A dívida neocolonial de Porto Rico
Actualmente Porto Rico encontra-se esmagado por uma dívida de cerca de 73 mil milhões de dólares. Esta dívida resulta em grande medida do estatuto colonial de Porto Rico e do domínio dos EUA sobre o território
Em 1898 os EUA declararam guerra à Espanha, a fim de «libertarem» Cuba do domínio espanhol. A Espanha vencida assinou o Tratado de Paris em Dezembro de 1898, segundo o qual aceitava a independência de Cuba e cedia aos EUA o controlo de vários territórios além-mar, entre os quais Porto Rico (os outros foram as Filipinas, que alcançaram a independência em 1946, e Guam, uma ilha do Pacífico que permanece sob controlo americano, com um estatuto equivalente ao de Porto Rico).
Porto Rico viria a obter uma autonomia parcial em 1952; nunca alcançou a independência, mas também nunca foi plenamente incorporada nos Estados Unidos. Os Porto-riquenhos têm nacionalidade norte-americana mas não adquirem os direitos correspondentes, a não ser que emigrem para o continente. Podem votar para eleger o governador, mas não podem participar na eleição do presidente dos EUA. As importações porto-riquenhas são inteiramente controladas pelos EUA, graças a uma lei colonial de 1920, o Merchant Marine Act, que estipula que todas as mercadorias destinadas a Porto Rico têm de ser entregues no continente e só depois seguem para a ilha em barcos norte-americanos. Por fim, e ao contrário doutras colectividades norte-americanas, quer se trate de cidades ou de Estados, Porto Rico não pode declarar-se em bancarrota, como fez Detroit em 2013, de modo a renegociar a sua dívida ao abrigo de processos judiciais que envolvem os credores. Na realidade, Porto Rico é uma colónia norte-americana – a história recente da ilha, com uma dívida colossal, prova-o mais uma vez.
Uma dívida odiosa e insustentável
Actualmente Porto Rico encontra-se esmagado por uma dívida de cerca de 73 mil milhões de dólares, o que, à escala da sua população, é 10 vezes superior à média dos Estados norte-americanos. Esta dívida resulta em grande medida do estatuto colonial de Porto Rico e do domínio dos EUA sobre o território, transformado durante algum tempo em paraíso fiscal para as empresas e os investidores norte-americanos, graças a uma série de benefícios fiscais – nomeadamente a famosa tripla isenção de imposto sobre os títulos da dívida porto-riquenha. |1| A crise de 2008, a diminuição do fluxo turístico e as medidas de austeridade aplicadas nos últimos 15 anos completam este quadro.
As consequências desta situação são simplesmente desastrosas para a população, que sofre uma verdadeira crise humanitária, com agravamento da pobreza e das desigualdades. Fecham-se escolas às centenas, os hospitais cerram as portas por falta de meios e de pessoal, a emigração para o continente atinge níveis recorde (passando duma dezena de milhar antes de 2010, para uma média de 48 000 por ano entre 2010 e 2014) e a segurança social esboroa-se: queda dos salários, subida das quotizações, diminuição das comparticipações das despesas de saúde, etc. Actualmente em Porto Rico mais de uma criança em cada duas vive abaixo do limiar de pobreza.
Todos estes elementos bastam para mostrar que a dívida de Porto Rico é odiosa – tal como o estatuto colonial da ilha – e insustentável, pois o reembolso e o pagamento dos juros têm um efeito destrutivo sobre a população. Por conseguinte esta dívida deveria ser repudiada por um acto unilateral do Governo de Porto Rico, que de seguida deveria assegurar os direitos fundamentais da população. Mas para isso é necessária uma vontade política forte, progressista e mesmo radical que o Governo de Porto Rico está longe de encarnar. Nas eleições nacionais de Novembro de 2016, os habitantes – que, recorde-se, não podem votar nas presidenciais norte-americanas – foram chamados a votar num novo governador. Trata-se na realidade de um representante da direita que foi colocado no poder, tendo por missão sanear as contas (via políticas de austeridade) e fazer de Porto Rico um Estado incorporado nos EUA, a 51ª estrela da bandeira – proposta pela qual Trump mostrou algum interesse durante a campanha, mas que provavelmente não será levada por diante, nomeadamente por causa da monumental dívida de Porto Rico e de diferenças de fundo em matéria de rendimento, protecção social, etc.
