A digitalização da indústria e dos serviços

Daniel Vaz de Carvalho - 06 Mar 2017

Os próceres do grande capital exultam com estes delírios tecnológicos. Tudo isto é apresentado como grande vantagem para o "consumidor" permitindo oportunidades de inovação, pequenas séries, maior importância dada aos detalhes e ao gosto dos clientes, por exemplo em carros topo de gama, equipamentos sofisticados nas habitações e nas cidades tornadas mais seguras e funcionais, etc.

1 – Genericamente, em que consiste

 O desenvolvimento tecnológico no século XXI baseia-se no conceito de digitalização dos processos na indústria e nos serviços, utilizando a robótica, as mais avançadas tecnologias da informação, comunicação e localização (TICL), etc. Comunicações internet de alta velocidade tornam possível o controlo em tempo real de operações localizadas em pontos muito distantes.

 A partir da recolha de dados em tempo real por sensores e processados centralmente por computadores de alta capacidade – e mesmo capazes de "autoaprendizagem" – considera-se que haverá fábricas "inteligentes", as "smart factories", tal como smart cities, smart energy, smart health, smart living, etc., enfim tudo "smart".

 Na UE foi definido como prioridade o desenvolvimento destas tecnologias para que a "UE possa beneficiar dos efeitos da produtividade e inovação". Associadas a este processo de digitalização estão tecnologias avançadas como as KET (key enabling tecnologies) designadamente, as nanotecnologias; micro e nanoelectrónica, biotecnologia industrial, novos materiais, fotónica; tecnologias de fabrico avançadas e robótica.

 Assim, a concepção, a produção, controlo de qualidade, armazenamento, expedição, gestão, enfim as mais diversas operações, podem ser realizadas através da ligação de redes informáticas, em diferentes partes ou países por subcontratantes ou tarefeiros "altamente qualificados" e "com um mínimo de intervenção humana". É um processo em que indústrias e serviços podem estar dispersos. Por exemplo, uma fábrica estar na Ásia ou em África por razões de matérias-primas, financeiras, etc, e ser gerida, comandada, controlada de Berlim.

 Estamos perante a "economia digital", a "digitalização da indústria" e a "indústria da digitalização", designada como a "quarta revolução industrial", 4 i" ou também 4.0. [1] De uma forma geral o que esta "revolução" faz é levar ao limite processos e tecnologias existentes, num sistema em que deixa de existir uma concentração de trabalhadores no processo produtivo. Enfim, além da procura do lucro, procura-se atingir o ideal capitalista da fábrica sem operários e o fim do sindicalismo.

2 – As promessas, as realidades

 As perspectivas são aliciantes, como de costume. Os seus promotores afirmam que potencia em cinco anos na "Europa" 110 mil milhões de euros de "redução de custos" (para quem?). Fala-se num aumento do PIB na UE de 5% (em que países?) criando 16 milhões de empregos altamente qualificados, embora seja estimado o desaparecimento de 12 milhões menos qualificados.

 Os próceres do grande capital exultam com estes delírios tecnológicos. Tudo isto é apresentado como grande vantagem para o "consumidor" permitindo oportunidades de inovação, pequenas séries, maior importância dada aos detalhes e ao gosto dos clientes, por exemplo em carros topo de gama, equipamentos sofisticados nas habitações e nas cidades tornadas mais seguras e funcionais, etc.

 Estas oportunidades não deixam de vir com ameaças: "a revolução tecnológica terá um impacto negativo para os que se atrasarem". Por outras palavras: submetam-se às transnacionais detentoras destas tecnologias, senão… Entre nós, o primeiro-ministro anunciou o Programa 4.0, estratégias para a "economia digital". Com 414 milhões de euros de "incentivos comunitários" para projetos de "digitalização da indústria", apoios às empresas e ações de formação abrangendo 20 mil pessoas… [1]

 São as mesmas ilusões que com o euro, com os Pactos de Estabilidade e Crescimento, com as Diretivas Europeias sobre concursos públicos, etc iriam permitir "crescimento e emprego", poupanças de milhares de milhões aos Estados e "contribuintes". Ilusões que a direção da UGT e os "europeístas" engoliam sofregamente e propagandeavam. O que conseguiram foi estagnação, desemprego, endividamento, crise, desigualdades e… mais pobreza.

