A criação de um mundo perigoso

Daniel Vaz de Carvalho - 27 Abr 2022

A intenção de Washington é instigar um conflito de longa duração que esgote as forças russas, deixando os ucranianos a realizar uma rebelião sem possibilidades de sucesso. Os EUA ficariam assim de mãos livres para tratarem dos seus problemas com a China. O futuro do mundo está, pois pendente do resultado do conflito Rússia-Ucrânia e da posição que os países da UE vierem a tomar em relação à China, acompanhando ou não os EUA

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 Não, não se trata de uma oratória de Haydn, é a realidade atual. De um lado EUA/NATO e aliados/súbditos mais fieis, do outro Rússia, China e países ligados a estes como o Irão, Bielorússia e outros. De um lado a "comunidade internacional", uns 15% da população mundial, do outro 25%. O "terceiro mundo" volta a reconstituir-se como se viu na votação na ONU sobre a aplicação de sanções à Rússia.

 Há muito que o dito ocidente, sob a hegemonia dos EUA, abandonou o conceito de "direito internacional" da Carta da ONU adotando a "ordem mundial baseada em regras", que ditam ao resto do mundo, achando-se no direito de sancionar, conspirar, atacar, invadir os que não as sigam. É este o fundamento do mundo extremamente perigoso em que vivemos. Chris Hedges descreve exemplarmente os seus "ideólogos" e aproveitadores: os oligarcas e parasitas ao seu serviço.

 É em função destes interesses que se criou um mundo no qual a potência hegemónica dita, sem admitir ser questionada, como os demais povos têm de ser governados. Um mundo gerado na base de crises e conflitos permanentes, sempre à beira de guerras, aproximando-se perigosamente de um confronto global entre potências com armas nucleares.

 Nos finais de 1989 quando o muro de Berlim foi derrubado, multidões exultavam: era a paz, a liberdade (do neoliberalismo...), o fim do socialismo, tenazmente preparado com a colaboração de laxistas, vendidos ao imperialismo e corruptos. Cena que faz lembrar uma outra em circunstâncias que adivinhavam a tragédia que se seguiu.

 Em 30 de setembro de 1938, o primeiro-ministro francês Daladier regressava a Paris, vindo de Munique, após ter celebrado o acordo que entregava aos nazis uma parte da Checoslováquia. Ao sair do avião uma multidão espera-o com cartazes que festejavam o acordo: "a paz tinha sido salva". Daladier olha-os espantado, esperava ser vaiado, e murmura: "Idiotas… se eles soubessem".

 Em 1989 uma idiótica euforia, percorreu as hostes anti-marxistas desde a extrema-direita a uma dita extrema-esquerda, juntando-os num triunfalismo inconsequente. Na realidade, tal como em Munique se preparou a entrega aos nazis do domínio sobre a Europa, o derrube do Muro de Berlim preparou a entrega do domínio mundial aos EUA, como líder do grande capital transnacional.

 A direita exultava com a derrota do seu arqui-inimigo, a social-democracia acompanhava-a fantasiando o enterro do "comunismo", defendendo "um socialismo de rosto humano", na realidade de rosto oligárquico e financeiro. Na sua cegueira acreditavam que afastado o "espectro do comunismo" as massas populares pertenciam-lhe política e sindicalmente. Para uns e para outros era a "paz social" através da colaboração de classes.

 As massas foram submersas em propaganda que prometia a "economia social de mercado" ou a "economia de mercado com justiça social". Contudo, o derrube do Muro de Berlim e o fim da URSS vieram exaustivamente confirmar as teses marxistas-leninistas: o capitalismo humanista não existe. Avanços sociais e civilizacionais conquistados à custa de duras lutas e sacrifícios contra o capital dominante iam ser eliminados. A criação de um mundo cada vez mais desigual, injusto e perigoso estava em curso.

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 A Rand Corp, que tinha ajudado a elaborar a estratégia para destruir a União Soviética forçando-a a consumir os seus recursos económicos disponíveis no confronto geoestratégico, elaborou um novo plano, Overextending and Unbalancing Russia, que fundamentalmente constituía a preparação para uma guerra global. O relatório especificava que os EUA deviam procurar com os seus aliados, uma estratégia abrangente explorando as vulnerabilidades russas, analisando vários meios de a levar ao desequilíbrio, indicando probabilidades de sucesso, benefícios, custos e riscos para os EUA. Como forma de prejudicar a economia da Rússia, a emigração de pessoal qualificado deveria ser incentivada. No domínio ideológico e informativo, estimulavam-se as disputas internas, minar a imagem da Rússia no exterior, excluindo-a dos fóruns internacionais, boicotando eventos desportivos internacionais que organizasse, etc.