Uma dívida ilegal
Os movimentos sociais tomaram em mãos a questão da dívida, reclamando a realização duma auditoria da dívida para esclarecer as suas origens e o seu eventual carácter odioso, ilegítimo, ilegal ou insustentável, com vista a reclamar a anulação total ou parcial com base em argumentos fundamentados no direito nacional e internacional. O colectivo VAMOS4PR constituiu uma comissão que reúne várias organizações cívicas, sindicatos, eleitos locais e simples cidadãos. Produziu um primeiro relatório que aponta várias pistas sobre a ilegalidade da dívida de Porto Rico. Infelizmente esta comissão não reúne há vários meses, por falta de meios, e o trabalho encontra-se suspenso. Vale no entanto a pena reter as pistas já avançadas, que apontam para que uma grande parte da dívida de Porto Rico seja ilegal, por ter sido contraída em contradição com a Constituição da ilha. De facto, a lei fundamental estipula várias obrigações do Governo, entre as quais:
a manutenção de um orçamento equilibrado e a interdição de pedir empréstimos para cobrir o défice. No entanto Porto Rico contraiu empréstimos cujo valor total é superior a 30 mil milhões de dólares, para financiar o seu défice desde 1979;
a proibição de gastar mais de 13 % dos rendimentos [da administração pública] no pagamento de juros da dívida. Actualmente a quantia despendida oscila entre 14 e 25 %;
a proibição de emitir títulos [de dívida] com maturidade superior a 30 anos. Ora o Governo de Porto Rico faz «rolar a dívida», como fazem quase todos os países, ou seja, pede emprestado para reembolsar os empréstimos precedentes. A comissão cita o exemplo duma dívida emitida em 2003, por sua vez emitida para refinanciar a dívida de 1987.
Estas pistas são sérias e merecem ser aprofundadas. E não são as únicas – outros investigadores e economistas têm-se debruçado sobre a dívida porto-riquenha, apontando o dedo, por exemplo, ao papel dos bancos privados …
Uma dívida ilegítima
É interessante verificar até que ponto os bancos conseguem ser criativos, quando se trata de encontrar formas de enriquecer à custa dos outros. Neste capítulo nada ou quase nada foi poupado a Porto Rico. Apesar do facto de a Constituição da ilha estabelecer regras estritas sobre a gestão da dívida pública, o Estado e as empresas públicas conseguiram, com a ajuda dos bancos, atingir um nível de endividamento espantoso, graças, entre outras coisas, ao fenómeno da capitalização dos juros, que age a vários níveis:
os CAB (capital appreciation bonds): são obrigações sobre as quais o emissor só pagar os juros e o rembolso do capital no fim do prazo de maturidade do título. Mas entretanto, todos os anos, os juros acumulados são convertidos em capital e acrescentados ao montante inicial. No ano seguinte os juros serão por conseguinte calculados sobre o capital total, ou seja, o capital inicial acrescido dos juros dos anos precedentes (ver esquema mais abaixo). No caso de Porto Rico, o sistema revela-se particularmente compensador para os investidores, pois segundo um estudo |2|, dos 37,8 mil milhões $ de dívida CAB, o capital inicial representa apenas 4,3 mil milhões. Estamos portanto perante um montante de 33,5 mil milhões $ de juros, que são o lucro dos bancos. Fazendo a equivalência para os títulos clássicos, estaríamos perante uma taxa de juro de 785 %! |3|
o refinanciamento da dívida: embora de forma ilegal à face da Constituição, Porto Rico parece ter-se tornado mestre na subtil arte de fazer rolar a dívida, isto é, de contrair mais dívida para reembolsar dívidas antigas – prática corrente na maioria dos estados, mas que no caso da ilha porto-riquenha atingiu proporções inauditas. A administração de Porto Rico, juntamente com todas as empresas públicas, acumula actualmente 134 mil milhões $ de dívida; metade desta, exactamente 61,5 mil milhões $, foi emitida para refinanciar antigas dívidas. Mas estes refinanciamentos não foram feitos para tirar proveito de taxas de juro mais confortáveis ou por os antigos títulos terem atingido o prazo de maturidade sem que o Governo de Porto Rico e as empresas públicas fossem capazes de honrar as dívidas. Esta multiplicação de operações de refinanciamento resulta do enorme interesse dos bancos e dos investidores norte-americanos nos títulos da dívida de Porto Rico, que lhes permitem beneficiar de tripla isenção de impostos (local, estatal e federal – caso único nos EUA) e de taxas de juro cada vez mais elevadas, à medida que a situação se deteriora. De modo que os bancos incitaram Porto Rico a fazer rolar a sua dívida a um ritmo desenfreado, para emitirem um máximo de títulos, que os investidores açambarcavam. Sucede que, quando se refinancia uma dívida antiga, os juros devidos e a cobrar da dívida antiga são transformados em capital na nova dívida. Os juros da nova dívida vão portanto constituir uma soma muito maior que os juros da dívida antiga. Estamos novamente perante um truque de capitalização de juros.
