A economia de que não se fala

Daniel Vaz de Carvalho - 29 Abr 2024

A menos que se mude a forma como a política fiscal é feita, continuará a ser capturada pelos interesses da elite ultra-rica. É preciso mudar o equilíbrio de poder para que as necessidades dos cidadãos comuns estejam em primeiro lugar. A criação de novos impostos sobre os ultra-ricos e os lucros excessivos em todo o mundo poderia gerar 1,8 milhões de milhões de dólares por ano

O equilíbrio e o caos

 O chamado “equilíbrio automático dos mercados livres” é uma falácia. Na física, na química fala-se em fenómenos estáveis e instáveis. Mas a estabilidade não é imutabilidade. A passagem de um estado estável para outro faz-se através de fases instáveis que podem dar origem a um novo estado estável (se a transição for controlada num sentido que a ciência pode pré-determinar) ou dar origem a estados instáveis ditos caóticos, dado não atingirem a estabilidade, definindo-se o conceito matemático de “atrator caótico”.

 Sistemas complexos e dinâmicos, podem apresentar fenómenos de instabilidade, nomeadamente devido às suas condições iniciais e consequentes efeitos, que os tornam instáveis e dificilmente previsíveis para além do curto prazo. As transformações de energia são exemplos de estados instáveis para obter uma estabilidade de maior qualidade. Porém, se a transformação não for controlada, teremos uma situação caótica: incêndio, explosão, rebentamento, etc.

 Estas noções são aplicáveis à economia, evidenciadas na ortodoxia do mercado livre. O mercado livre – ou a economia de guerra – contêm fatores caóticos, que se traduzem em sucessivas crises. Crises que têm sido apenas minoradas com austeridade e endividamento do Estado, famílias e empresas, geradores de novas crises. Claro que o “puro” mercado livre não existe nem nunca existiu, apesar dos fundamentalistas liberais e a alguns partidos de extrema-direita o reivindicarem, como condimento dos mitos da sua demagogia.

 O keynesianismo conseguiu alguma estabilidade económica e progresso social, dado o Estado controlar a finança, estabelecer o planeamento económico, deter importantes sectores económicos, ter como função substituir-se ao capital privado quando este não realizasse o que que estava estabelecido como necessário e prioritário. A prioridade do keynesianismo era o emprego, não a inflação, o que levava ao aumento de salários e portanto ao aumento da procura e ao investimento produtivo. As teses do keynesianismo sobre comércio internacional, opunham-se claramente ao comércio livre.

 De qualquer forma, o keynesianismo na teoria ou com as nuances próprias da sua aplicação prática, sempre se limitou a garantir a sobrevivência do capitalismo, não podendo por isso escapar às contradições enunciadas pelo marxismo. Porém, o aprofundamento das suas medidas levaria a formas de transição para o socialismo. O grande capital transnacional compreendeu-o, decidindo elimina-lo dos media, da literatura, das políticas, das escolas e universidades. Hoje dificilmente se encontra (pelo menos no ocidente) um jovem licenciado que saiba exatamente do que se trata. Keynes é tão amaldiçoado como Marx.

Aumentos salariais: “atratores de caos” para a direita

 Estabelecida a ortodoxia neoliberal, o combate à inflação passou a ser a prioridade no interesse da finança agiota e especuladora, o salário uma variável de segunda ordem, dependente do mercado. Para a direita o salário dos gestores é decidido pelos acionistas, no essencial por eles próprios; o salário dos trabalhadores pela oferta e procura de emprego, mas atenção: na “democracia liberal” (a ditadura oligárquica) caso a procura leve ao aumento dos salários o Estado intervém na farsa dita “concertação social” para os limitar, adotando o critério fascizante da conciliação de classes, a que a social-democracia adere religiosamente.

 É assim que, por exemplo a EDP, num contexto de alta de preços ao consumidor, pode em 2024 distribuir aos acionistas 800 milhões de euros e pagar ao Administrador Executivo 2 milhões por ano, conforme exposto pelos Sindicatos, mas aumentando os salários dos trabalhadores abaixo da inflação.