 Falava em armar a Ucrânia, como ponto de maior vulnerabilidade externa da Rússia. Sair do Tratado INF e implantar na Europa novos mísseis nucleares de alcance intermédio. O relatório concluía que a Rússia acabaria por ceder ao ter de pagar um preço demasiado alto neste confronto. Os EUA teriam também que investir grandes recursos subtraindo-os de outras objetivos, devendo haver um aumento acentuado dos gastos militares da NATO em detrimento dos gastos sociais[1].

 Desde o início do século que a Rússia voltava a ser vista como um forte adversário dos EUA. Na Ucrânia, V. Yanukovych, então presidente, ciente das consequências adversas que a economia sofreria após a assinatura do Acordo de Associação com a UE, quis adiar a assinatura até se ver como mitigar o inevitável impacto negativo. Foi então posto em prática o golpe "Maidan", desencadeado em 2014 com o dinheiro e a liderança dos EUA.

 A agressividade acentuou-se dado que o golpe de Estado não atingiu todos os objetivos devido à reação russa com apoio da população na Crimeia – onde os EUA/NATO previam instalar uma base militar (como no Kosovo) substituindo a base russa – e no Leste do país (o Donbass) onde a população também não aceitou o nazifascismo de Kiev.

 O conflito atual é no entanto mais vasto e ultrapassa o confronto na Ucrânia. A China é considerada o inimigo principal devido ao sucesso do PCC e do seu "socialismo de caraterísticas chinesas" (do qual não está ausente a meritocracia confucionista) que se torna para muitos povos atraente como como alternativa ao capitalismo neoliberal e financeirizado.

 Em 2021 a Rússia propõe um tratado de segurança coletiva na Europa, baseado no princípio da OSCE de que a segurança de uns não pode ser feita à custa da segurança de outros. Era quase uma repetição das tentativas da URSS em 1938/1939 para conter o imperialismo nazi através de um tratado com a França e a Grã-Bretanha. A resposta foi idêntica: uma displicente indiferença. Entretanto, a NATO predispunha-se a continuar a expansão para Leste ignorando os acordos de 1989, instalar mísseis e armas atómicas na Ucrânia.

 Neste contexto, a UE tornou-se uma colónia dos neocons instalados em Washington. O bloqueio do Nord Stream 2 representa a rendição da Alemanha aos EUA, arrastando consigo a UE (com exceção da Hungria). Como frisou Michael Hudson em O dólar devora o euro, o objetivo é impedir que a Europa Ocidental (“NATO”) possa prosperar por meio de comércio e investimentos mútuos com a China e a Rússia. Os efeitos destas decisões já se sentem, com aumento de preços (inflação), retração da economia, escassez de cereais e de fertilizantes, encarecimento dos transportes, etc, tendência que se irá acentuar. Além da construção de terminais para a receção de gás liquefeito dos EUA, os países da NATO são obrigados a comprar armas aos EUA. O suicídio económico da UE está aliás inscrito nas próprias regras, (as algemas monetárias) que limitam sua capacidade de criar dinheiro para investir na economia e o limite de 3% do PIB no défice.

 A aliança transatlântica, não passa de uma aliança entre as oligarquias como em qualquer republica das bananas. O desvario vai ao ponto da política oficial da NATO e da UE ser de que a guerra na Ucrânia deve ser resolvida vencendo no campo de batalha!

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 A potência hegemónica está perante um mundo que uma série de bajuladores disseram que lhe pertencia e agora lhe escapa. A Ucrânia é apenas um peão geopolítico, deixado ser "comido" para o rei continuar a jogar. Por isso os acordos de Minsk foram sabotados, com o apoio da Alemanha e da França, segundo ordens dos EUA. Na recusa de Kiev em implementar os acordos, o Donbass foi sujeito a ataques de que resultaram 14 mil mortes, cujo sacrifício deixa indiferentes os que nos media se exibem como grandes defensores dos direitos humanos.