A capitalização dos juros coloca um duplo problema ao devedor: aumenta consideravelmente o custo do serviço da dívida, transformando o lucro dos investidores (o montante dos juros) em nova dívida, acrescentada ao montante inicial da dívida original. No caso dos CAB, os números são particularmente significativos: dos 37,8 mil milhões $ de dívida CAB de Porto Rico, o capital inicial era apenas 4,3 mil milhões. A diferença, ou seja 33,5 mil milhões, resulta dos juros – por outras palavras, é a renda dos investidores, transformada em dívida, sobre a qual incidem novos juros. Uma auditoria à dívida pública de Porto Rico permitiria mostrar que não só uma grande parte da dívida é odiosa, ilegal, ilegítima e insustentável (ou mesmo toda a dívida), mas também traria ao conhecimento do público uma série de práticas pouco conhecidas mas com grande impacte na vida da população. É importante que essas práticas, cujo único fim é o benefício duma minoria privilegiada, sejam reveladas, mediatizadas, compreendidas e por fim obstruídas. Isto para não falar no apuramento de responsabilidades … Quem assinou os contratos CAB de Porto Rico? No interesse de quem? Como é possível que um punhado de pessoas tenha extorquido a grande maioria da população?
PROMESA: conflitos de interesse neocoloniais
Para dar resposta à crise da dívida de Porto Rico – sem ter em mente, por um instante que seja, a crise humanitária que a acompanha –, o Governo federal dos EUA fez uso da artilharia pesada, metendo à liça uma filial do FMI chamada Fiscal Control Board (Comissão de Controlo Fiscal), apelidada de La Junte pelos habitantes de Porto Rico. Esta comissão, instituída pela Lei Promesa, votada em Julho de 2016, é composta por 7 membros, dos quais 4 são nomeados pelo grupo dos representantes republicanos na Câmara e outros 3 pelos democratas. O governador de Porto Rico também integra a comissão, mas sem poder de decisão nem de direito de voto. Compete à comissão restaurar a «responsabilidade fiscal» do Governo de Porto Rico e voltar a dar-lhe condições de acesso aos mercados financeiros, para financiar os seus investimentos. Mas a missão da comissão não é a de «municiar» Porto Rico: não se trata de um resgate, como o que foi feito para os bancos. O dinheiro em falta tem de ser obtido dentro de Porto Rico, por meio de uma sábia salada de cortes nas despesas públicas, de despedimentos e privatizações (para quem não esteja familiarizado com esta receita: é exactamente a mesma que foi aplicada nos planos de ajustamento estrutural, que faz parte do Documento Estratégico de Redução da Pobreza concebido pelo PPTE, nos memorandos de entendimento aplicados na Grécia e noutros casos da mesma ordem aplicados há mais de 30 anos em grande escala, sem nunca obterem outro resultado que não seja uma açorda infame que apenas serve de repasto a umas quantas aves de rapina).
Além do seu programa, que não trará melhoria alguma à situação económica de Porto Rico, agravando ainda mais a já dramática situação em que se encontra a população, esta comissão acrescenta diversos problemas:
é imposto pelo Governo federal norte-americano, para o qual o povo de Porto Rico nem sequer pode votar;
tem o poder de introduzir reformas neoliberais profundas, que até hoje só conseguiram dar provas de produzirem miséria, desigualdade e grande dependência económica, sem obrigação de consultar o Parlamento de Porto Rico;
é composta por um grupo de pessoas que estão a anos-luz da realidade quotidiana da população de Porto Rico e cujos membros porto-riquenhos têm grandes responsabilidades na situação económica actual;
os conflitos de interesse mancham o seu currículo ainda antes de ter efectuado a sua primeira reunião (ver quadro abaixo).
Em suma, a instauração do Fiscal Control Board reforça o domínio colonial norte-americano sobre Porto Rico e justifica-o, qualificando os governos anteriores de irresponsáveis, e por isso passíveis de serem colocados sob a autoridade superior da comissão de controlo fiscal.
Membros da Comissão de Controlo Fiscal
O Fiscal Control Board é composto por 7 membros e pelo governador de Porto Rico, mas este não dispõe de direito de voto nas decisões que forem tomadas. Dos 7 membros, 4 foram nomeados pelos representantes republicanos do Congresso, 3 pelos democratas. 5 deles estão ligados às instituições financeiras do sector público e do sector privado.
