenha dito que tal não acontecerá antes das eleições norte-americanas de novembro e que, até lá, tal como Mützenich afirmou, "penso que o mais importante agora é que (a Ucrânia) obtenha munições de artilharia".

Militar e não climático

 Já não importa se Donald Trump ou Joe Biden ganham as eleições presidenciais dos EUA em novembro. Seja como for, as opiniões de Trump sobre as despesas militares europeias já prevaleceram nos Estados Unidos. Os republicanos pedem que o financiamento dos EUA para a Ucrânia seja abrandado e que os europeus preencham a lacuna aumentando as suas próprias despesas militares. Este último ponto será difícil, uma vez que muitos Estados europeus têm limites de endividamento; se tiverem de aumentar as despesas militares, isso far-se-á à custa de programas sociais preciosos. Os dados das sondagens da própria NATO revelam uma falta de interesse da população europeia por uma mudança das despesas sociais para as militares.

 Um problema ainda maior para a Europa é o facto de os seus países terem reduzido os investimentos relacionados com o clima e a aumentar os investimentos relacionados com a defesa. O Banco Europeu de Investimento (criado em 2019) está, como noticiou o Financial Times, "sob pressão para financiar mais projectos na indústria do armamento", enquanto o Fundo Europeu de Soberania – criado em 2022 para promover a industrialização na Europa – vai orientar-se para o apoio às indústrias militares. As despesas militares, por outras palavras, vão sobrepor-se aos compromissos de investimentos climáticos e investimentos para reconstruir a base industrial da Europa. Em 2023, dois terços do orçamento total da NATO, no valor de 1,2 mil milhões de euros, provêm dos Estados Unidos, o que representa o dobro do que a União Europeia, o Reino Unido e a Noruega gastaram nas suas forças armadas. A pressão de Trump para que os países europeus gastem até 2% do PIB com os seus exércitos marcará a agenda, mesmo que ele perca as eleições presidenciais.

Podem destruir países, mas não podem ganhar guerras

 Apesar de toda a fanfarronice europeia sobre a derrota da Rússia, avaliações sóbrias dos exércitos europeus mostram que os Estados europeus simplesmente não têm a capacidade militar terrestre para travar uma guerra agressiva contra a Rússia e muito menos para se defenderem adequadamente. Uma investigação do Wall Street Journal sobre a situação militar europeia tinha o título espantoso de "Alarme cresce com militares enfraquecidos e arsenais vazios na Europa". O exército britânico, salientavam os jornalistas, tem apenas 150 tanques e "talvez uma dúzia de peças de artilharia de longo alcance utilizáveis", enquanto a França tem "menos de 90 peças de artilharia pesada" e o exército alemão "tem munições suficientes para dois dias de batalha". Se forem atacados, dispõem de poucos sistemas de defesa aérea.

 A Europa tem confiado nos Estados Unidos para efetuar os bombardeamentos e combates pesados desde a década de 1950, incluindo nas recentes guerras no Afeganistão e no Iraque. Devido ao aterrador poder de fogo dos EUA, estes países do Norte Global são capazes de arrasar países, mas não conseguiram ganhar nenhuma guerra. É esta atitude que gera desconfiança em países como a China e a Rússia, que sabem que, apesar da impossibilidade de uma vitória militar do Norte global contra eles, não há razão para que estes países – liderados pelos Estados Unidos – não arrisquem o Armagedão, porque têm o músculo militar para o fazer.

Essa atitude dos Estados Unidos – espelhada nas capitais europeias – produz mais um exemplo da arrogância e da prepotência do norte global:   a recusa em sequer considerar negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Para Macron, dizer coisas como a possibilidade de a NATO enviar tropas para a Ucrânia não só é perigoso, como põe em causa a credibilidade do Norte global. A NATO foi derrotada no Afeganistão. É pouco provável que obtenha grandes ganhos contra a Rússia.

 

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 2 de abril de 2024]