 Há muito que a decisão sobre o papel geostratégico da Ucrânia tinha sido tomada. Há oito anos que o seu exército era armado e treinado pela NATO, pronto para desencadear uma ofensiva contra o Donbass (para o que concentraram pelo menos 60 mil efetivos). Nas bravatas do comediante propunha-se atacar a Crimeia, ter acesso a armas nucleares e aderir à NATO.

 Apesar de tudo isto, o exército ucraniano não tem um mínimo de condições para realizar quaisquer movimentos estratégicos, as ações táticas resumem-se a estabelecer pontos de resistência em algumas cidades. O exército russo fez um muito bom trabalho ao transformar rapidamente o exército ucraniano numa entidade fragmentada, as suas várias partes isoladas e incapazes de se apoiarem umas às outras. Considerando que os ucranianos têm a dupla vantagem de estar na defesa e ter uma força maior, esta é realmente uma ação militar notável. Note-se que a Rússia só comprometeu na Ucrânia, até ao momento, apenas uma pequena parte de seu exército e quase nenhuma de suas forças mais modernas (além de recentemente mísseis hipersónicos).

 Acrescente-se o dinheiro, armas e quadros militares dos EUA/NATO. Através da Polónia são enviados elementos de forças especiais, mercenários e material de guerra pesado (tanques, munições de artilharia, mísseis de vários modelos, etc.). Grande parte deste material é destruído nos pontos onde é concentrado. As forças ucranianas têm ainda alguns blindados e artilharia pesada, a maior parte escondida em aglomerados urbanos fora dos quais são rapidamente destruídos. O seu abastecimento é também muito difícil. Na manhã do passado dia 19, a artilharia russa atacou 1 260 objetivos militares, além de 60 objetivos visados pela aviação em locais com grande presença de tropas e material.

 Segundo dados do Kiel Institute for the World Economy recolhidos pela jornalista Katharina Buchholz, desde 24 de fevereiro a meados 27 de março os EUA despenderam 4,8 mil milhões de dólares em ajuda militar. Isto sem contar com mais de mil milhões que países europeus da NATO estão a despejar na Ucrânia.

 A intenção de Washington é instigar um conflito de longa duração que esgote as forças russas, deixando os ucranianos a realizar uma rebelião sem possibilidades de sucesso. Os EUA ficariam assim de mãos livres para tratarem dos seus problemas com a China. O futuro do mundo está, pois pendente do resultado do conflito Rússia-Ucrânia e da posição que os países da UE vierem a tomar em relação à China, acompanhando ou não os EUA (se é que poderão deixar de o fazer).

 Os objetivos em prolongar a guerra têm em vista: uma acumulação de notícias falsas sobre crimes de guerra que justifique na NATO os sacrifícios pedidos às populações; o aumento da exploração inscrito no plano neoliberal há muito preparado; desarticular a economia russa, levando a opinião pública contra Putin, criando conflitos possibilitando que os liberais afetos ao ocidente tomem o poder, voltando-se aos "bons tempos" de Ieltsin; minar a moral do exército e o alto comando desacreditando a liderança de Putin incapaz de alcançar a vitória ou pôr fim à guerra.

 Claro que os efeitos da guerra vão produzir consequências idênticas, de sinal contrário, nos países da NATO. A guerra de desgaste pretendida está a transformar-se numa armadilha particularmente para os países europeus da UE e NATO, basta ver os milhares de milhões que estão a ser gastos.

 Também o objetivo das sanções falha e quem paga as custas são os demais países da Europa, o que pouco importa aos EUA, já que: "Fuck UE" (Nuland). A popularidade de Putin está acima dos 80%, enquanto o desagrado pelos "liberais", a 5ª coluna ocidental, é total.

 Nos terceiros países há uma crescente consciência e necessidade de proteger as suas economias, evitando ficarem sequestradas pela hegemonia financeira ocidental e que o ocidente não deve mais ser deixado sem controlo nas suas economias.

            4 - A guerra atual e as forças progressistas

 Vivemos num mundo cada vez mais perigoso. Os EUA tendem a tornar-se mais agressivos à medida que a sua hegemonia é contestada e são confrontados com o declínio do seu domínio global sem o qual o dólar passa a ser uma moeda como qualquer outra. Com a sua economia e dos seus aliados em crise, com gritantes desigualdades e convulsões sociais internas, o dólar não poderá sustentar-se como moeda mundial.