Jose B. Carrión III: presidente da comissão. É director duma companhia de seguros. Move-se em altos círculos: o pai foi administrador do maior banco de Porto Rico, o Banco Popular (cuja administração é actualmente ocupada por um primo seu). A irmã trabalha num banco de investimento e também é consultora em Wall Street; é casada com o representante de Porto Rico no Congresso dos EUA, Pedro Pierluisi, acusado de introduzir leis que fizeram proveito aos clientes da esposa.
Andrew G. Biggs: republicano, feroz partidário da privatização da segurança social e dos cortes nas reformas quando foi conselheiro económico de Bush Jr. Basta a sua presença para desmentir a promessa da Casa Branca de que a Lei Promesa irá proteger as reformas.
Carlos M. Garcia: antigo director do banco Santander, actual presidente do Banco de Desenvolvimento de Porto Rico; pertence ao grupo dos que introduziram o sistema de capitalização de juros descrito mais acima … em proveito do seu anterior empregador. É também obreiro da Lei 7, que permite ao Governo responder à crise financeira declarando temporariamente uma urgência fiscal e despedindo milhares de funcionários públicos. |4| Note-se: a Financial Industry Regulatory Authority (FINRA) condenou o Santander a pagar uma multa de 6,4 milhões $ por ter revendido fraudulentamente os títulos da dívida porto-riquenha a particulares, sem os informar previamente do risco implícito.
José R. González: também ele dirigente do Santander em Porto Rico, juntamente com Carlos M. Garcia. Trabalhou igualmente noutros bancos, incluindo a filial do Crédit Suisse em Boston.
Arthur J. Gonzalez: durante muito tempo trabalhou no IRS (a autoridade fiscal norte-americana); depois foi advogado privado de grandes sociedades; prosseguiu carreira como juiz do tribunal norte-americano de falências (United States Bankruptcy Court). Teve «a sorte» de intervir em três das maiores falências dos últimos anos (Enron, WorldCom e Chrysler – só lhe falta o Lehman Brothers).
Ana J. Matosantos: a única mulher da comissão foi directora do departamento de finanças da Califórnia e preside actualmente à Matosantos Consulting.
David A. Skeel Jr.: professor de direito de falências.
Com uma equipa deste calibre, uma coisa é certa: os credores de Porto Rico podem dormir descansados. Estas pessoas têm, quase todas, fortes laços ao sector privado, senão mesmo a alguns dos credores de Porto Rico. Parece evidente que se dedicarão de corpo e alma a defender os interesses dos credores, mas não os da população.
A título anedótico, refira-se que um dos conselheiros de Rob Bishop, o republicano autor da Lei Promesa, chama-se Bill Cooper. Este senhor escreveu uma parte da Lei Promesa que diz respeito à transição energética da ilha para o gás natural e estava apontado como possível presidente da comissão de controlo; mas afinal teve de renunciar, por conflito de interesses – Bill Cooper tinha-se esquecido de mencionar que tinha sido presidente do Centre for Liquefied Natural Gas (Centro para o Gás Líquido), lobby de produtores e transportadores desse recurso.
Desgraçadamente, tudo isto constitui um exemplo clássico que se desenrola agora mesmo diante dos nossos olhos, com todos os ingredientes clássicos de submissão forçada dos povos: colonialismo e neocolonialismo; reforço intensificado dos interesses duma minoria privilegiada; desprezo pelas leis; desrespeito pelos direitos humanos e democráticos duma população. A dívida de Porto Rico deveria ser anulada na sua totalidade, mas é pouco provável que isso aconteça. Uma auditoria integral da dívida, levada a cabo com participação cidadã activa, permitiria demonstrar a ilegitimidade da dívida de Porto Rico e sensibilizar a opinião pública, desde que os movimentos sociais pegassem nos resultados da auditoria e fizessem pressão sobre as autoridades públicas, exigindo o repúdio da dívida e uma verdadeira mudança de rumo político.
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Notas
|1| Para mais detalhes, ver Puerto Rico : L’audit en cours révèle déjà une dette largement illégale, CADTM, 16-Junho-2016.
|2| ReFund America Project, Puerto Rico’s Payday Loans, 30-Junho-2016.
|3| Esta prática detestável de capitalização dos juros é proibida ou muito condicionada nalguns países, como sucede em Itália, Suíça, Equador (desde a adopção da nova Constituição em 2008). É claro que o anatocismo (a capitalização dos juros) é tolerado em numerosos países onde os credores conseguiram obter a legalização deste comportamento usurário. Daí a proibição prevista na Constituição equatoriana de 2008. Esta norma deveria ser introduzida em todas as constituições.
|4| Ver «État d’urgence sur la dette de Porto Rico», CADTM, 19-Abril-2016.
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[Artigo tirado do sitio web do CADTM, do 1 de xaneiro de 2017]