A América Latina é uma região de paz?

Rubén Armendáriz - 14 Out 2016

As 36 bases militares dos Estados Unidos instaladas na América Latina e no Caribe são uma ameaça constante à paz, às democracias, à soberania e à independência dos países

 Não escasseiam os artigos que definem a América Latina e o Caribe como uma região de paz, e apesar de os países que a integram não se encontrarem entre as maiores potências militares do planeta, a región mantém uma tendência mundial de contínuo reforço de suas Forças Armadas, enquanto persiste a coexistência com 36 bases militares estadunidenses espalhadas pela América Central, pelo Caribe e pela América do Sul.

 O discurso do presidente colombiano Juan Manuel Santos antes do plebiscito, anunciando o final de meio século de conflito armado, levou os dirigentes latino-americanos a se sucederem este ano, no estrado da Assembleia Geral da ONU, falando numa região onde desaparecem as guerras, e as tensões passam a se centrar na busca de um modelo político e econômico.

 No final de janeiro de 2014, em evento realizado em Havana, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) declarou a região como uma Zona de Paz. Se trata de um território habitado por 560 milhões de pessoas, e um lugar de grande extensão possuidor de recursos naturais de imenso valor, muito favorável a desenvolvimento econômico de outros muitos países, em particular aqueles de grande poder comercial e industrial, como os Estados Unidos ou a China.

 A região concentra 12% da área terrestre total e 8% da população mundial, possui cerca de 27 % da água doce do planeta – embora 30% dos seus habitantes carece de acesso à água potável e uma proporção similar não conta com serviços de saneamento básico. Nesta região, se localizam 11% das reservas mundiais de petróleo, e se produz cerca de 15% total do petróleo cru. Segundo a FAO (Agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), a região contém 40% das espécies vegetais e animais do planeta, e se considera possuidora da mais alta biodiversidade em flora e fauna do mundo.

 A aparição de importantes compras de armamento, o aumento de efetivos militares e os movimentos e exercícios militares, entre outros índices de militarização, instalam hoje um manto de dúvida e preocupação, apesar de não se verificar enfrentamentos ou conflitos a escala regional. Enquanto, em algumas capitais sul-americanas, se busca dar corpo a uma “identidade de defesa única” para a região, em outras se insiste em atiçar os fantasmas do passado, com políticas exteriores ancoradas em questionamentos de fronteiras e espaços territoriais.

 Na América Latina e no Caribe, o investimento militar caiu cerca de 2,9% em 2015, chegando a 67 bilhões de dólares. Só na América do Sul esse gasto foi de 57,6 bilhões, 4% a menos que em 2014, mas 27% mais alto que em 2006. A queda do gasto militar na América do Sul foi ajudada também pela redução de 64% do investimento militar da Venezuela, afetada pela crise econômica. No caso do Equador, que mostrou elevado gasto militar por vários anos, graças aos lucros do petróleo, também houve uma diminuição, em apenas 11%. Em alguns países da região, como Colômbia, Guiana, Paraguai, Peru e Uruguai, houve um aumento do poderio militar em 2015.

 Enquanto isso, os países da América Central continuaram aumentando seu investimento militar, como vem sendo a tônica já há alguns anos, devido aos níveis extremos de violência provocada pelo crime organizado, o que leva a fortalecer as forças militares que combatem os cartéis. O gasto militar na zona foi de cerca de 9,5 bilhões, com um aumento de 3,7 milhões em comparação com 2014. No México, o gasto militar continua aumentando, e chegou a 7,7 bilhões, um aumento anual de 3,6%. Outro exemplo destacável é o de Honduras %u200 país com a segunda maior taxa de homicídios do mundo –, onde o investimento militar cresceu 186% entre 2006 e 2015, o maior aumento da região.