 Voltam às teorias dos "desafios" e das "apostas" como as proclamadas aquando da adesão à então CEE e depois ao euro, em que havia 500 milhões de consumidores à nossa espera, quando aqueles países eram excedentários em todas as produções em que Portugal tinha capacidade e competência ou necessitava para o seu desenvolvimento.

 A UE é um espaço em decadência, arrastada para o fundo pela usura, a corrupção financeira, a parceria imperialista e pelo totalitarismo alemão sobre os demais países. Estima-se que na próxima década 90% do crescimento mundial se processe fora da UE. A atitude de algum patronato pedindo "regras, multilaterais eficazes" no âmbito da OMC e de que a UE disponha de instrumentos de defesa comercial, etc, assemelha-se a penitentes implorando por intercessão a seu favor… Não entendem que a música que se toca nos areópagos da UE é o Deutschland ûber alles. A prioridade da Alemanha é manter a sua competitividade a nível mundial. A "solidariedade europeia" é a última das suas preocupações.

 Pretende-se que esta "revolução tecnológica" tenha uma abordagem abrangente a nível europeu, porém o Investimento deve ser feito a pensar na globalização (leia-se: ignorando as necessidades nacionais). O que irá aumentar as divergências entre países e agravar as contradições da "construção europeia", usando a terminologia dos federalistas.

 A Alemanha comanda destacada na UE os avanços tecnológicos. No período 2000-2007, detinha entre 40 a 50% ou mais das aplicações patenteadas na UE na área das KET; seguia-se a França, com valores entre os 12 e 17%. [2] Em 2015 a Alemanha detinha 33% das patentes registadas no EPO (European Patente Office, 40 países membros) para todos os sectores; Portugal ficava-se pelos 0,2%. [3] Fora da UE o domínio das tecnologias mais avançadas pertence aos EUA, Japão, Coreia do Sul, China. Os sistemas digitais são dominados por empresas dos EUA (Apple, Google, Microsoft).

 Os apoios estatais destinam-se basicamente a criar condições e a tornar atrativos os investimentos do grande capital, visto que apenas ao grande capital transnacional são acessíveis os investimentos necessários para concretizar os projetos de digitalização da economia, com elevados custos de operacionalidade na fase experimental, riscos, incertezas quanto a resultados e competitividade, destruição do capital fixo existente, etc. Além disto, exigem enormes quantidades produzidas e consumidas para se tornarem rentáveis (claro que é de rendas monopolistas que falamos).

 As drásticas condições de garantia de lucro, expressas nos chamados "tratados de comércio livre", são outro aspeto da colonização que o grande capital transnacional exige aos países dependentes. Na UE as políticas variam conforme os países, mesmo que as dificuldades sejam originadas pelos critérios impostos: a lógica altera-se quando se trata de defender os interesses das potências dominantes para garantirem a sua hegemonia.

 Assim, os elevados investimentos, os riscos e incertezas associados à I e D das tecnologias mais avançadas, levam a reconhecer que o mercado não pode servir de guia para orientar o desenvolvimento tecnológico. "A maioria das aplicações das KET estão ainda num estado conceptual ou pré-competitivo e por isso não é possível usar as referências do mercado para sabermos quão competitiva a Europa é em comparação com o resto do mundo". Propõe-se então a coordenação entre a I e D e a indústria para além "do permitido pelos mecanismos de mercado" e recomendam-se incentivos, e a orientação pelo Estado para estes objetivos. [2]

3 – Portugal na divisão capitalista internacional do trabalho

 O que tem tudo isto a ver com as necessidades e interesses do nosso país? Sob o signo de "desafios" e "apostas", não poderá deixar de ser senão como na integração na UE mais destruição do nosso tecido produtivo e o país conduzido para especializações em produtos intermédios ou banalizados internacionalmente, cuja competição conduz a baixos salários, incerteza e dependência.