 Para a ortodoxia vigente os salários têm de estar controlados, caso contrário causam inflação, sendo na sua perspetiva fatores de crise, “atratores caóticos”, dizemos. Objetivamente, a questão salarial tem que ver com equilíbrios económicos, mas tanto os lucros como os salários podem tornar-se “atratores caóticos”.

 No seguimento do 25 de ABRIL de 1974, vários grupos qualificados como esquerdistas faziam o maior barulho que podiam com reivindicações totalmente irrealistas, usando a estratégia do “já”. A direita e a social-democracia sopravam-lhe as velas, sendo a forma de sabotar propostas progressistas e a participação popular na “batalha da produção” do governo provisório de Vasco Gonçalves e da esquerda consequente em nome do desenvolvimento económico e social. Quando a política de direita passou a ser programática dos governos, estes excitados “ultra-revolucionários” evaporaram-se. A sua missão estava cumprida.

 Sendo os salários (para simplificar incluímos aqui reformas e pensões) um fator de equilíbrio económico, há que considerar que:

  • só se vende o que os salários podem comprar. Assim sendo, tal poderá conduzir a um peso excessivo na Balança Comercial e consequentes défices. O equilíbrio neste conflito de objetivos compete ao planeamento estabelecer. O planeamento representa a possibilidade de uma correta repartição do RN entre o investimento e a satisfação das necessidades sociais, ou seja, refletir a avaliação que a sociedade está disposta a considerar entre consumo atual e consumo futuro, equivalente a uma taxa de juro em termos sociais.
  • os salários devem permitir a reprodução da força de trabalho, ou seja, novos trabalhadores com as qualificações necessárias ao desenvolvimento económico e tecnológico, com políticas sociais de natalidade, educação, emprego.
  • devem ser um fator de motivação positiva visando o aumento da produtividade.

 A questão dos salários tem solução no planeamento macroeconómico, algo que cada vez menos gente saiba o que seja (isto no ocidente), dado ter sido banida pela inquisição neoliberal como heresia “iliberal” e totalitarismo.

 A economia vigente, administrada pelos burocracias da UE, é decidida nas Conferências de Davos, reuniões do G7 e também no secretismo do Institut International d'Etudes Bancaires, à margem de qualquer processo democrático. A solução imposta para alcançar equilíbrios económicos é a austeridade nos salários e nas prestações sociais do Estado, constrangendo os países aos seus dogmas. Contudo, as funções sociais do Estado representam um salário indireto, permitindo viabilizar atividades produtivas e aumentar a competitividade no mercado externo.

Sabendo-se que os custos salariais das empresas representam entre 18 a 23% dos custos de produção, há que procurar nos lucros, incluindo a montante, as razões para a falta de competitividade, inflação, dificuldades de tesouraria e outros impedimentos ao seu desenvolvimento.

 A austeridade não é portanto solução alguma, é antes um atrator de caos, isto é, de crise permanente, mascarada com oscilações conjunturais e propaganda, tarefa conduzida pelos políticos do sistema e pelos media.

O lucro como “atrator de caos”

 O lucro será um fator de equilíbrio se for considerado o resultado da transformação do valor em preço, permitindo dentro deste princípio o planeamento macroeconómico. Será um “atrator de caos” se for a resultante do que o mercado avalia, considerando-se neste critério que toda a interferência estatal é ineficiente.

 A OXFAM mostra o resultado da pretensa eficiência dos ditos mercados. De acordo com um relatório da OXFAM de 2023, os lucros das empresas seguem uma tendência de alta há décadas. Antes da pandemia, as empresas da Global Fortune 500 aumentaram seus lucros em 156%, de 820 mil milhões de dólares em 2009 para 2,1 milhões de milhões em 2019. Estes lucros subindo para níveis cada vez mais altos são um dos principais fatores de crise do custo de vida. Detetam-se níveis impressionantes de lucros inesperados (10% acima de seu lucro líquido médio de 2018-2021); em 95 empresas que tiveram lucros inesperados estes representaram 306 mil milhões de dólares, mais de duas vezes e meia em 2022 relativamente à média de 2018-2021, pagando 257 mil milhões aos acionistas em 2022.

 A guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia – desde 2014 – contribuíram para um aumento do preço da energia e dos alimentos. As empresas de alimentos e energia mais que duplicaram os lucros em 2022, mas mais de 800 milhões de pessoas foram para a cama com fome.