O comércio de armas internacional na América Latina

 No conjunto mundial das compras de armas, as de América Latina representam 11% do total. Entre 2005 e 2009, essas compras se incrementaram em 150%, e os países da América do Sul se destacaram nesse âmbito, com um total de 7,97 bilhões de dólares gastos em armamento. Por sua parte, a América Central registou compras num total de 247 milhões de dólares, com um aumento de 5% no mesmo lapso.

 Os principais exportadores de armas da región são os Estados Unidos, seguidos da União  Europeia, a Rússia e a China. Examinando os países receptores de armamento, pode-se constatar que os Estados Unidos é o principal fornecedor de armamento fabricado por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru. A Venezuela se abastece de armas provenientes, principalmente, da Rússia, e em menor quantia, da China. Diferente dos estadunidenses, a China, a Rússia e a União Europeia não fazem distinção ideológica, e vendem armas a todos os países da região por igual, sem critérios políticos.

Cifras

  Segundo o Banco Mundial, a Argentina destinava 2,1% do PIB, em 1988 à compra de armas, e o reduziu essa cifra a 0,9% em 2015. O Brasil baixou de 2,1% a 1,4% no mesmo período. O Chile, de 4,1% a 1,9%. O Peru, de 2,5% a 1,6% do PIB. Enquanto isso, a Colômbia aumentou seus gastos de 2,2% a 3,4%, assim como o México, que passou de 0,5% de seu PIB de 1988 gasto em armas, para 0,7% em 2015.

 Esta militarização provém do peso específico que os militares ainda têm na política interna de vários países. Uma situação que comporta privilégios, que converte os militares em poder fático, capazes de condicionar e sequestrar a política dos governos e os orçamentos militares dos Estados, e por isso podemos verificar este aumento vertiginoso nos últimos anos. “O incremento do gasto se traduz em melhoria dos aparatos das Forças Armadas, especialmente em importantes compras de armamento, até o ponto de fazer da América Latina de hoje uma das regiões do mundo onde chega mais armamento, o que freia o desenvolvimento do continente e abre o caminho às tensões e conflitos”, afirmam Pere Ortega e Juan Sebastián Gómez, do Centro Delàs de Estudos pela Paz.

 A política exterior dos Estados Unidos na América Latina e no Caribe continua sendo como foi no passado, voltada a exercer um indiscutível e indissimulado controle sobre as políticas internas dos países da região. Apesar de as análises priorizarem a contagem da presença material de efetivos militares estadunidenses nas diferentes bases e instalações existentes na região, a verdade é que essas ultrapassam o número de 2 mil militares, devido à proximidade do território estadunidense, o que não faz necessário um maior deslocamento dos soldados: basta ter algumas bases e pequenas instalações estrategicamente espalhadas pela região.

O armamentismo a nível global

 Cerca de 70% do comércio de armas que se vendem no mundo procede dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Entre os dez primeiros fabricantes também se encontram Alemanha, Espanha e Itália. Entre 2001 e 2014, o gasto militar global aumentou em 50%.

 Os especialistas reúnem dados dos mais variados: a violência armada cobra, a cada ano, mas de meio milhão de vidas, e a maioria dessas mortes se dão em contextos que não são de conflito armado aberto, senão que em casos menores.

 O Global Firepower Index (“Índice Global de Poder de Fogo”) se trata de uma lista das maiores potências mundiais nesse aspecto, medindo fatores geográficos e industriais, e outros, como a quantidade e a qualidade da mão de obra militar, sem levar em conta os arsenais nucleares. Por outro, a metodologia pune alguns países por casos peculiares: por exemplo, aqueles que contam com saída ao mar mas que carecem de uma marinha, ou que possuem pouco poderio naval.

 Obviamente, a lista é encabeçada pelos Estados Unidos, seguido por Rússia e China, e os primeiros vinte lugares estão ocupados, em sua maioria por potências europeias e asiáticas: Índia, França, Reino Unido, Japão, Turquia, Alemanha, Itália, e assim por diante. O primeiro país latino-americano que aparece na lista é o Brasil, no posto de número 22. Nenhum dos demais Estados estão entre os trinta primeiros.