 A globalização baseia-se na intensificação da concorrência internacional em benefício das grandes transnacionais e do capital financeiro, liquidando a soberania dos povos e aumentando a exploração dos trabalhadores. Intensifica também a obsolescência económica/tecnológica dos equipamentos (embora tecnicamente funcionais). É a usual destruição de capital fixo e força de trabalho a que o grande capital recorre para impedir a queda da taxa de lucro e sair das crises que origina.

 Não haja ilusões, os países dominantes continuarão a extorquir matérias-primas aos países dominados e querer explorar ao máximo possível os trabalhadores e as empresas subcontratadas num processo de troca desigual, em que a maior parte do valor acrescentado é captada pela concepção, gestão e comercialização destas atividades, isto é, pelo núcleo transnacional. É esta a sua natureza, é isto que resulta da sua lei fundamental: a maximização do lucro e extorsão de mais-valia.

 Neste processo, Portugal vai estar confrontado com outros povos de capitalismo dependente na competição internacional – como já hoje – pelo investimento das transnacionais nas condições em que são donos e senhores de estabelecer condições como as que os tratados de "comércio livre" estipulam e que designadamente o PS considera vantajosas sem evidenciar em que se baseia.

 O desenvolvimento tecnológico (DT) é condição necessária para preparar o futuro de qualquer país. Coloca-se assim a questão do papel que Portugal pode e deve assumir neste processo. Duas soluções se apresentam, independentemente dos modos de serem levadas à prática: aceitar o controlo e a sujeição às transnacionais ou adotar o planeamento económico e o desenvolvimento soberano.

 Relativamente à economia digital Portugal não fabrica os equipamentos nem domina os processos. A resolução destes problemas implica que o investimento seja prioritariamente orientado para os sectores produtivos e devidamente planeado em termos de soberania plena na indispensável cooperação mutuamente vantajosa com outros países.

 Sem isto, podem existir empresas trabalhando em tecnologias de ponta e equipamentos sofisticados, mas sem transferência de tecnologia, sem que os trabalhadores dominem os processos, tendo apenas as noções necessárias às operações contratadas.

 Os resultados do DT dependem da forma como são geridos os factores de que depende e como é difundido na sociedade. Qual o nível de despesas em I e D no PIB? Que tipo de cooperação se estabelece entre as entidades públicas de DT e as empresas, para o aumento da produtividade, da inovação e melhoria da qualidade. Que tipo de cooperação se estabelece a nível internacional – fácil no âmbito da investigação fundamental e mesmo na aplicada?

 Outra questão se coloca: como conciliar o necessário acompanhamento das tecnologias mais evoluídas com o aumento da produtividade média nacional? A produtividade média define o grau de desenvolvimento económico e também social de um país. Porém, entre o desenvolvimento das tecnologias avançadas e o aumento da produtividade média não há uma relação de causalidade direta.

 Não se trata apenas de conseguir em algumas empresas tecnologias de ponta, sem dúvida necessárias. Globalmente interessa ao país a produtividade social média, portanto trata-se de apoiar o progresso da estrutura produtiva e dos serviços no seu conjunto, incluindo as MPME. Aliás, se não houver forma de absorver e reorientar o desemprego que o DT provoca, é potencial produtivo que se perde e portanto também produtividade social.

 A saída de capitais e rendimentos, para juros, "paraísos fiscais", atividades especulativas mostra as dificuldades que o país enfrenta para o seu desenvolvimento com as políticas de submissão aos ditames da UE e do euro.

 O aumento da competitividade através do DT com vistas a melhorar a nossa posição nos mercados interno e externo só é possível com a criação de um forte sector empresarial do Estado designadamente nos sectores básicos e estratégicos.

 O DT implica definição de objetivos, organização, prazos, etc., isto é, planeamento. O DT não é concebível no marasmo económico, sendo necessários planos de industrialização e o avançar com grandes projetos estratégicos para a consolidação da estrutura económica do país e a necessária transmissão dos conhecimentos científico-técnicos para a área produtiva.

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[1] Tecnologia: uma questão política central

[2] European Competitiveness Report 2010, Eurostat, 2010, SEC(2010) 1276

[3] Science, technology and innovation in Europe, Eurostat, ISSN 1830-754X

Ver também:

  Artificial Intelligence: 'Frankenstein' or Capitalist Money Machine , de James Petras

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[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 5 de marzo de 2017]