 Evidências mostram que os lucros das empresas são um fator significativo da inflação. As empresas não apenas repassam o aumento dos custos dos bens para os consumidores, mas também capitalizam a crise, usando-a como cortina de fumo para preços ainda mais altos. Nos EUA, Reino Unido e Austrália, estudos constataram que 54%, 59% e 60% da inflação, foram impulsionados pelo aumento dos lucros.

 A explicação dada para a inflação é a procura exceder a oferta, argumento que dá jeito para aplicar a austeridade sobre a população. No entanto, muitos setores, são dominados por oligopólios, permitindo-lhes manter preços elevados sem serem prejudicados pela concorrência. Quando os custos externos caem, essas economias são passadas aos acionistas e não aos consumidores, que suportam o aumento dos preços.

 As fortunas dos cinco homens mais ricos mais que duplicaram desde 2020, aumentando 114%, enquanto centenas de milhões de pessoas sofrem cortes nos salários reais. Segundo um estudo da Research School of International Taxation em 142 países mostrou que para cada 1% em cortes de impostos para empresas, os governos aumentaram os impostos sobre o consumo em 0,35%.

 A riqueza acumulada por aqueles que estão no topo, acelerou. Desde 2020, para cada dólar que os 90% mais pobres ganharam, os ultramilionários obtiveram 1,7 milhões. O 1% mais rico capturou quase dois terços de toda a nova riqueza, 6 vezes mais do que os 90% mais pobres da humanidade. As fortunas ultramilionárias aumentaram 2,7 mil milhões de dólares, enquanto a inflação degradou os salários de pelo menos 1,7 mil milhões de trabalhadores. O 1% mais rico ganhou 74 vezes mais riqueza do que os 50% mais pobres nos últimos 10 anos, detendo 45,6% da riqueza global, enquanto a metade mais pobre do mundo tem apenas 0,75%.

 Um imposto de 5% sobre os multimilionários e ultramilionários do mundo poderia arrecadar 1,7 milhões de milhões por ano, o suficiente para tirar 2 mil milhões da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome, mas as taxas máximas de imposto sobre o rendimento tornaram-se mais baixas e menos progressivas. Na maioria dos países de maiores rendimentos, as taxas de imposto sobre ganhos de capital, são apenas de 18%, em média. Muitos dos homens mais ricos do planeta pagam quase nenhum imposto. Elon Musk, um dos mais ricos demonstrou pagar uma "real taxa de imposto" de 3,2%, outro dos mais ricos, Jeff Bezos, paga menos de 1%. Um pequeno comerciante pode pagar 40% sobre os seus lucros.

 Aos ultra-ricos é possibilitada toda uma gama de ferramentas para evitarem pagar impostos:   comprar ativos, usar a riqueza e poder para fazer lóbi, ignorar regras ficais, utilizar paraísos fiscais, pressionar políticos e os media no sentido dos seus interesses. Por cada dólar arrecadado em impostos, apenas quatro centavos vêm de impostos sobre a riqueza.

 Segundo a OXFAM, cada ultramilionário é um fracasso político. Concentrações extremas de riqueza minam o crescimento económico, corrompem a política e os media, corroem a democracia e impulsionam a polarização política. São neste sentido um “atrator caótico”.

 Em 2020, a pobreza extrema (menos de 2,15 dólares por dia) teve um aumento de 11%. Perante a crise económica, os trabalhadores são desde logo chamados a compensarem a ineficiência do sistema, com cortes nos salários reais, desemprego e colocados numa posição vulnerável devido a aumentos nas taxas de juro.

 Em "Capitalism, Food, and Social Movements: The Political Economy of Food System Transformation", considera-se que mesmo a estimativa de mil milhões de pessoas afetadas pela fome está subestimado, devido a como a fome é definida:   as pessoas só são assim identificadas se passarem fome 12 meses por ano, baseada na ingestão diária de cerca de 2 000 calorias, mas a maioria das pessoas com fome trabalha sob um sol quente todo o dia e estão amamentando uma ou mais crianças, precisando até 5 000 calorias.