O sete exércitos mais potentes da região

 Os dados do Global Firepower Index colocam o Brasil num lugar de destaque dentro do contexto latino-americano. Nas últimas décadas, o Brasil se tornou a maior potência militar da América Latina, com um exército de 327 mil pessoas em ativo e mais de 1,8 milhão na reserva. Conta com 1,7 mil veículos blindados de combate, 750 aeronaves, 113 navios de guerra e um orçamento militar de 34,7 bilhões de dólares anuais.

 O segundo lugar da região (31º na lista global) é do México. Além de realizar suas funções dentro do país, entre as quais se inclui a luta contra o narcotráfico, as Forças Armadas mexicanas participam em Operações de Paz da ONU. Conta com 267 mil em pessoal ativo e 76,5 mil na reserva, 695 blindados de combate, 362 aeronaves e 143 navios de guerra. Seu orçamento de defesa em 2015 foi de 14,5 bilhões de dólares.

 O Chile ocupa o posto 43 no ranking mundial, o que o torna a terceira potência militar da região. O país reforça ativamente seu arsenal armamentístico, destinando uma porcentagem significativa de seu orçamento militar à compra de armas no exterior. Suas Forças Armadas contam com 60,5 mil pessoas em ativo, e 82 mil na reserva, 2346 veículos blindados de combate, 236 aeronaves e 69 navios de guerra, com uma verba para gasto militar de 5,4 bilhões de dólares. Existe uma estreita relação entre as Forças Armadas do Chile e as dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, México, Holanda, Israel e Espanha.

 Quarta colocada na região, a Argentina aparece no posto 47 do ranking global, e também moderniza permanentemente seus equipamentos. Conta com 73 mil personas em serviço ativo das suas Forças Armadas, além de 31 mil reservistas. Seu arsenal inclui 828 veículos blindados de combate, 275 aeronaves e 41 navios de guerra, com um orçamento de defensa de 5,5 bilhões de dólares em 2015. A Argentina também mantém uma relação de cooperação militar com países estrangeiros, como os Estados Unidos, e em menor escala com Israel, Alemanha, França, Espanha e Itália.

 O Peru ocupa o quinto lugar entre as Forças Armadas mais potentes de América Latina, e o 51º lugar no ranking global. Seu exército conta com mais de 120 mil militares ativos e uma reserva de 272 mil pessoas. Reúne armamento proveniente dos Estados Unidos, Rússia, China e outros países: 890 veículos blindados de combate, 239 aeronaves e 60 navios de guerra, Seu orçamento militar é de 2,5 bilhões de dólares.

 O conflito com a guerrilha e a luta contra o narcotráfico são as razões pelas quais a Colômbia (sexta colocada na região e 54 a nível global) conta com o maior número de militares ativos na América Latina (mais de 444 mil) e poucos na reserva (62 mil), contando um dos maiores orçamentos neste âmbito (12,1 bilhões de dólares). O país possui 1345 veículos blindados de combate, 493 aeronaves e 232 navios de guerra, a maior parte importados dos Estados Unidos e de Israel. Apesar de seu tão publicitado “código de ética”, a União Europeia também exporta armas à Colômbia, país que reúne todos os requisitos para desaconselhar a venda de armas, já que existe no país um conflito interno grave, com aspectos de guerra civil, além de graves violações aos direitos humanos da população por parte de todos os grupos envolvidos: Exército, FARC e ELN (ambos de esquerda), grupos paramilitares de direita e as organizações narcotraficantes. Existe no país um alto grau de militarização, e o perigo constante de uma desestabilização regional, devido aos conflitos que derivam às fronteiras da Venezuela e do Equador

 Justamente a Venezuela, aparece no 62º lugar no ranking global, e no sétimo da América Latina. Tem 113 mil militares ativos e 438 mil na reserva, 700 veículos blindados de combate, 229 aeronaves, e 225 navios de guerra. Seu orçamento de defesa em 2015 foi de 5,2 bilhões de dólares.