 Para dominarem o mundo os EUA não querem ficar limitados a qualquer obrigação de levar em conta os interesses dos outros. Isso seria reconhecer a incapacidade de vencer adversários, precisamente num momento em que se acumulam desaires em intervenções militares e políticas (revoluções coloridas, caso das sanções contra a Rússia na ONU, aliados que se distanciam, etc).

 O diálogo com a Ucrânia está portanto muito comprometido, visto que Zelenski, sem qualquer preparação para o cargo, não passa de um títere telecomandado incapaz de gerir os interesses do seu país, falido e sob a prepotência de grupos nazis desde 2014. No entanto, a agenda russa era bastante simples: fim dos ataques ao Donbass; que a Ucrânia não disponha de nenhuma arma que represente uma ameaça à segurança da Rússia; que a ideologia nazi não subsista na Ucrânia.

Cartoon de Pabink, horrores de uma guerra.

 Cada vez mais o império só consegue a adesão de dirigentes corruptos e mentirosos ou que obtêm o poder à custa de perseguições e crimes. As suas intervenções, têm causado um impressionante número de mortes, populações deslocadas e refugiados, como nunca desde a 2ª Guerra Mundial. Contudo os milhares de mortes no Mediterrâneo graças a "levar a democracia" e "intervenções humanitárias" pouco ou nada perturbaram a consciência dos estrénuos defensores de direitos humanos segundo a pauta da NATO.

 A guerra na Ucrânia faz parte de uma luta existencial em que tanto a Rússia como os EUA estão envolvidos. Os EUA querem manter o seu império, a Rússia luta pelo direito à soberania e igualdade nos fóruns internacionais. Para a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, a Rússia estará disposta a envolver todos os meios à sua disposição impondo a neutralidade de Kiev. A Rússia não esquece a agressão nazi, os tempos de horror sob a "democracia liberal" de Ieltsin e conselheiros dos EUA, a tentativa de desmembramento a partir da Chechénia. A ideia é que só não lhe aconteceu o mesmo que à Jugoslávia porque dispunham de bombas nucleares.

 A presença da China na Ásia, África, América Latina, impede que o "ocidente" continue a devastar sem entraves essas regiões. A aliança entre a Rússia e a China cria um polo de oposição ao poder de Washington demasiado forte para, na perspetiva da sua hegemonia ser tolerado.

 A entrada na NATO da Finlândia e da Suécia está já configurada. Mesmo informalmente a participação em ações da NATO são um rastilho que pode alterar para pior tudo o que acontece na Europa. As soluções negociadas que se podiam prever, perdem nesta situação oportunidade. Até um armistício como o da Coreia pode tornar-se inviável, caminhando-se para um confronto global.

 Em junho de 2020, segundo a nova doutrina nuclear russa, a Rússia reserva-se o direito de usar armas nucleares, especificando: "o direito de utilizar o seu arsenal nuclear em resposta à utilização de armas nucleares ou outras armas de destruição massiva contra ela ou seus aliados, assim como no caso de uma agressão contra a Federação Russa com armas convencionais desde que a própria existência do Estado seja ameaçada".

 Face a isto, os governos europeus da NATO mostram-se incapazes de alterar o discurso alinhando com os neocons dos EUA e os nazifascistas da Europa do Leste. Quanto ao radicalismo de fachada, adapta a sua tese dos dois imperialismos às presentes circunstâncias, favorecendo o imperialismo e desarmando ideologicamente as massas proletárias na total prioridade da luta pela paz, pela soberania nacional e pelo fim de um Estado hegemónico decidir, em função dos interesses da sua oligarquia, como os demais devem ser governados.

 Só a plena soberania nacional permitirá criar oportunidades para os trabalhadores emergirem numa nova conjuntura como protagonistas de uma nova ordem económica que atenda aos seus interesses. Só a alteração da relação de forças sociais nos EUA e na UE pode trazer alguma luz a este tempo de trevas, permitindo a construção de uma ordem internacional na qual nenhum Estado exerça funções de policiamento político sobre os demais.

 No dia que as pessoas se apercebam de tudo isto haverá uma oportunidade para a paz. O que as populações fizerem em termos de luta pela paz e soberania nacional será decisivo.

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[1] www.legrandsoir.info/rand-corp-comment-abattre-la-russie-il-manifesto.html

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[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 26 de abril de 2022]