 O resultado da “economia de mercado” do neoliberalismo é um sistema que traz inflação, fome e desperdício, defendido pela direita e pelos media financiados por aqueles cujo interesse reside em acumular riqueza ilimitada sem levar em conta os danos sociais. Para absolver o "mercado" de qualquer responsabilidade retomam o argumento do maltusianismo da superpopulação, que urgem liquidar. A isto chegámos.

 Como afirma o relatório da FAO The State of Food Security and Nutrition in the World 2023 ,"a fome global em 2022, medida pela prevalência de subnutrição, permaneceu muito acima dos níveis pré-pandemia". O relatório estima que cerca de 10% da população mundial "enfrenta fome cronica" – cerca de 122 milhões de pessoas a mais estavam nessa categoria em 2022 do que em 2019. Usando uma medida mais ampla, mais de um quarto da população mundial está em "insegurança alimentar".

 Que tipo de "eficiência" vê então milhares de milhões subalimentados? Um sistema que leva a resultados tão desumanos e indesculpáveis não pode ser considerado eficiente, é na realidade um fracasso abismal.

 Qual o papel da esquerda neste contexto?

 Neste caso, pelo que se vê, mais vale parecer do que ser. Para muitos ser esquerda ou direita é como ser de um clube, contra outros em que se pratica o mesmo jogo, apenas com táticas diferentes. As regras são definidas em Washington e pelos seus agentes em Bruxelas.

 De acordo com o relatório da OXFAM de 2023, tributar os mais ricos não é mais uma opção, é uma obrigação. A desigualdade global explodiu não havendo, segundo a OXFAM, melhor maneira de combater a desigualdade do que redistribuindo a riqueza. Neste sentido, apresentou um conjunto de propostas visando reduzir as desigualdades e que nos permitem avaliar que “esquerda” concretamente as apoia e programa pôr em prática. Note-se que os impostos são uma forma de redistribuição de riqueza. Alguém ouve os media salientarem este aspeto? Este silêncio leva areia para a carroça da extrema-direita, cuja propaganda diz que impostos são roubo e servem para pagar a corrupção. É assim que muitos dos que mais precisam daquela redistribuição, aderem a esta alarvidade.

 A menos que se mude a forma como a política fiscal é feita, continuará a ser capturada pelos interesses da elite ultra-rica. É preciso mudar o equilíbrio de poder para que as necessidades dos cidadãos comuns estejam em primeiro lugar. A criação de novos impostos sobre os ultra-ricos e os lucros excessivos em todo o mundo poderia gerar 1,8 milhões de milhões de dólares por ano.

 Das medidas da OXFAM destacamos:

  • um sistema de imposto de rendimentos pessoais altamente progressivo sobre os rendimentos dos mais ricos, incluindo rendimentos pessoais e ganhos de capital, muito superior às dos trabalhadores comuns e da classe média.
  • introduzir taxas marginais mais altas para o 1% mais rico e para remunerações acima de 5 milhões de dólares por ano, desencorajando altíssimas remunerações de executivos.
  • eliminar isenções fiscais e brechas nos sistemas tributários que beneficiam os mais ricos.
  • promulgar uma legislação eficaz para os impostos sobre capital e lucros excessivos e uma maior regulação das empresas, de forma a que os mercados deixem de estar sob controlo dos multimilionários.

 A OXFAM defende ainda a intervenção estatal, investindo nos serviços públicos como Saúde e Educação e em participações em setores essenciais como os da Energia e Transportes. Os Governos têm de intervir para acabar com os monopólios/oligopólios (nacionalizando-os ou criando concorrência de empresas públicas), dar poder aos trabalhadores, tributar os enormes lucros das empresas e, sobretudo, investir numa nova era de bens e serviços públicos.

 Concluindo, note-se que a OXFAM para além das evidências que apresenta apenas pretende melhorar o sistema, nunca substituí-lo. Contudo, apenas o sistema socialista foi e é capaz de eliminar totalmente a pobreza, como a China mostrou. Lembremos o que era este país em 1949, ou a União Soviética em 1922 – fim da dita “guerra civil”. Quanto às justas medidas da OXFAM pergunta-se: quem vai por a coleira ao gato? Não é de certeza o gato…

 

[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 27 de abril de 2024]