 As bases estadunidenses

 Apesar da crescente oposição de amplos setores da população à intervenção estadunidense, a política do atual presidente Barack Obama é tão beligerante como a do seu antecessor George W Bush, que não tinha nenhuma vergonha em afirmar a necessidade de preservar a qualquer custo os interesses dos Estados Unidos na região, tendo o lema “o fim justifica os meios”, como máxima que orientou as relações Norte-Sul em seu governo. As bases militares que os Estados Unidos mantém na região são um dos elementos de toda uma rede de planos e organizações dirigidas ao controle e vigilância de todo o continente latino-americano.

 Existe o caso da tristemente famosa Escola das Américas, que propagou a nefasta “doutrina de segurança nacional” adestrando militares que encabeçaram as ditaduras dos Anos 70 e 80. Em quase 60 anos de existência, ela treinou cerca de 60 mil militares latino-americanos em técnicas de contrainsurgência, formação de franco-atiradores, guerra psicológica, inteligência militar e tácticas de interrogatório.

 As 36 bases militares dos Estados Unidos instaladas na América Latina e no Caribe são uma ameaça constante à paz, às democracias, à soberania e à independência dos países. Não se conhece com exatidão a quantidade de bases instaladas, embora um inventário oficial elaborado pelo Pentágono em 2008 afirme que, naquele ano, eram 865 bases em 46 países, onde se encontrava um total de 200 mil soldados.

 Na América Central se encontra a base de Comalapa, em El Salvador, e a de Soto-Cano (ou Palmerola), em Honduras. Na Costa Rica, está a base de Liberia, que deixou de funcionar durante um tempo, mas que voltou a operar recentemente. Na América do Sul há bases operando no Peru – se supõe que são três – e no Paraguai – a base militar Mariscal Estigarribia, localizada na região do Chaco, com capacidade para alojar 20 mil soldados, e que se encontra situada num lugar estratégico, cerca da tríplice fronteira e do aquífero Guarani.

 No Caribe, estão as bases de Cuba, em Guantánamo, usada como centro de tortura –, a de Aruba (Reina Beatriz) e a de Curaçau (Hatos). Além dessa lista, também se devem agregar as 7 bases montadas na Colômbia – cifra que pode ser maior que o oficialmente reconhecido – e outras instaladas no Panamá.

 Além disso, os Estados Unidos contam com suas embaixadas e com as agências de segurança: NSA (sigla em inglês da Agência Nacional de Segurança), CIA (Agência Central de Inteligência, DEA (Departamento de Combate às Drogas) e USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento), sem contar o Comando Sul do Exército. Todas elas servem como ponta de lança para experimentar, usar e abusar de uma série de estratégias e doutrinas para defender ou recuperar o domínio total nesta parte do continente. Pode-se deduzir daí que os objetivos de dominação pretendem, no futuro imediato, a exploração dos recursos naturais e das reservas de água, oxigênio e da biodiversidade que o país necessita.

 É muito importante frear a corrida armamentista, mas isso se torna difícil numa região que vem reascendendo os momentos mais conturbados de diversos e antigos diferendos limítrofes herdados da época colonial ou dos primeiros anos após os processos independentistas. Os mais recentes focos de litígio na América do Sul, por exemplo, puderam ser resolvidos com a participação de uma entidade integracionista como a Unasul. Porém, outros perigos, parecem ser mais complexos, e efetivamente acabam emboscando a paz na região.

 Há quem pense que a paz está assegurada somente com o silêncio das armas. Quanto de instabilidade – e, portanto, de possíveis conflitos – também podem se ocultar por trás da intromissão, da manipulação midiática e política dos povos e da falta de respeito aos governos legitimamente constituídos e seus processos democráticos, o que impede que cada nação tenha processos democráticos estáveis, mediantes eleições transparentes e com resultados respeitados?

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro ‘Agência Carta Maior’, do 11 de outubro de 2016]